The Devil Next Door escrita por M4r1-ch4n


Capítulo 20
Capítulo 20 (Parte 1/2)




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          Ouvindo uma voz feminina e monótona que chamava médicos e pacientes para os mais diversos lugares, Kaoru suspirou profundamente antes de apoiar o rosto nas mãos e revisitar os seus últimos trinta minutos no planeta Terra mentalmente.
          Não. Era. Possível.
          Alguém lá em cima não devia simplesmente desgostar da sua presença; alguém queria vê-lo morto e enterrado a sete palmos, preso em uma camisa de força e acorrentado dentro de um caixão cheio de pregos e mais alguns cadeados, só por garantia. Ou o equivalente disso em proporções de azar, situações absurdas e sofrimentos emocionais de todos os tipos.
          A única coisa constante que ele notou em todos os acontecimentos, sem qualquer surpresa, era justamente a presença de um certo ruivo.
          Por volta de trinta minutos atrás, Kaoru ainda estava se perguntando se era possível sentir tanto prazer de uma só vez na vida, depois de ter uma noite que beirava o surreal e o fantástico ao lado de Die. Cinco minutos depois, a campainha da sua sala tocou e ele se recusou a acreditar que aquilo era realidade e não apenas um efeito colateral esquisito do seu orgasmo.
          Um minuto e meio depois, ele viu o zelador do prédio estirado no chão, aparentemente morto ou desacordado. Vinte segundos após essa visão, Ayame apareceu ao lado do corpo, desesperada e gritando pela ajuda do irmão e do vizinho, ambos parados na porta em trajes sumários e olhares de interrogação em níveis distintos.
          Os próximos vinte minutos passaram em um borrão para o publicitário; honestamente, ele só lembrava de ter corrido pelo apartamento para agarrar uma camisa e um casaco para enfrentar o frio congelante do início de ano japonês, mais um par de sapatos que ele calçou no elevador e as chaves do próprio apartamento que ele trancou para somente depois lembrar que havia esquecido os documentos do lado de dentro. Os gritos histéricos de Ayame estavam tão altos nesse momento que ele optou por deixar a identidade e a carteira de motorista bem como o seu dinheiro no prédio, ele e Die carregando o corpo inerte do zelador para dentro de uma ambulância que havia sido chamada pela irmã do ruivo.
          No hospital, o idoso senhor foi levado para uma das salas de cirurgia, Ayame correndo para a recepção do local a fim de preencher todas as fichas e logo depois colando-se ao vidro mais próximo do zelador que ela encontrou. Kaoru, tonto e sentindo o cansaço acumulado da correria e dos esforços feitos junto a Die, desabou em uma das cadeiras do andar térreo do hospital.
          O homem de cabelos roxos quase se assustou quando sentiu uma mão no ombro, erguendo o rosto para encontrar os olhos preocupados de Ayame. A garota tomou a cadeira ao seu lado, esboçando um sorriso antes de falar:
          - Não se preocupe, Kaoru-san. Eu tenho certeza que Koetsu-san vai se recuperar!
          Kaoru levou longos momentos até compreender que a jovem falava do zelador internado.
          - Ah, claro. Tenho certeza. - ele respondeu, honestamente não conseguindo se importar com muita coisa nas condições precárias de sono e compreensão do mundo em que ele se encontrava depois do comportamento totalmente inesperado do ruivo naquela noite - Como ele está?
          Ayame suspirou, usando as duas mãos para amarrar o cabelo castanho em um rabo de cavalo. Alisando a frente da saia pesada de lã que ela usava, a garota respondeu:
          - Bem... Levando em consideração a idade dele. O médico disse que a parada cardíaca que ele sofreu provavelmente foi causada por um choque. Acho que foi a sua campainha, Kaoru-san. - ela comentou, inclinando a cabeça de leve - Lembra de ter levado choque antes ali?
          - Não... Nunca. - o outro respondeu, sentindo um arrepio percorrer o seu corpo ao lembrar dos choques de prazer que Die lhe proporcionara horas antes. Mas que coisa, por que diabos ele não conseguia parar de pensar no ruivo quando havia um homem quase morrendo em um quarto próximo dali?
          - Tivemos sorte, eu acho. Imagine se isso tivesse acontecido com você, Kaoru-san! Ou então com o oni-chan... A propósito, o quê vocês estavam fazendo que demoraram tanto para atender?
          Os músculos do corpo do publicitário congelaram: todo o sangue que ele possuía no seu corpo era necessário no cérebro para que ele conseguisse produzir uma resposta minimamente convincente. Se bem que as suas opções eram limitadas, levando em consideração o estado semi-despido de ambos.
          - Nós... Estávamos tomando banho. Quero dizer, um dos chuveiros do meu apartamento não funciona então utilizamos o banheiro do hall. Die estava entrando quando ele teve um problema e eu fui ajudar, mas tirei a camisa para não molhar enquanto regulava a água.
          O publicitário inspirou profundamente depois da sua explicação, não tendo notado que havia prendido a respiração durante a sua desculpa forjada. Ayame, no entanto, apenas assentiu vagarosamente com a cabeça, como se ligasse os fatos narrados à cena que presenciara.
          - Sou desu ne. Espero que o oni-chan não lhe dê muito trabalho, Kaoru-san. A qualquer momento pode mandá-lo de volta para casa, ele vai pro sofá sem problemas. Aliás... Você já está chamando o oni-chan de Die? - ela abriu um pequeno sorriso - Ele sempre reclamava de como você era sério com ele!
          Kaoru quis atirar na própria testa; uma explicação conjurada em tão pouco tempo tinha que ter algum problema. Mordendo o lábio inferior, o publicitário se permitiu alguns segundos de reflexão, assombrado ao descobrir que ele agora era capaz de pronunciar o apelido do outro de forma inconsciente. O quê queria dizer...
          - Niikura Kaoru, favor dirigir-se à lanchonete. Repetindo, Niikura Kaoru, favor dirigir-se à lanchonete.
          Os dois ergueram a cabeça juntos, procurando pelo alto-falante de onde havia vindo a voz entediante da secretária que o convocava para a lanchonete. Trocando um olhar de interrogação com Ayame, Kaoru se levantou da cadeira:
          - Vou até lá ver o que querem comigo.
          - Hai! Eu espero aqui, caso anunciem alguma novidade do Koetsu-san.
          - Tudo bem. - Kaoru concordou com a cabeça, dando dois passos em direção a um corredor livre de cadeiras para se virar para trás de novo - Quer alguma coisa de lá para comer?
          - Ah! Eu aceito um chá. Seria bom para esquentar. - a garota sorriu, agradecida pelo gesto gentil de Kaoru, que respondeu com uma pequena curva dos seus próprios lábios antes de partir em definitivo para o seu destino. Orientando-se por meio de placas, o publicitário descobriu que a lanchonete era mais longe do que ele supunha, ficando depois de vários corredores compridos e confusos.
          Finalmente ele entrou na pequena cafeteria, observando quase todas as mesas preenchidas por pessoas com semblantes graves e taciturnos, algumas comendo e outras apenas espiando a noite pela janela.
          Observando o ambiente enquanto guardava as mãos no bolso do casaco para se proteger da corrente de ar que ele sentia ali na porta, Kaoru decidiu que talvez fosse outra pessoa com o mesmo nome que havia sido chamada ali, porque ele não reconhecia ninguém.
          Comprando a bebida rapidamente para Ayame, ele resolveu pegar um café de máquina na volta, andando com cuidado para não derrubar o conteúdo verde claro que exalava um cheiro agradável. Com os olhos fixos na borda do copo de plástico cheio de chá, ele quase esbarrou em um médico que passava pelo corredor, murmurando uma desculpa.
          Mas, aparentemente, o médico não ficou satisfeito com a sua desculpa verbal, puxando o braço do publicitário e fazendo com que ele derrubasse o copo no chão. Abrindo a boca para emitir um protesto indignado, Kaoru se viu sendo arrastado para um cômodo escuro sem qualquer aviso, o barulho da porta sendo fechada logo depois atingindo seus ouvidos.
          - Mas que...
          - Shhhh, Kaoru. Eles não costumam ser muito legais com gente que se esconde nos quartinhos de limpeza.
          O publicitário piscou uma, duas e por fim três vezes antes de acreditar que aquela voz pertencia de fato a quem ele achava que pertencia. Na verdade, não fossem as circunstâncias bizarras, ele teria certeza de que só poderia ser...
          - Die? - ele perguntou, batendo-se mentalmente ao perceber que havia utilizado o apelido do outro. Ele não queria demonstrar de forma alguma que havia sucumbido a mais um dos desejos do ruivo ao chamá-lo daquele jeito.
          - Em carne e osso.
          A resposta foi seguida por luz, muita luz inundando a saleta de repente; o ruivo havia encontrado o interruptor. Atordoado com a claridade súbita, Kaoru levou bons segundos até abrir seus olhos novamente, focalizando-os na figura do seu acompanhante ruivo.
          O queixo do homem de cabelos roxos foi até o chão e voltou, pelo menos figurativamente, quando ele percebeu as roupas que o outro utilizava. Die estava...
          Vestido de médico. Com até um crachá do lado esquerdo do seu avental.
          - Você... - o publicitário deixou a frase morrer na sua boca, ainda correndo os olhos pela figura em branco do outro. O cabelo ruivo do outro era sempre um contraste formidável com o preto que ele já havia visto várias vezes no seu antigo chefe interino, mas branco... Por mais que Kaoru tentasse, ele não conseguia se lembrar de uma única ocasião em que Die tivesse escolhido aquela cor.
          As calças brancas eram normais, um pouco mais folgadas do que os olhos do mais velho dos dois homens ali prefeririam; a camisa, em compensação, de gola alta e aparentemente ideal para o frio do lado de fora, era mais justa e tinha o aspecto de ser macia ao toque, mesmo com grande parte dela sendo coberta pelo avental fino e alvo que chegava até a altura dos joelhos de Die.
          O homem de cabelos roxos não notou que ainda estava abrindo e fechando a boca como um peixe fora d'água, tentando em vão recuperar a fala que havia sumido momentos antes. Arregalando os olhos ante ao sorriso malicioso que se formou no rosto do outro, Kaoru foi inconscientemente para trás apenas para descobrir o quão estreito aquele quartinho era, suas costas fazendo contato com vários cabos de vassoura.
          - Você parece doente, Kao. Meio pálido e sem conseguir articular nenhuma palavra... Eu acho que vou testar os seus reflexos. - a voz sedutora do ruivo chegou em um sussurro ao seu ouvido por fim, sentindo o outro pressioná-lo contra a parede quando um beijo voraz colou ambos os corpos; pouco mais de meia hora separavam-nos da fantasia insana incentivada por Die na cama de Kaoru, mas parecia que o ruivo não só havia retomado o controle como a disposição para mais um round.
          Puxado pelo casaco aberto, o publicitário ouviu o barulho de vários objetos diferentes sendo afastados com impaciência, entendendo as ações do homem mais novo quando foi deitado em um pequeno espaço aberto no chão que ele não sabia existir. Suas mãos já apertavam, beliscavam e provocavam o corpo acima de si com vontade própria enquanto Kaoru se maravilhava com o jeito automático que as línguas de ambos se entrelaçavam, uma parte rebelde da sua mente dizendo que aquela habilidade toda só havia surgido com muita prática. Prática essa que o publicitário não queria reconhecer que havia acontecido, mas tampouco se arrependia da mesma.
          Um barulho repentino fez o mais velho dos dois homens congelar no chão, recusando-se a abrir os olhos; o que quer que estivesse acontecendo no mundo real era uma ilusão, por mais contraditória que aquela afirmação fosse. Prendendo a respiração como se aquilo fizesse tudo voltar ao normal, ele foi surpreendido por um grito agudo e nada familiar:
          - O quê está acontecendo aqui?
          Eles haviam sido pegos. Kami-sama, era o flagrante da vida de Kaoru, com toda a certeza. Nem mesmo o episódio na porta giratória do banco havia sido tão escandaloso ou traumático. Preparado para respirar fundo e tentar encarar as conseqüências com uma dignidade inexistente, o publicitário de repente sentiu a atitude mais inesperada do universo por parte de Ando Daisuke.
          O ruivo simplesmente deu início a mais um beijo, estranhamente profundo e que quase havia sugado a alma do outro. Sem entender nada, Die beijou-o por mais uma vez, em seguida aplicando tanta pressão com seu corpo na área do seu tórax que ele sentiu o ar parando de chegar aos pulmões, só voltando a respirar quando o ruivo saiu por completo de cima dele.
          - Ah, Miyatake-san! Esse jovem homem vinha andando quando ele teve uma parada cardíaca, derrubando chá pelo corredor e tudo mais... Não fosse pela minha presença aqui na hora certa, talvez eu não tivesse conseguido devolvê-lo ao mundo dos vivos. Desculpe o susto, mas precisei arrumar espaço para deitá-lo aqui e tirá-lo das vistas de curiosos.
          Arfando e com os olhos arregalados ainda, Kaoru se sentou lentamente no chão, observando pela primeira vez as proporções do estrago causado pelo ruivo no quartinho: pilhas de pacotes de toalha de papel e sabonete haviam desmoronado, bem como vassouras que haviam sido cuidadosamente enfileiradas ao longo da parede estavam espalhadas pelo chão. Baldes de metal haviam rolado para o pouco espaço que havia sobrado no chão e que não fora ocupado pelos dois, um deles praticamente nos pés da enfermeira que havia aberto a porta.
          A mulher em questão aparentava ter por volta de cinqüenta anos, não medindo mais do que um metro e meio e usando óculos grandes que lhe davam o ar de um besouro. A sua mão esquerda ainda estava na maçaneta, enquanto seus olhos corriam pela cena estranha no quartinho. Kaoru tremeu quando sentiu o olhar daquela senhora sobre ele.
          - Muito bem. Eu vou chamar a limpeza... O senhor deseja ser atendido pelo pronto-socorro? - ela perguntou, observando Kaoru com um misto de atenção e dúvida.
          - Iie, eu... Estou bem. Obrigado. - ele respondeu, se levantando com alguma dificuldade e sendo ajudado por Die, que o amparou de forma eficaz e profissional - Eu só preciso... Voltar para a sala de espera.
          - Pode deixar que eu o acompanho, Miyatake-san. Vou providenciar um chá novo também. Desculpe pela bagunça de novo! - Die falou por cima dos ombros conforme levava Kaoru lentamente na direção do hall de entrada, onde Ayame provavelmente os esperava. A enfermeira fez um aceno respeitoso com a cabeça e caminhou na direção oposta, provavelmente indo atrás de uma faxineira.
          Assim que dobraram um corredor, Kaoru gritou do jeito mais silencioso que conseguiu:
          - Você ficou louco?
          O sorriso que apareceu no rosto do ruivo não ajudou em nada a raiva assassina que o publicitário sentia a se dissipar. 
          - Eu, louco? E por que, exatamente?
          - Esta roupa não te diz nada? - ele perguntou, puxando o avental para demonstrar o seu argumento.
          - Diz muitas coisas. Diz que eu passei uma noite espetacular ao seu lado quando, de repente, Koetsu-san interrompeu tudo e na ânsia de chegarmos ao hospital, eu estava apenas com uma camiseta. O médico da ambulância me emprestou o avental dele, e disse para eu pegar algumas coisas emprestadas em um almoxarifado no segundo andar que eles têm para essas emergências, e aqui estou. De branco. Praticamente pronto para casar.
          Se Kaoru governasse o mundo, sua primeira providência seria a criação de uma lei que impedisse Die de desarmá-lo com a incrível facilidade que o ruivo tinha para tanto. O publicitário tinha orgulho e amor-próprio, não se esquecendo de um único momento de crueldade ou tortura psicológica patrocinada pelo homem mais novo; no entanto, todas essas lembranças ruins eram diluídas numa espécie de névoa intoxicante quando ele ouvia declarações como aquela.
          Como acreditar naquelas palavras tão perigosamente perfeitas... Quando as ações do dono das mesmas provavam suas intenções justamente na direção contrária?
          - Daisuke... - o homem de cabelos roxos falou, acirrando os olhos e decidindo jogar para escanteio toda a ansiedade estranha que ele sentia na altura do estômago, bem como um nervosismo que ele não tinha notado até então - Isso não tem graça nenhuma.
          - Não é para ser engraçado, Kaoru. - o ruivo replicou, seu sorriso diminuindo gradativamente até seus lábios retornarem ao formato de uma bela linha reta, os olhos castanhos de Die parecendo brilhar com uma intensidade assustadora - É mais sério do que você pensa.
          O tom de voz do pseudo-médico havia caído para um sussurro quando as últimas sílabas chegaram aos ouvidos do publicitário. Sentindo idéias, emoções e lembranças chocando-se dentro da sua cabeça em uma velocidade alucinante, o confuso homem de cabelos roxos tomou a única atitude que lhe parecia acertada naquele momento impregnado de loucura:
          Ele beijou Ando Daisuke.
          Na verdade, beijar não qualificava muito bem a cena, presenciada por uma dupla de enfermeiras, um acompanhante meio idoso de um paciente daquele corredor e um faxineiro; não existia um único verbo ou palavra que poderia descrever com precisão a seqüência de atos que Kaoru praticou naquele instante.
          Primeiro, as duas mãos do publicitário, geladas do tempo frio ou então do misterioso nervoso que ele sentia encontraram e agarraram em segundos o avental branco de Die, puxando o mesmo e, conseqüentemente, o ruivo que o vestia para junto do seu corpo para depois prensá-lo contra a parede, no mesmo momento em que ele atacou com furor os lábios divinos da criatura demoníaca que tinha agora em seu controle.
          Os dedos de Kaoru deixaram o avental para circularem o pescoço do ruivo e aplicarem toda a força ali, como se fosse possível colar ainda mais os dois corpos; o publicitário aproveitou os momentos iniciais de choque do outro para abrir caminho entre os lábios macios de Die, deslizando a sua língua para dentro da boca do mais novo dos dois e aproveitando para praticar tudo que ele havia aprendido ou então sonhado em fazer um dia.
          Inebriado com a sua própria investida, Kaoru deixou um leve suspiro escapar quando as mãos do ruivo se posicionaram na altura dos seus ombros. No entanto, a pressão agradável que ele esperava sentir ali não aconteceu, bem como o ardor costumeiro do ruivo durante os beijos não apareceu. Surpreso, o publicitário percebeu que era separado à força do corpo de Die que, assim que conseguiu se livrar de Kaoru, limpou a própria boca com as costas de uma das mãos, um olhar indecifrável no seu rosto.
          - Desculpem, desculpem. Não queria que vocês tivessem presenciado essa cena, mas ele é mentalmente instável. - a voz normalmente sedosa do ruivo chegava quebrada e ardida aos ouvidos de Kaoru, como uma garra de metal arranhando um quadro-negro - Já vou levá-lo para o seu quarto. Desculpem, desculpem...
          O mais novo dos dois então conduziu um Kaoru estático e sem reação pelo ombro, andando devagar com o ex-vizinho pelo corredor até virar a direita, sumindo da visão das testemunhas do beijo ardente do publicitário.
          - Kao?
          O estado semelhante ao choque em que o outro se encontrava foi quebrado ao ouvir aquelas duas sílabas, causando uma violenta separação entre os dois corpos. Kaoru desvencilhou-se com rapidez do ruivo, encarando-o com um turbilhão de sentimentos misturados onde a raiva e a incredulidade se destacavam.
          - Já disse para não me chamar assim. Na verdade, por que você não pára de me dirigir a palavra de uma vez por todas? Eu já não agüento mais os seus jogos, Daisuke!
          Com as mãos fechadas e prontas para socar alguém, o publicitário decidiu controlar seus impulsos assassinos bem como as lágrimas que ameaçavam cair dos seus olhos, andando cegamente por corredores e pessoas até encontrar a saída.
          A voz de Ayame, preocupada, chegou até os seus ouvidos como o eco de uma vida distante conforme ele fez sinal para um táxi e praticamente se jogou dentro do veículo, não se importando com o preço da corrida ou o destino da mesma.

          - Moshi moshi.
          - Shin? Você sabe onde está o Kaoru?
          -...Sei e não sei, Die-kun.
          - Como assim, Shinya?
          - A minha resposta depende de uma resposta sua antes, Die-kun. O quê exatamente você fez com o Kaoru-kun?
          - Eu nunca achei que você fosse do tipo interessado nos detalhes.
          - Die-kun, eu estou falando sério.
          - Eu sei, gomen. Eu... Shin, eu nunca estive tão nervoso na minha vida. O Kaoru desapareceu do hospital e eu estou procurando ele desde as duas da manhã. Eu... Eu quase telefonei para a mãe dele em Hyogo, mas achei que ela iria ficar mais preocupada do que ajudar.
          - Die-kun, faça o seguinte. Já são quase oito horas, você deve estar cansado. Venha até aqui em casa para comer alguma coisa... E assim conversamos também.
          - Tudo bem, Shin. Estou indo.
          Shinya desligou o telefone depois de emitir uma saudação de despedida, suspirando pesadamente depois disso. Devolvendo o aparelho para a base, ele se levantou do sofá próximo à janela e andou até o corredor, onde encontrou Toshiya saindo de um dos quartos, sua expressão carregada de concentração enquanto ele procurava fechar a porta sem fazer qualquer ruído.
          - Como ele está?
          - Mais... Calmo. Acho que ele finalmente dormiu, Shin-chan. - o colega de divisória de Kaoru informou, sorrindo pela primeira vez desde que ele havia chegado ali, por volta das sete horas da manhã - Lembra da outra vez que eu encontrei o Kao no fliperama quando ia para o escritório? Dessa vez foi pior... Ele estava mais assassino e mais compenetrado no jogo. Eu tive que desligar a máquina para ele me notar.
          Shinya torceu as mãos preocupado, fazendo apenas um aceno afirmativo com a cabeça. Andando para a cozinha, ele gesticulou para que o seu colega o acompanhasse, ambos sentando à mesa. O bule cheio de chá já havia esfriado, mas mesmo assim o secretário colocou um pouco em duas xícaras que estavam ali, próximas de uma terceira que Kaoru havia esvaziado por várias vezes.
          - Die-kun está vindo para cá.
          - Ele está? Ele sabe que o Kaoru-kun está aqui?
          O homem loiro sacudiu a cabeça negativamente.
          - Iya. Dependendo do que ele me contar, eu vou dizer isso a ele.
          - Wakkata. Shin-chan, eu preciso ir para o escritório, ne... Yoshiki vai me matar se eu não aparecer no horário.
          - Certo, certo. Avise Hayashi-san da minha ausência e da de Kaoru também, por favor.
          - Claro... Vou falar sobre Die-kun também, só por precaução. Se bem que o Die é chefe dele mesmo, ne.
          - Verdade. - os dois se levantaram, Shinya conduzindo o outro até a porta com um sorriso genuíno no rosto - Arigatou, Totchi. Você é um amigo de verdade.
          - Sempre às ordens. - o bonito homem replicou, saindo com passos rápidos para o hall e chamando o elevador - Se precisar de mim é só ligar, Shin-chan.
          - Pode deixar. Bom trabalho, Totchi!
          - Arigatou!
          Quando o homem de cabelos azuis havia sumido pelo elevador, Shinya fechou a porta do seu apartamento e respirou fundo, passando os dedos pelo cabelo ligeiramente cumprido e imaginando o que Die havia aprontado dessa vez. Ele não era cego e sabia muito bem o quê estava acontecendo entre os dois, mas se tinha algo que ele desconhecia era como Kaoru estava encarando tudo. Pelo jeito que o publicitário havia aparecido no seu apartamento naquela manhã, ele podia dizer que tinha uma idéia agora.
          O tempo de organizar a cozinha e arrumar a sala foi suficiente para a campainha soar novamente, anunciando o ruivo do lado de fora dessa vez. Mordendo o lábio inferior e finalmente se dirigindo à porta, Shinya deixou a figura ansiosa e notadamente descomposta de Ando Daisuke entrar, fazendo o outro homem se sentar no sofá enquanto ele mesmo tomava lugar na extremidade oposta do móvel.
          - Shin, me diga o que você sabe.
          A voz de Die saiu aflita e beirando o desespero; o atraente rosto do chefe de andares superiores ao de Shinya estava marcado por olheiras, seu cabelo estava despenteado e o suéter que ele usava estava do avesso, prova clara de que o outro estava suficientemente abatido para não perceber aquela gafe ou não se importar com ela. Aquela observação aqueceu o coração do secretário; era um bom sinal.
          - Die-kun, talvez você pudesse começar explicando como não sabe onde Kaoru-kun está, se mora com ele atualmente.
          Um breve período de silêncio se seguiu antes de um sorriso triste iluminar o rosto de Die:
          - Shin... Você é impossível, sabia? Não dá para negar nenhum pedido seu, mesmo quando eu sinto a bronca inclusa.
          O outro deixou seus lábios se curvarem para cima inocentemente, sem falar nada, mas apertando uma das mãos do ruivo entre as suas de forma amigável.
          - Bom, nós... Nós estávamos em casa, digo, na casa do Kaoru quando de repente a campainha tocou. O zelador do prédio tomou um choque da campainha e caiu duro no chão, ou pelo menos eu acho que foi isso que aconteceu para justificar a cena. De qualquer forma, nenhum de nós dois acreditou no que via até a Ayame aparecer, desesperada, gritando por socorro. Conseguimos colocar Koetsu-san numa ambulância e fomos para o hospital.
          - Isso à noite?
          - Hai. Bom, pulando os detalhes, eu acabei me vestindo de médico e... - Die viu a expressão de incredulidade no rosto do outro - Não pergunte, Shin.
          - Eu não ia perguntar, mas eu tenho a impressão de que isso está relacionado com o sumiço do Kaoru-kun.
          - ...Você está sempre certo. Seria irritante se você não fosse uma pessoa tão adorável.
          - Die-kun... O quê você fez?
          O ruivo hesitou por um momento, percebendo a diferença entre saber que alguém desconfiava de um caso entre ele e Kaoru e confirmar o affair diretamente. Suspirando e jogando os seus temores para escanteio, Die ergueu o rosto e fitou os olhos de Shinya, sabendo que se existia alguém na face da Terra em que ele podia confiar, esse alguém era justamente o secretário.
          - Digamos que eu armei uma pequena armadilha para o Kaoru. Nós dois nos fechamos em um quartinho de produtos de limpeza e daí ficamos lá até sermos descobertos. Mas escapei porque estava de médico... Então depois disso, em um outro corredor, o Kaoru... Shin, o Kaoru me beijou.
          - E isso é uma novidade?
          - Não. Quero dizer, eu conto nos dedos de uma mão quantas vezes ele iniciou alguma coisa entre nós, mas... Shinya, não foi apenas um beijo, mas o beijo, entende? Foi a coisa mais... Mais intensa que eu já senti vindo dele. Além de ódio, claro. - o ruivo acrescentou a última parte em uma voz mais baixa, trazendo um sorriso ao rosto do seu ouvinte.
          - E depois?
          - Eu... Eu o afastei. E simulei nojo... E falei para as pessoas do corredor que ele era louco e que aquilo não aconteceria novamente.
          - Daisuke!
          O ruivo se encolheu no sofá como uma criança que era repreendida severamente pelos pais ouvir Shinya se dirigir daquela forma a ele era algo raríssimo, suficiente para indicar a gravidade da situação.
          - Não me admira que Kaoru-kun tenha sumido.
          - Mas ele não me deixou explicar, Shin! Eu estava com um crachá de um médico, eu era um suposto funcionário daquele lugar! Como eu ia me atracar com outra pessoa no meio do corredor, por mais que meu corpo inteiro estivesse gritando e pedindo desesperadamente por aquilo? Como? Eu não podia fazer nada naquela hora, estava virtualmente de mãos atadas... - naquela hora o ruivo massageou os pulsos com os dedos, fazendo Shinya erguer uma sobrancelha ante as marcas ali presentes - Eu não tive escolha.
          O homem loiro ponderou sobre a explicação do outro, observando a expressão miserável que havia se apossado do rosto do outro. Shinya sabia que Die era uma pessoa boa, sincera e muito responsável quando ele queria; aquele era um momento onde o melhor do ruivo estava sendo demonstrado, sob uma das maiores adversidades que já haviam cruzado o caminho dele.
          - Eu sou um idiota.
          - É um idiota. - Shinya concordou placidamente, tirando um sorriso melancólico do ruivo - Mas quem não age dessa forma algumas vezes na vida?
          - Muitas vezes, no meu caso.
          - Você é quem está dizendo. - o secretário se levantou do sofá, endireitando algumas rugas que haviam surgido no seu casaco de frio - Die-kun... Eu entendo o que aconteceu; ou pelo menos acho que compreendo tudo. Não cabe a mim perdoá-lo ou qualquer outra coisa, no entanto. Não fui eu o envolvido.
          Os olhos do ruivo acompanhavam a figura de Shinya com expectativa, iluminando-se como os de uma criança no Natal; ele sabia que o secretário estava prestes a divulgar algo muito importante e que ele iria ajudá-lo.
          - Você sabe onde Kaoru está, Shin?
          - Sei. E você vai poder ir até ele se desculpar e explicar o que quiser... Só não garanto que ele vá ouvi-lo, Die-kun. Boa sorte. - o outro falou e caminhou na direção da porta, abrindo a mesma e sorrindo internamente ao visualizar a expressão de interrogação que Die provavelmente tinha no rosto a essa hora - Me ligue quando eu puder voltar.
          - Mas, Shin! E Kaoru?
          O loiro se virou da porta, passando a chave para o lado de fora e se preparando para dar uma caminhada longa pela cidade, ou até mesmo visitar Yoshiki no trabalho:
          - No meu quarto, dormindo. Boa sorte, Daisuke.
          E pela primeira vez em muitos anos, o ruivo sentiu seu coração aquecer ao ouvir seu nome por completo.


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Notas finais do capítulo

O capítulo 20 teve de ser dividido em 2 partes devido ao tamanho do texto. As notas finais estão depois da parte seguinte. Desculpem o transtorno.



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