Kumo no Ito escrita por M4r1-ch4n


Capítulo 2
Capítulo 1




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          Ele não sabia quanto tempo havia corrido, nem tinha idéia de para onde suas pernas o levavam; tudo que ele mais queria era se afastar daquela enorme construção em chamas, fugir dos gritos das pessoas que ele ouvia de lá de dentro, desaparecer na escuridão que se apresentava na sua frente.
          Lágrimas desciam pela sua face, mas ele não as percebia. Tudo que ele conseguia ver era o clarão do fogo consumindo rapidamente o lugar onde ele havia vivido até então; levando embora o cenário de tantas memórias lindas que ele possuía.
          Finalmente sentindo a fadiga dominar seu corpo depois da adrenalina injetada nas suas veias pelo perigo iminente, Sakito parou de correr. Colocando as mãos nas pernas, ele ofegou por um bom tempo, antes de cair de joelhos no chão de uma rua, bem distante da sua casa.
          Ou dos escombros que restavam dela.
          Havia sido, sem dúvida, a visão mais aterradora que ele já havia tido, e por uma insistência malvada da sua mente, ela não parava de se repetir, o laranja das labaredas e os gritos agudos das pessoas sendo queimadas invadindo sua cabeça e ecoando na noite.
          Ele jamais teria escapado daquele fogo terrível se não estivesse sem sono naquela madrugada, tendo optado por passear pelo jardim interno. Foi quando ouviu o primeiro grito, seguido do estalo de uma viga de madeira se partindo; antes que ele pudesse retornar para salvar alguém, o fogo apareceu na porta dos fundos, queimando toda a mobília que havia na cozinha e impossibilitando a sua entrada de volta no castelo.
          Era um pesadelo. A única coisa que o cérebro de Sakito registrou como viável era a sua própria sobrevivência. Então ele correu. Correu como nunca havia corrido em toda a sua vida antes. E talvez era somente graças a esse último esforço de uma mente fragilizada pelo incêndio que ele havia sobrevivido.
          Seus pais. Os criados. Todo um império erguido cuidadosamente por gerações na família Edokawa havia... Virado cinzas. Literalmente, acrescentou o jovem com uma risada seca, cheia de dor e melancolia ao mesmo tempo.
          Ele estava sozinho. Não havia mais ninguém da sua família, não havia mais recursos financeiros... Simplesmente nada restara. Tudo da vida que ele conhecia até então havia desaparecido com um incêndio. Ele jamais imaginara que sua vida era algo tão frágil, tão fácil de ser apagada.
          Perdido no seus pensamentos, sujo de fuligem, terra e também lágrimas, o único sobrevivente dos Edokawa não percebeu uma porta de madeira bem rústica e ligeiramente podre ao seu lado abrir, nem notou a presença de um homem que apareceu atrás dela com uma pilha de coisas que deveriam ser jogadas no lixo.
          - Hey, você aí no chão! Suma daí!
          Sakito ergueu a cabeça rapidamente, assustado com a voz dura e um tanto quanto grosseira. Seu rosto, marcado por lágrimas e também precisando ser lavado, além de culminar com todo o seu cabelo despenteado, não era uma visão bonita. Muito menos de noite, no chão da rua que passava nos fundos de uma casa de chá deveras respeitada. A mais respeitada da crescente e pulsante Edo.
          Masayume. A casa de chá onde todos os sonhos se tornavam realidade, ou pelo menos, ficavam um pouco mais próximos de se concretizarem.
          O funcionário da casa jogou tudo que tinha nos braços no chão, não muito longe de Sakito. Lançando um olhar estranho para o jovem silencioso e em lágrimas, ele se limitou a entrar de novo, fechar a portinha decadente e fazer um barulho de desprezo com o fundo da garganta.
          Isso não abalou o estado de espírito do herdeiro dos Edokawa. Vendo que não era mais incomodado, ele simplesmente continuou ali, parado e chorando baixinho, sem se importar com quem poderia ver alguém da nata da sociedade japonesa naquela posição.
          Ele não saberia dizer quanto tempo passou até que a mesma porta se abriu, mas Sakito novamente a ignorou. Dessa vez, porém, passos pequenos e delicados se aproximaram, e ele sentiu uma mão no seu ombro esquerdo.
          - Daijoubu desu ka?
          A voz agora era feminina, cheia de compaixão; completamente o oposto da que ouvira minutos atrás. Ou seriam horas? Somente então ele levantou a cabeça, encontrando o rosto maquiado de uma mulher que deveria ser mais velha que ele, mas escondia um pouco da idade com a ajuda da maquiagem que usava. Seu kimono era visivelmente mais trabalhado do que os kimonos normais, e seu obi era ricamente bordado; ela não era uma simples mulher, e deveria ter um posto alto na casa de chá logo ao lado.
          Sem forças para falar, o único sobrevivente dos Edokawa apenas balançou a cabeça positivamente. Era uma mentira, mas ele não queria preocupar uma mulher. No entanto, a moça não se afastou, abaixando-se ao lado dele: 
          - Eu entendo o quê você deve estar passando... Às vezes os nobres se excedem, ne? Venha comigo, eu vou fazer um chá para você se acalmar.
          Piscando e sem entender o que aquela mulher dizia, Sakito apenas se deixou levar, a palavra "nobre" ficando na sua mente. Ele era nobre; o que ela poderia ter enxergado entre nobres e ele? Será que ela sabia quem ele era?
          Sakito suspirou. Ninguém deveria conhecer seu rosto nas ruas... Ele raramente saía de casa e não reconhecia aquela mulher. Ele passou pela pequena porta, caminhando como um zumbi por um jardim não muito vistoso e entrando pelas portas dos fundos de um estabelecimento grande e movimentado.
          As mesmas mãos que o levaram para dentro fizeram com que ele se sentasse em um pequeno banco de madeira. Sakito nem olhava ao redor, mas sabia que estava na cozinha pelo barulho. Erguendo a cabeça, ele tentou descobrir em que parte da cidade estava, mas não obteve sucesso.
          Enquanto esperava pelo chá que a bondosa mulher disse que iria fazer, o mesmo homem de antes entrou na cozinha. Lançando-lhe um olhar carregado de desconfiança, ele se aproximou com passos largos de Sakito, parando bem perto dele e falando com a voz mais alta ainda:
          - O quê você está fazendo aqui?
          - Eu... - era a primeira vez que ele falava desde que saíra de casa; sua voz, antes elogiada por ser pausada e agradável, soava rouca e deselegante nos seus próprios ouvidos - Eu...
          - Yamaguchi-san! Deixe-o em paz, por favor! - era a voz da simpática moça que retornava com uma chávena nas mãos, estendendo-a para Sakito - Aqui, desculpe a demora.
          Com o chá em mãos, o jovem Edokawa ficou sem saber o que fazer, lançando um olhar para o alto homem que o encarava. A mulher o encorajou a beber, olhando de uma maneira cansada para o homem chamado Yamaguchi.
          - Etsuko-san, eu não acho que seja certo ficar trazendo funcionários de casas rivais para cá!
          - Não importa se ele é de uma casa rival, ele precisa de ajuda! - ela exclamou, sorrindo rapidamente para Sakito quando este finalmente levou o chá aos lábios.
          - As pessoas que trabalham na casa dele deveriam fazer isso! - Yamaguchi bradou, várias pessoas da cozinha agora paradas e olhando o desenrolar da cena. Aparentemente, aquilo não era muito normal, mas Sakito não conseguia prestar atenção em muito mais coisa além do diálogo que se desenrolava na sua frente.
          - Mas não fizeram, Yamaguchi-san! E se eu posso ajudá-lo, por que não fazê-lo?
          - A sua bondade vai matá-la um dia, Etsuko-san.
          - A bondade não mata pessoas jamais, Yamaguchi-san.
          Todo o ambiente ficou imerso em silêncio quando uma terceira voz tomou parte na conversa. Sakito temeu levantar os olhos da sua chávena, agora quase vazia, mas acabou por fazer isso.
          Etsuko e Yamaguchi estavam calados, fazendo pequenas mesuras para o homem que havia se aproximado. Ele era relativamente baixo, mas isso não era notado por causa da roupa que ele usava: muito trabalhada, colorida e de extremo bom-gosto; era um traje caro. Muito caro. Sakito conseguia calcular inconscientemente o valor da peça, ele mesmo tendo algumas semelhantes em casa. Eram pó agora, evidentemente.
          O jovem Edokawa se sentiu sob o exame do olhar de um médico. As íris que o observavam eram castanhas, mas donas de um brilho único e muito perspicaz; era como se sua mente ou alma estivesse exposta para aquele homem. De repente, Sakito se deu conta de que ele era alguém importante e, colocando a chávena de lado no chão, levantou-se e fez uma mesura profunda.
          Estando com a cabeça abaixada, o jovem herdeiro perdeu a leve contração que as sobrancelhas no rosto do outro homem haviam sofrido. Antes que o elegante homem pudesse fazer qualquer coisa a respeito do jovem que havia acabado de ser abrigado por Etsuko, alguém o chamou da porta da cozinha:
          - Hitsugi-sama! Estão pedindo que toque um pouco de shamisen!
          A cabeça de Sakito automaticamente se levantou quando nome "Hitsugi" ecoou no cômodo. Hitsugi? Hitsugi, o taikomachi? Piscando várias vezes, o herdeiro dos Edokawa tinha certeza de que viu um pequeno sorriso no rosto do outro homem antes que ele se retirasse da cozinha, os empregados ao pouco voltando a trabalhar normalmente. O corpulento Yamaguchi tinha ido para os aposentos sociais junto com Hitsugi.
          Etsuko ficou junto de Sakito, pegando a chávena de volta. Dando um pequeno sorriso para o jovem que agora estava sentado novamente no banco, ela sussurrou:
          - Hitsugi quer conversar com você assim que ele terminar seu serviço por hoje. Isso seria problema para você?
          Sakito balançou a cabeça negativamente. Mas ele tinha de admitir para si mesmo que não sabia porque um dos mais famosos taikomochis do país queria falar com ele.

          Os passos do ronin eram leves, porém sem destino. Ele não tinha a menor idéia de para onde estava indo, e francamente, aquilo não importava. Olhando para cima, seus olhos escuros encontraram o céu azul de abril, a primavera apenas começando em solo japonês.
          Um suspiro frustrado deixou seus lábios; a natureza parecia zombar da escuridão que era a sua alma, enfeitando-se e ficando pronta para o verão. Justo na época em que as flores apareciam novamente, nos meses em que os animais e as pessoas voltavam a se alegrar com a presença do sol... Ele se fechava.
          Outro destino não era possível; não havia participado da última batalha porque havia adoecido. Seu mestre, sem escolha, havia partido para o confronto, deixando seu discípulo aos cuidados de uma conhecida. 
          A mulher, experiente com remédios caseiros e dona de algum conhecimento sobre as plantas da região, aproveitou a primavera recém-chegada para obter o que precisava, conseguindo arrancar o jovem samurai de cabelos sedosos da sua febre delirante.
          Foram necessárias três semanas para que o debilitado samurai conseguisse vencer a febre; no entanto, um antigo aliado precisou de bem menos tempo para trocar de lado e assassinar seu mestre na calada da noite, com três golpes de punhal em locais estratégicos.
          Três semanas, três golpes. Ele não estava gostando nada do número três, ou pelo menos das formas como ele se manifestava na sua vida.
          De repente, o ronin ergueu a cabeça, ouvindo barulho e sentindo o chão tremer de leve; alguém corria, e vinha detrás dele. Rapidamente, o ex-samurai saiu da estrada de terra que seguia, escondendo-se atrás de uma árvore de tronco grosso, logo na beirada da mata que ali começava. Os seus olhos ficaram presos na estrada enquanto sua mão direita foi diretamente para a sua katana na cintura.
          No entanto, tudo que ele viu foram dois homens passando, carregando o que parecia uma espécie de maca. De fato os dois corriam e pareciam angustiados, mas não representavam perigo para ele. Voltando para a estrada, o ronin continuou pelo mesmo caminho, até encontrar um pequeno aglomerado de pessoas, alguns metros a frente. Olhando ao redor, o alto rapaz moreno percebeu que havia chegado a alguma vila.
          Aproximou-se em silêncio do grupo de pessoas, tirando a mão que estava sobre a katana até então. Reconheceu os dois homens de antes, e, com o cenho franzido, tentou descobrir o que estava acontecendo. Porém, imaginou o que havia ocorrido quando o choro alto, angustiado e profundamente melancólico de uma mulher encheu o ar, pequenos soluços e exclamações de espanto de outras pessoas completando a sinfonia.
          No meio da roda de pessoas, jazia um homem. O corpo havia sido dividido em dois; um corte longo e certeiro começava no ombro direito do rapaz e terminava no meio do seu tórax, do lado esquerdo. Aquilo havia separado a cabeça do restante do corpo, sem contar que havia soltado os braços do tronco também; era uma visão grotesca.
          A mulher que chorava compulsivamente tinha uma certa idade, e a ponta dos seus dedos estava suja de sangue; provavelmente tocara o morto. Ao seu lado, agachada no chão, uma jovem a abraçava e tentava consolar a pobre senhora que parecia prestes a desmaiar de tanta dor.
          Intrigado com a cena e tentando decifrar que estilo poderia ter em seu leque de opções um corte como aquele, o ronin não percebeu que um dos dois homens que avistara mais cedo estava olhando para ele, mais precisamente para sua katana.
          - Você, estranho! O quê sabe disso?
          Todos os olhos, menos os da senhora que estava próxima ao cadáver, voltaram-se para o recém-chegado, com expressões variando do ódio ao medo, passando pela simples indiferença. O ex-samurai pensou em ignorar a pergunta e ir embora, mas isso não era digno de um bushi. E não importava que seu mestre havia morrido; ele estava vivo e não iria desonrar ainda mais a classe dos guerreiros com uma atitude covarde.
          - Eu não sei de nada, senhor. Acabei de chegar aqui.
          - Mas carrega uma espada! Poderia ter sido você o responsável! - bradou um outro homem presente na pequena roda de pessoas, os olhos ligeiramente brilhantes; parecia que estava prestes a chorar - Esses ronins malditos são todos iguais, arruaceiros que não perdem tempo para destruir a vida de pessoas honestas!
          Os olhos escuros do ex-samurai se arregalaram, assumindo uma expressão neutra logo em seguida; ele deveria se acostumar com aquilo, com a desconfiança e o desprezo; seriam seus aliados se continuasse a viver. Pressionando os lábios em uma linha fina, ele sacudiu negativamente a cabeça:
          - Já disse que nada sei sobre isso, senhor. A julgar pelo estado do cadáver, a morte ocorreu há pouco tempo; se eu tivesse matado esse homem, o assassinato iria ter ocorrido em plena luz do dia, na certa com pessoas pela vila. Eu teria sido visto. E também, precisaria estar montado em um cavalo ou em um patamar mais alto; alguém do solo jamais teria o ângulo necessário para fazer esse corte.
          - É verdade.
          A voz calma de um menino, pouco mais jovem que o ronin, fez com que os olhares novamente trocassem de alvo. Ele balançou a cabeça de forma afirmativa devagar, suspirando.
          - Eu vi... Tudo. Foi um samurai quem fez isso. Ele havia perguntado alguma coisa sobre a região e como não obteve resposta... Matou Masahide.
          Masahide era o nome do falecido, aparentemente. Os olhos do ronin também estavam no jovem que havia falado:
          - Você tem certeza disso?
          O ex-samurai acabou por verbalizar o que muitos haviam pensado ali. Um samurai matando daquele jeito? Sem aviso nenhum? Não era possível.
          - Tenho. Eu estava fora de casa e vi tudo... Não pude fazer nada. - ele acrescentou, olhando com pena para a senhora que ainda chorava, embora de maneira mais controlada agora. A moça que estava abaixada também agora se encontrava de pé, observando o cadáver e o garoto que falava alternadamente - Esse ronin acabou de chegar aqui mesmo.
          - Masahide... - a senhora falou pela primeira vez, entre dois soluços - Masahide era surdo... Co-como ele iria responder?
          Um murmúrio de concordância percorreu a roda de pessoas, e o ex-samurai sentiu algo dentre dele esquentar; ele se sentia indignado. Nenhum bushi deveria ter o direito de tirar a vida de uma outra pessoa daquela forma. Não era para isso que samurais existiam...
          O ronin se ofereceu para ajudar a preparar os ritos fúnebres. Inicialmente, todos se mostraram contra a idéia, claramente hostilizando a presença de um samurai sem mestre nas redondezas. No entanto, o jovem de cabelos negros, mesmo com o kimono empoeirado da caminhada que empreendera para chegar até ali, inspirava um tipo estranho de confiança, e um a um, os moradores foram cedendo.
          A senhora que tanto havia chorado era a mãe de Masahide, e foi o jovem ronin quem a consolou depois de terminados os ritos fúnebres naquela noite. A pobre mãe também passou aquela noite na companhia de dois homens da vila mais o ronin, para garantir que nada lhe acontecesse, ou que o forasteiro não a atacasse com a katana; não sabiam muito do guerreiro que estava entre eles apenas há poucas horas.
          Depois de uma semana, ele acabou conquistando a confiança de todos, sobretudo do garoto que o havia inocentado no começo. E sete dias depois, o mesmo samurai que havia assassinado Masahide de forma cruel e desonrosa retornava à vila com um outro bushi, parando ali antes de ir para Kyoto.
          O jovem que havia servido como testemunha procurou o ronin na mesma hora, contando o que havia visto. Estreitando os olhos, o ex-samurai agradeceu a informação.
          Na manhã seguinte, tudo estaria acertado, e a morte do infeliz Masahide seria vingada. Por ele, o ronin Baba Yuji. Ele iria mostrar que mesmo um samurai sem mestre era capaz de boas ações, e que o exterior não era suficiente para julgar uma pessoa.
          Exatamente o oposto de como o arrogante samurai havia agido quando se deparou com Masahide na primeira vez.

          Depois que Hitsugi havia expressado seu desejo de falar com Sakito mais tarde e a sós com o mesmo, Etsuko havia cuidado da aparência do jovem; com um pano e água, ela conseguiu limpar o rosto e as mãos do herdeiro dos Edokawa, bem como arrumar um pouco o seu cabelo.
          Embora suas roupas ainda estivessem sujas e nada elegantes, a mudança que se operou no garoto que Etsuko encontrara na rua foi brutal: ela mesmo se espantou quando pôde ver melhor os traços atraentes e ao mesmo tempo marcantes do jovem. Parecia, de fato, uma outra pessoa.
          Sakito comeu pouco enquanto Hitsugi continuava a entreter nobres na casa de chá. Yamaguchi às vezes aparecia na cozinha, olhando ao redor para conferir se o novo protegido de Etsuko ainda estava lá e, quando constatava que sim, revirava os olhos de forma nada discreta. O jovem não se incomodava mais com isso aquela altura, esperando apenas que Hitsugi o liberasse logo.
          Mas ele não tinha para onde ir depois disso. No fim das contas, pouco importava se a conversa que o famoso taikomochi queria ter com ele levaria dez segundos ou dez anos.
          O herdeiro dos Edokawa havia dormido com a cabeça encostada contra a parede, assustando-se um pouco quando foi acordado de forma civilizada e suave por Hitsugi. Ao seu lado, estava Etsuko com um sorriso gentil. Sakito pensou em devolver o gesto caloroso da mulher que o havia acolhido, mas não conseguia; os olhos do rico, famoso e importante integrante do ramo do entretenimento japonês sobre ele causavam uma sensação de desconforto, como se sua alma estivesse sendo exposta.
          - Desculpe-me pela demora. Importa-se se conversarmos em casa? Teremos mais privacidade... E também não moro muito longe daqui.
          - Não, absolutamente não. - o jovem respondeu, fazendo novamente uma mesura. O taikomochi sorriu para dentro, observando Sakito e vendo também a mudança que se operara no seu físico com a ajuda de Etsuko.
          Depois de alguns minutos de caminhada, Hitsugi, Etsuko, Yamaguchi e Sakito chegaram a uma casa ampla, com um jardim bem-cuidado e inclusive enfeitado por um pequeno lago com carpas. O jovem olhou rapidamente o ambiente antes de seguir Etsuko para dentro da casa, os outros dois homens já fora do seu campo de visão.
          Dentro da mesma, o jovem retirou os sapatos e os arrumou na posição correta, virando-os para a saída; a única mulher no quarteto o esperava no corredor, e o levou pelo piso de madeira brilhante até um quarto, afastando com delicadeza a porta de correr e permitindo que Sakito entrasse.
          Hitsugi se encontrava ajoelhado no tatami, os olhos acompanhando cada movimento que o herdeiro dos Edokawa fazia. Quando Sakito se sentou de frente para o taikomochi e a porta foi fechada, ele notou que o outro já havia se livrado de parte da sua roupa cara de mais cedo.
          - Muito bem. Segundo o relato da minha irmã, ela encontrou você na rua que passa nos fundos da Masayume, depois que Yamaguchi já havia visto você antes e... Pedido para que você se retirasse.
          Sakito ergueu uma sobrancelha delicadamente; Yamaguchi não havia sido tão cortês assim, e pela pausa que Hitsugi havia feito na voz, o jovem nobre desconfiava que o taikomochi também sabia disso.
          - Sim, exatamente isso.
          Mordendo o lábio inferior e examinando o jovem que tinha na sua frente mais uma vez, o dono da casa falou mais uma vez, com uma voz calma porém decidida:
          - Você não é de nenhuma das casas de chá deste distrito, porque senão eu certamente reconheceria seu rosto. - ele acirrou os olhos ligeiramente - Você tem feições marcantes e muito bonitas, eu realmente teria me lembrado de você. Mas o que me chama mais atenção em você é como você se comporta e fala. Você...
          Sakito sentiu que deveria ter corado com o elogio, mas Hitsugi parecia prestes a falar algo sério. Engoliu esse pensamento e apenas escutou:
          - Você é um nobre, não é? Não sei o que levou você até aquela rua nos fundos da casa de chá, muito menos porque se encontra neste estado, mas tenho certeza de que você não foi abusado por nenhum homem bêbado... Quem é você?
          O herdeiro dos Edokawa prendeu a respiração, piscando várias vezes antes de elaborar uma resposta na sua mente. No fundo, o que ele tinha a esconder? Sua família, propriedade e qualquer perspectiva de um futuro haviam sido destruídos, não era verdade?
          Fazendo uma mesura até o chão, ele retornou para a sua posição inicial antes de responder:
          - Hajimemashite, Hitsugi-sama. Watashi wa Edokawa Sakito desu.
          Os olhos do taikomachi se arregalaram consideravelmente e ele se levantou com um salto, correndo até a porta de correr e colocando a cabeça para fora após abrir uma fresta. Vendo que não havia ninguém do lado de fora, ele retornou e sentou-se novamente no tatami, com muito menos elegância do que seria esperado dele.
          - Kami-sama. Você é... Edokawa Sakito?
          - Sou. - o jovem respondeu, estranhando a agitação do outro homem que agora olhava para as suas roupas e balançava a cabeça afirmativamente, como se houvesse compreendido algo - O quê houve?
          - Edokawa-san. Permita-me perguntar uma coisa antes de responder à sua questão... Por acaso sua casa foi incendiada hoje? O que justificaria você estar assim e longe da sua mansão?
          Sakito foi tomado pela surpresa, abrindo a boca e arregalando os olhos como nunca. Inspirando mais profundamente do que era necessário, ele tinha a impressão de que o ar queria fugir dos seus pulmões. Como Hitsugi sabia uma coisa daquelas?
          - Mas... Como? Aconteceu... Agora de noite.
          - Eu sei. - Hitsugi concordou com a cabeça - Edokawa-san, quando se trabalha como taikomochi, descobre-se muito sobre qualquer assunto e qualquer pessoa. Principalmente quando seus convidados estão bêbados.
          O jovem herdeiro se calou. As coisas começavam a fazer sentido.
          - Entre uma canção no shamisen e outra... Você ouve coisas. E pode juntar as informações e formar algo coerente se for esperto. Faz alguns meses desde que ouvi dois senhores arquitetando a destruição da sua família, Edokawa-san. Em meio a risadas e muito sake, decidiram que um incêndio era a melhor coisa, porque parecia natural no final das contas. Os criados também morreriam e ninguém iria dizer que era um assassinato focado nos Edokawa.
          Sakito estava mudo, chocado com o que ouvia. De repente, o incêndio mudava de figura, os gritos das pessoas que haviam morrido no mesmo ainda mais assustadores; não havia sido uma fatalidade, e sim algo premeditado. Pessoas eram cruéis a ponto de matar seus pais e criados por algum motivo que ele nem mesmo conhecia.
          Colocando as mãos na cabeça, o jovem sentiu todas as memórias daquela noite infernal voltarem, depois de terem sido aplacadas por algum tempo pelo chá de Etsuko e seus cuidados. Ficando com a cabeça no chão e contra o tatami, ele queria que tudo aquilo fosse um pesadelo; desejava abrir os olhos e se encontrar em casa, no seu quarto...
          No entanto, nada disso aconteceu. Sentiu o braço de Hitsugi envolvendo-o enquanto ele chorava novamente, sem perceber que Etsuko havia entrado no quarto e deixado chá para ambos ali, depois de sorrir penalizada para o irmão.
          Aninhando-se inconscientemente no corpo de Hitsugi, Sakito apenas ouviu a voz do outro, mais baixa e aveludada agora:
          - Edokawa-san, não se preocupe... Neste exato momento, pensam que você também morreu. E isso não é verdade; eu, Etsuko e Yamaguchi vamos mantê-lo escondido dessas pessoas, e ninguém saberá que a casa Edokawa ainda está viva. Não se preocupe... Sakito-san.
          Depois de alguns minutos, Sakito acabou caindo no sono, exausto da correria, das lembranças e das revelações. Hitsugi pegou a bandeja com o que sobrou do chá e saiu do quarto, lançando um último olhar para a figura que dormia em um dos vários quartos da sua casa.
          - E então? - Etsuko aguardava o irmão do lado de fora, torcendo as mãos. Pegando a bandeja de volta, eles conversaram enquanto voltavam para a cozinha.
          - Você quase acertou, ne-san. - o taikomochi respondeu - Ele não foi abusado por um nobre, mas ele é um nobre. Edokawa Sakito, para ser exato.
          - Edokawa? Mas... O quê houve com ele? Ele está bem?
          - Está. - Hitsugi assentiu quando chegaram na cozinha e se sentaram à mesa, Yamaguchi já esperando por ambos - E é necessário que ambos me escutem: aconteceu um incêndio hoje na mansão dos Edokawa, e era para Sakito ter morrido. Isso não aconteceu, mas ninguém deve saber. Precisamos escondê-lo e protegê-lo.
          - Hitsugi-sama. Isso não será possível. - Yamaguchi objetou - O senhor precisa sair com freqüência e alguém novo morando aqui traria suspeitas para o senhor. Não podemos arriscar a sua segurança.
          - Mas não podemos devolvê-lo para as ruas! Para onde ele iria, Kami-sama? - Etsuko argumentou, ainda torcendo as mãos em um gesto típico seu que evidenciava nervosismo. Hitsugi sorriu; era como se aqueles dois fizessem o papel da sua consciência.
          - Eu já pensei em algo. O melhor jeito de escondermos aquele garoto... É colocando onde alguém nunca iria pensar em achá-lo.
          - Hokkaido? - sugeriu Yamaguchi. A sugestão arrancou uma risada curta do taikomochi.
          - Não tão longe, Yamaguchi-san. A última coisa que esperariam de um garoto que precisa ser escondido e protegido é que ele fosse constantemente exposto, não é?
          - Faz sentido, meu irmão. - concordou Etsuko, colocando um pouco de chá para si mesma e erguendo a cabeça novamente - Mas como vamos arrumar o problema da moradia de Sakito-san?
          - Simples. Ninguém estranharia que um aprendiz de taikomochi vivesse com seu mestre, não é mesmo?
          Yamaguchi e Etsuko piscaram, adotando posturas diferentes então; a mulher sorriu de pronto, enquanto Yamaguchi pareceu cético. Sua função ali era, afinal, cuidar dos dois irmãos desde que o pai de Hitsugi e Etsuko o havia encarregado disso.
          Por fim, acabou cedendo. A noite foi passada em claro pelos três, escrevendo e planejando tudo para que a vida de Edokawa Sakito continuasse; bastava toda a infelicidade pela qual o jovem herdeiro já havia sofrido por ora.


Continua...

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Notas finais do capítulo

Notas: 1) Fui questionada sobre esse fato de um ronin desonrar casas e etc. Pelo que eu pesquisei, os ronins sofriam muito preconceito de todos os segmentos da sociedade japonesa, fosse da população ou dos próprios samurais. Eles eram tidos como arruaceiros/baderneiros e foram um grande problema no fim do período Edo (período que foi de 1603 até 1867, pegando a época da fic). No entanto, existiam ronins legais, que protegiam vilarejos e tudo mais (verão como mais tarde na fic também). Não sei se eles poderiam realmente desonrar uma casa por ficarem hospedados nela, mas acredito que isso seja possível. Se não for... Anh... Usem a imaginação de vocês!
2) Taikomochis são... Geishas homens! Acreditem se quiser, mas a palavra geisha (芸者) era usada apenas para homens até 1800; a primeira geisha mulher surgiu em 1751 e causou uma estranheza gigante. Taikomochi quer dizer "aquele que possui o tambor", já que uma das habilidades desses homens era tocar o taiko (tambor) muito bem e talz.
3) Shamisen é um instrumento musical japonês de cordas; podem clicar aqui para ver uma foto.
4) O último ítem que eu gostaria de mencionar são as casas de chá. Mais do que simples locais para tomar chá, eram ambientes onde pessoas ricas se divertiam com as geishas ou antes do surgimento delas, com os taikomochis. A mais famosa ficava no distrito de Gion, em Kyoto, e se chamava Ichiriki; aqui eu criei uma em Edo (capital do Japão a partir de 1603, renomeada Tokyo em 1868), chamada Masayume (正夢), cujo significado é "sonho que se torna realidade". Originariamente, queria algo relacionado com "pesadelo" (porque "nightmare" é o nome da banda em questão aqui), mas não achei nada legal.



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