Seriout escrita por wateru


Capítulo 1
A.F.A.


Notas iniciais do capítulo

Glossário do Primeiro Capítulo:
Quiçá – talvez
Serial killer – assassino serial
Modus operandi – expressão vinda do latim, significa “modo de operação”



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Em um local bastante escuro, quase entregue ao breu total, duas pessoas conversavam.

– Estás com medo – disse.

– Não estou – a mulher respondeu, resoluta.

Mentira tua. Evidente que estás. E não fiz pergunta, afirmei.

– E você? Também não estaria? – ela retrucou, evitando ser o foco do diálogo por mais tempo.

– Não compete a ti arguir – respondeu secamente. – Falta-te propriedade para tal. Responder-te-ei, quiçá, se me conquistares os tímpanos com uma bela interrogação.

– Que assim seja. – Ela aceitou o desafio como um jogo. Respirou fundo por dois segundos, e formulou:

– Medo de ser descoberto, de ser pego... Não tem? – Angelina pôs em prática seu talento de persuasão.

O rosto moreno à sua frente sorriu. Fugiu a face da escuridão, evidenciando fios maltratados de cabelo, cuja cor ia se alternando entre o ruivo e o prateado. Agora iluminada pela luz fraca do bastão de fósforo, sua boca se moveu novamente, formando um “não” inaudível, porém inteligível. Voltou à postura anterior, e completou:

 

– Descobrir-me-ão apenas quando for de meu desejo. É certo que me buscam; no entanto, é impossível que me encontrem por ora.

– Não é tão impossível assim, já que eu estou aqui. Não concorda?

– Requereste réplica e lha estou dando. Portanto, espere que eu conclua. – As palavras foram suficientes para causar o efeito desejado. A mulher estava funereamente calada. Ele prosseguiu. – Escolhi a ti; busquei-te, não a eles. Caçam-me, de várias formas, cada mente primando certa técnica, mas eu não os estou procurando. Suas mentes simplórias anseiam por decifrar meu passo seguinte por meio de estudos acerca do que já fiz. Mentes infantis, essas... Querem alcançar-me tecendo comparações a seres de escala inferior, indignos de comparação. Para sua desventura, não sou como “eles”. Sou ciente de meus atos, notoriamente responsável por eles, mas estes não se refletem em mim; e não necessito da mínima força para evitar que meu passado seja materializado em medo.

Ela havia entendido a mensagem – os métodos convencionais de investigação nunca achariam a pessoa responsável por tudo o que aconteceria. Aquele era um ser humano diferente, que não se sentia coagido ou culpado pelo que fazia; tamanha frieza lhe garantia uma enorme segurança de si. Como ela havia previsto.

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– Frederick Abberline, subdivisão de Sociopatia.

 

Parado, à frente da porta automática, estava um homem alto, esguio, de barba feita e rosto bem conservado para sua idade. Frederick era o criminologista responsável pela investigação de assassinatos envolvendo psicopatas ou quaisquer outros tipos de criminosos com supostas “alterações neurológicas”. Veterano no ramo, era famoso pelos casos de serial killers que ajudava a colocar na cadeia. Mas, mesmo em seus vinte anos de trabalho árduo para a polícia de Londres, nunca recebeu os méritos de suas conquistas. Não ostentava riqueza; vivia, sim, com certa simplicidade. Seus colegas de trabalho admiravam seu caráter, e traduziam sua personalidade como “cada vez mais rara hoje em dia”: preocupava-se em servir ao seu país, recebendo reconhecimento ou não. Como o saudoso e mítico Frederick Abberline de séculos antes, aquele que solucionou o misterioso caso do estripador Jack. Seu antepassado direto, agora resgatado na figura de um médico especializado em transtornos mentais. Como outros familiares que o antecederam, Frederick resolvera especializar-se em algo que poderia incluí-lo no sistema policial londrino.

Naquele momento, no entanto, sua mente vagava em outro limiar: um turbilhão de informações recentes o deixou meio zonzo, e seus olhos já davam sinais de cansaço após uma noite extremamente agitada.

Ainda em sua casa, na noite anterior, o perito de meia-idade estava em sua poltrona, assistindo ao noticiário das oito. Não estava realmente interessado no que se passava, aquele era apenas um ritual que ele gostava de praticar sempre que podia. Para ele, fixar o olhar no nada durante algum tempo era suficiente para mantê-lo atento ao trabalho no dia seguinte. Uma reportagem inusitada, contudo, foi capaz de puxá-lo de volta à vida real.

 

– O corpo foi encontrado há duas semanas, em pleno distrito de Charing Cross – a repórter seguia dizendo – As autoridades policiais responsáveis pelo caso ainda não conseguiram pistas sobre quem poderia ser o assassino do rapaz de vinte e dois anos. O caso figura como o vigésimo nono, somente este ano, na lista de casos não resolvidos. O próprio superintendente da organização policial da cidade, o delegado criminalista William T. Spears, confessou que os crimes estão cada vez mais complexos, e os criminosos cada vez mais preparados.

– Mas os culpados por isso somos nós mesmos – Frederick disse para si, enquanto apanhava os últimos salgadinhos de milho do pacote. Ele nunca gostou dos seriados policiais que, segundo ele, “caricaturam o sistema de investigação criminal”; sempre dizia que os mesmos só serviam para deixar os assassinos mais atentos. – Chega de crimes por hoje.

Frederick já estava com o controle remoto apontado na direção da TV, pronto para trocar de canal, quando um painel de imagens surgiu, acompanhado da voz da repórter. Eram exibidas fotografias dos rostos das vítimas do último mês, cujos casos ainda estavam em aberto. Enquanto elas apareciam, a mulher descrevia o motivo de cada morte. Frederick desistiu de trocar de canal.

– Norma Wackin, 53 anos, foi sedada e, em seguida, teve a genitália destruída por um instrumento ainda não identificado. Em seguida, foi lançada da janela do quinto andar do prédio onde morava.

Frederick estava atônito. À medida que as vítimas eram listadas, algo ia tornando-se cada vez mais claro em sua mente.

– Joseph Nielsen, 15, teve sua caixa torácica dilacerada por um instrumento cortante feito de gelo. Ralph Houvare, 30, preso por pregos à parede da própria casa...

Injeção de Cianureto de Potássio diretamente no cérebro... Clariccia Boscoli, 15... Esquartejamento pós-morte... Pedaços de pano foram usados para sufocar... Casey Jones, casada... Queimaduras de terceiro grau por todo o corpo...

 

A ficha das vítimas aparecia, uma a uma, fulminando Frederick com informações, que, mesmo difusas e desencontradas, faziam algum sentido para ele. Aquela não era bem a noite que ele esperava ter, mas não reclamou; afinal, estava prestes a realizar uma descoberta importante.

Frederick passou a madrugada lendo, pesquisando e cruzando informações. De hora em hora, recorria aos livros de psicologia e psiquiatria que utilizara na faculdade. Ele tinha certeza de que, mesmo depois de um bom tempo sem casos como esse, estava diante da lista de vítimas de um assassino em série. Lista essa que o perito pegou para olhar mais uma vez, enquanto aguardava de frente para a porta do gabinete geral da Divisão de Homicídios, esperando que a secretária do supervisor autorizasse sua entrada. Enfim, a porta eletrônica emitiu um bipe, abrindo-se ruidosamente para dentro.

– O senhor William está na sala dele, pode entrar – a moça disse, forçando um gesto de simpatia.

Frederick respondeu com um “obrigado” automático, esquecendo-se completamente das mesuras e do cavalheirismo. Estava completamente mergulhado em pensamentos e raciocínios. O tempo de atravessar o corredor foi suficiente para que ele conseguisse recordar todos os argumentos que ensaiara para convencer o supervisor. O que, ele sabia, não seria nada fácil.

– Olá, senhor Abberline – William T. Spears o cumprimentou, de pé, enquanto alinhava a própria gravata.

– Obrigado por me receber, senhor Spears – Frederick falou, sentando-se em uma das cadeiras à frente da mesa. – O que venho pedir é muito sério.

William ajeitou os óculos com o dedo mindinho. Cerrou os olhos, em menção de observá-lo melhor, e esperou que ele prosseguisse. A conhecida expressão de Spears intimidaria qualquer oficial de polícia que chegasse para pedir aumento ou alguma promoção. Após aquele olhar, só “restavam” aqueles que tinham alguma preocupação real para compartilhar. Frederick puxou ar pela boca, evidenciando o começo do discurso:

 

– Estamos lidando com um caso atípico de assassinato em série, senhor. E está acontecendo sob as nossas vistas há, mais ou menos, três meses.

Após alguns instantes de silêncio, William se rendeu:

– Continue. – Isso, certamente, demonstrava o interesse do supervisor em saber tudo o que Frederick sabia (ou pensava que sabia).

– Bem... – Abberline retornou, procurando as palavras certas. – Ontem à noite, foi exibida uma reportagem sobre os assassinatos não solucionados que vêm ocorrendo ultimamente. – William também havia assistido à matéria, e não gostou nem um pouco de como as informações foram tratadas. Cada frase da jornalista parecia denunciar a suposta decadência do sistema de investigação da polícia londrina. – E creio, senhor, veementemente, que estamos tratando os casos de forma errada – Frederick entregou algumas folhas de sulfite recentemente impressas, com uma síntese do que havia pesquisado durante as últimas horas. O supervisor não disse nada. Apenas esperou que Frederick continuasse.

– Aqui está uma relação de todos os casos de assassinato em aberto nesse semestre. Como o senhor pode notar, os últimos três meses apresentam uma elevação desproporcional em relação aos outros períodos: a média subiu de dois para oito mensais.

Frederick pausou sua fala para notar William, compenetrado na avaliação da lista. E, antes que retomasse a fala, o supervisor observou:

– Assassinatos não são ações da bolsa, senhor Abberline.

– E nem estou insinuando que sejam – Frederick retorquiu – E, antes que o senhor diga, esta não foi a evidência que encontrei para vir até aqui e pedir o caso...

Os casos, o senhor quer dizer – Spears corrigiu – O senhor bem sabe que alguns destes crimes estão sobre investigação da Narcóticos, outros são de competência da divisão de Roubos e Furtos...

 

– O senhor chegou ao ponto que eu queria. – Frederick demonstrava empolgação, mesmo com profundas olheiras, e William se assustou com a revelação. – Cada caso foi direcionado ao setor que a polícia considerou ser mais adequado. Essas interpretações isoladas impediram que os crimes fossem vistos como um todo.

– Mesmo agora que o senhor me trouxe esta lista... Ainda assim, não consigo enxergá-los como um todo – William confessou, quase se arrependendo de ter dado ouvidos àquele homem.

– Eu sei disso. A relação entre eles é bastante sutil, mas posso garantir que ela existe.

– Estou esperando. – O senhor Spears recostou-se na cadeira, estendendo a lista para Frederick e permitindo que ele a pegasse. Este, no entanto, recusou:

– Não é necessário. Sei todos de cabeça. Fique com ela para poder acompanhar o que digo.

William deixou escapar um pequeno sorriso, e balançou a cabeça afirmativamente, como se dissesse “isso é que é eficiência”. Frederick não se demorou mais, e explicou:

– Há três meses, mais ou menos no início de agosto, essa lista começou a ficar repleta de assassinatos estranhos, porém aparentemente isolados. As vítimas são de ambos os sexos, com idades, profissões, históricos de vida e tipos físicos completamente diferentes. Até mesmo a forma das mortes não coincide.

Sem tirar os olhos do papel, o supervisor apenas balançou a cabeça. Frederick começou a se irritar com a indiferença de seu superior, mas não deixou transparecer:

– A princípio, parece impossível traçar uma linha comum entre todos esses crimes. Mas, analisando o modus operandi aplicado em cada um, posso afirmar seguramente que, apenas nesse trimestre, vinte e dois assassinatos foram cometidos pela mesma pessoa.

Enfim, o supervisor tirou os olhos da lista. Ergueu a cabeça lentamente, na direção de Frederick, e ajeitou novamente os óculos.

 

– Então, o senhor quer mesmo que eu acredite que um assassinato em série, responsável por mais de vinte mortes em três meses, simplesmente passou despercebido pelos olhos dos investigadores? E, afinal, o senhor poderia acabar logo com esse suspense e me falar qual o aspecto que une todas essas mortes, se o senhor mesmo confessou que a várias causas foram diferentes uma da outra?

O perito notou, naquele momento, que não era o único impaciente da sala.

– O fato de não haver evidências, senhor Spears. Em todos os casos que assinalei na lista, não há a presença de pistas, rastros, nada que possa levar ao assassino.

– Como não? – William estava incrédulo. – As armas utilizadas, os materiais... As cenas de um crime sempre são cheias de pistas!

– Quando digo que não há evidências, refiro-me à pós-investigação. O caso da garota incendiada, por exemplo: a perícia examinou o material investigado, e descobriu que a glicerina utilizada havia sido comprada aos poucos, talvez por mais de uma pessoa. Havia várias composições e cores diferentes no material coletado.

– Entendo – William afirmou – As evidências não levam a lugar algum.

– Exato – Frederick corroborou – E, sinceramente, senhor, não imagino que seja apenas obra do acaso: o número de “crimes perfeitos” – o perito enfatizou a ironia da frase – aumentando exponencialmente nos últimos meses.

William tirou os óculos – iria, ao menos naquele momento importante, livrar-se de seu tique de ajeitá-los de dois em dois minutos.

– Senhor Abberline... – O supervisor respirou fundo. – Talvez o senhor não saiba o quanto isso seria prejudicial a todos. Eu compraria briga com muitos departamentos, incluindo o setor geral. Tal atitude poderia ser interpretada como desespero nosso, ou, até mesmo, o início de nossa franca ruína. Seria o fim do sistema investigativo como conhecemos hoje.

– Sistema ineficaz, diga-se de passagem – Frederick falou, fugindo os olhos da direção do homem que estava à sua frente.

 

– O fato é, Frederick... – William deixou escapar o nome, fazendo notar seu crescente nervosismo. – O fato é, senhor Frederick, que os padrões aceitos pela polícia londrina para considerar um caso como assassinato em série não passam por esse raciocínio: “não haver evidências” só demonstra que o criminoso tem perícia, não que ele seja um serial killer.

– O senhor está desistindo sem ao menos tentar – o perito parecia dizer a si mesmo, como se fizesse uma reflexão.

– Porque sei que não há futuro nisso. Infelizmente, não posso dar o caso ao senhor. E mais: sugiro que vá dormir um pouco, o senhor não está nada bem.

– Mas eu pesquisei a noite toda procurando informações em jornais e na internet – Abberline falou, procurando uma fagulha de aceitação nos olhos de seu superior. – Acho que as informações que encontrei são suficientes para convencer a todos...

– Não. Isso é o que o senhor está dizendo a si mesmo todos os segundos. – Nesse ponto, ele estava certo. O próprio Frederick relutava em aceitar aquela ideia.

– Tudo bem, senhor Spears, não irei mais tomar seu precioso tempo. Mas não irei para casa. Em vez disso, investigarei o caso por minha conta e o terei solucionado antes do anoitecer – o perito desafiou.

 

Aposta aceita – William retrucou. Frederick pensou em corrigi-lo, dizendo que não havia apostado nada, mas desistiu. Talvez, mais tarde, poderia voltar e cobrar a palavra do supervisor.

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Angelina Durless era uma escritora relativamente famosa na Inglaterra. Era autora de vários romances policiais, alguns deles premiados com menções honrosas pela Royal Academy – A Academia Real de Londres. Sua escrita possuía traços revolucionários, expressados em grande parte pela personalidade forte de suas heroínas – notáveis na sociedade pelas próprias ações, e não pelo poder de influência sobre o sexo masculino. Ademais, costumava se “apaixonar” pelos vilões de suas histórias, que eram sempre recheadas de ficção científica e questões reflexivas. Por seu estilo diferente, Madame Red – pseudônimo com o qual assinava suas obras – era odiada por uns e idolatrada por outros.

Recentemente, lera em um jornal sobre a morte da jovem Natasha Whisperlad, cujo corpo fora mergulhado em glicerina, para depois ser misturado a uma grande quantidade de permanganato de potássio; a mistura entrou em combustão quase instantaneamente, queimando todo o corpo da moça. Angelina, ao ler a notícia, ficou bestificada, não só pela brutalidade do crime, mas pela familiaridade do procedimento.

Em seu mais novo livro, Angelina narrava um capítulo idêntico ao episódio da Rua Denmark – até os pormenores foram seguidos à risca: a cor da banheira, o tipo físico da vítima, os procedimentos de tortura... Era como se o assassino quisesse reproduzir fielmente as cenas do livro. Não obstante a essa suposta loucura, algo a espantava ainda mais: sua história ainda estava em fase de editoração.

 

Já havia se passado quase um mês desde que Angelina enviou os manuscritos de sua nova história à editora. A equipe responsável pela edição, cinco dias após o envio dos originais, informou a Angelina que sua história, bem como outras dezenas, fora roubada por alguém até então desconhecido.

– Mas vocês fizeram ao menos uma cópia? – a escritora bradou por telefone, quando soube da notícia. Ela, evidentemente, possuía várias cópias, mas isso não garantia a autenticidade da obra – e ela não teria como provar a autoria de sua história, caso a mesma fosse publicada por outrem.

– Esse é o procedimento padrão da editora, senhorita Durless – o homem respondeu do outro lado da linha. – Mas só o fazemos quando alguém lê a história. Até lá, ela fica intocada. Infelizmente, não houve tempo para lermos ainda. Sinto muito. Mas já registramos a ocorrência na delegacia. Se soubermos de algo, avisaremos prontamente.

Angelina recordou-se de tudo. Realmente, ninguém além dela – e do próprio criminoso – poderiam saber o que acontecia no capítulo 17 e nos demais. E, talvez, coubesse somente a ela decidir se o 18 também viria à realidade.

De acordo com a história, a policial sino-inglesa Lang Mao descobre, logo após o assassinato da jovem, o esconderijo do assassino: um bunker desativado, nos arredores de Londres – coincidentemente ou não, a única referência real que Angelina utilizara para criar o ambiente fictício do livro. Madame Red se sentia receosa; não tinha certeza se era a coisa certa a ser feita, mas decidiu-se por não trair sua intuição: se era o que o assassino queria – que ela reproduzisse os passos de Mao e fosse ao encontro dele – ela o faria.

– Tua resolução me apraz. – Angelina foi retirada de suas lembranças com tal afirmação. Aquela frase poderia ter significados diversos, que iam desde sua decisão em segui-lo até à coragem em participar de um jogo tão perigoso.

Roleta russa.

 

Era exatamente assim que Angelina descrevera o capítulo 18: a policial, frente a frente com o assassino, jogando roleta russa em um bunker abandonado. Agora, ela estava no lugar da policial, mas não podia prever até quando ele continuaria seguindo o roteiro do livro. Como disse a agente Lang, “não há jogo mais imprevisível do que este; é imprevisível, até mesmo, no seu significado”.

Angelina fora até o bunker sem levantar suspeitas. Ao entrar pela porta recentemente arrombada, entrou, foi apalpando as paredes no escuro, e esperou que alguém viesse buscá-la com um lenço embebido por clorofórmio. Como ela havia escrito: nada, nem um detalhe fora do lugar. Ela se sentia em um filme, desses que são feitos quando um livro se torna best seller. Na verdade, nem os filmes são tão fiéis aos livros quanto foram aquelas cenas.

Agora ela estava onde o capítulo 18 acabava: sentada, frente a frente com o criminoso, separada deste apenas por uma mesa de refeitório. E, entre eles, um revólver calibre 38, repousando sobre o móvel. Agora ela tinha certeza: os dois iriam jogar o tipo mais perigoso de roleta russa.

– Mas por que logo esse jogo? – ela perguntou, não que tivesse curiosidade em saber. Essa foi a pergunta que Lang Mao fizera no início do capítulo 19. No entanto, algo deu a ela a impressão de que as igualdades com o enredo acabariam por ali. Afinal, o próximo passo seria uma pergunta por parte do assassino; as rédeas da história não estavam mais em suas mãos.

– Porque divirto-me. – Parou de falar e sorriu. Red não acreditou que sua resposta fosse só aquilo, mas estava pronta a resignar-se, quando...

 

– Ah, acho que cansei. Já falei difícil o suficiente pra você entender que eu sou superior. Agora, vamos ao que interessa. – Seu sorriso transformou-se em gargalhada, ao notar a expressão espantada de Angelina, mesmo à luz fraca. E prosseguiu – Não sei se você também pensa isso, mas é tudo uma questão de proporção. Para mim, optar por roleta russa dá no mesmo que can-can ou strip-pôquer.

Angelina riu. Sua risada, longa e demorada, brotou de algo que ela mesma não distinguia. Poderia ser pela repentina mudança no linguajar de seu provável algoz, pela declaração absurda que acabara de ouvir, pela súbita descarga de adrenalina que não parava de fluir desde que entrara naquele local... Ou talvez um misto de tudo isso. Ela apenas riu, gargalhou bastante, até começar a soluçar e, finalmente, voltar a si. Ele esperou pacientemente que ela se acalmasse, e retomou a linha do raciocínio.

– Jogos irrelevantes requerem perdas irrelevantes. No can-can, perdem-se as cartas; no strip-pôquer, as roupas; na roleta russa, a vida. É assim. Jogos medíocres, objetivos medíocres. Jogos nobres, objetivos nobres.

A escritora ficou espantada com aquele raciocínio. Era perverso, mas fazia sentido. Ela, cada vez mais, sentia dificuldade em manter-se fria e impassível. Não sabia até onde ele teria imitado os passos da história. Mas dizia a si mesma que não se renderia, como a heroína sino-inglesa de seu livro.

– Não compartilhamos a mesma opinião – Angelina disse, convicta. – Existem jogos leves, outros mais sérios...

– Brincadeira e seriedade não se misturam – cortou – Impossível conciliar os dois. Se quiser conhecer alguém realmente, terá que ir além das brincadeiras. – Angelina notou que, mesmo coloquial, sua fala ainda era seca, dura, repleta de duplo-sentido.

– Então, isso não é um jogo para você? – Red retornou a falar.

 

– Pelo contrário. Para mim, isso é um meio de diversão. E, se você fizer questão, eu posso começar a segunda parte do nosso joguinho.

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Frederick tentava relembrar-se do que aprendeu durante os cursos de Medicina e Psicologia – procurava algo que pudesse ajudá-lo a compreender a mente daquele suposto assassino serial. E, teria que admitir, esse começava a mostrar-se mais misterioso e indecifrável do que qualquer outro caso que ele já tivesse enfrentado na vida.

Não conseguia encontrar outra linha além daquela; é mister, em uma investigação envolvendo criminosos em série, que se encontre uma característica comum entre todos os casos. Caso contrário, nada feito. Ele já havia pesquisado sobre as prováveis motivações que o levariam a cometer os assassinatos, mas nada se encaixava: vingança, insatisfação sexual, possessão demoníaca, puro sadismo... Ele sabia que alguma coisa poderia unir todas aquelas vítimas em algum ponto – que fosse mais evidente e notório do que o anterior. Ele só não sabia qual. Talvez, uma nova informação a caminho pudesse ajudá-lo.

– E então, Elizabeth? Já encontrou o que pedi? – Frederick falou enquanto abria a porta de sua sala, que dava para a recepção. Encontrou suas secretárias, pálidas, nervosas devido ao aparecimento súbito de seu chefe.

– Ah, bom saber disso – Abberline ironizou, cruzando os braços. – Eu peço uma informação prioritária e, quando dou fé, encontro minhas duas funcionárias tagarelando.

– Perdão, senhor – Elizabeth emendou, enquanto ela e Meena, a outra secretária, voltavam a seus respectivos postos. – Já estou imprimindo o documento, e quando...

– Vocês sabem o quanto eu detesto fofoca. As comadres têm dois minutos para colocarem esses papéis em cima da minha mesa.

 

– Sim, senhor. Pode deixar – as duas secretárias falaram, quase em uníssono. Já estavam acostumadas com a explosividade do chefe; era pavio-curto, mas sempre fora bastante educado. Nunca as ofendia realmente, aquele era apenas um sinal de que ele estava esgotado.

Prepare-se para perder a aposta, senhor Spears.

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Madame Red estava gélida. Acabara de ver aquele à sua frente apontando o cano do revólver para a própria cabeça e disparando. Três vezes seguidas. Ela não encontrava uma explicação plausível, apenas que estava lidando com alguém irrefutavelmente louco. No entanto, ainda estava curiosa a respeito de algo: por que três? Por que não dois, ou quatro, ou qualquer outra quantidade de disparos? Ela encontrou a resposta sem ao menos perguntar. Enquanto via aquele sorriso doentio novamente, pôde ouvir de forma clara:

– Só três. Algo me disse que eu não morreria se disparasse três vezes. Mas não tive essa mesma certeza quando cogitei o quarto disparo.

Ela chegou a questionar se realmente haveria alguma bala no cilindro. A tranquilidade com a qual os disparos foram efetuados a intrigava. Passou por sua cabeça, também, a possibilidade de estar caindo em uma armadilha – quem garantia que ele não sabia a posição da bala? Porém, logo essa dúvida se dissipou. Ela o ouvira girando o cilindro antes de atirar. A alternativa mais convincente era a de que tudo foi pura obra do acaso. E, por mais que ele negasse, não parecia estar para brincadeira.

Alguns minutos se passaram após a última palavra trocada entre os dois; por algum tempo, parecia que não estavam nem respirando.

 

– Vamos, é sua vez – finalmente falou, fazendo Angelina se assustar. Ela, decidida em ir além da ousadia de seu rival, apontou a arma para a cabeça e atirou. Simplesmente. Nem ao menos girou o cilindro, apenas puxou o gatilho. O barulho que ouviu, antes do profundo silêncio, não a deixaria contente. Na verdade, surpreenderia a ambos.


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Notas finais do capítulo

Ignorem as cores. As palavras em azul não tem nada de especial. =D



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