Da Cor do Céu One Shot escrita por Maybe Shine


Capítulo 1
Da cor do céu


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem...
E também que não tenha ficado muito confuso
Boa leitura!



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O pensamento confuso, a música clássica entrando pelo ouvido e invadindo a alma, atordoando o real, transformando a fantasia. Minha vida, na ponta dos pés.

 

Estrelando:

A garota dos pés tortos. Sapatilhas velhas. O sótão esquecido. Dores em lugares improváveis. O pianista. A carta.

O céu pode estar laranja. Ou rosa, que combinaria melhor. Pode estar escuro como a tinta negra que vaza da caneta, ou azul cor de algodão doce. O jeito não importa, o céu sempre estará acima de nossas cabeças e o assoalho gasto da sala de dança abaixo dos pés. Isso se você for como eu, e não andar de ponta cabeça.

O céu, da cor que estiver, estará colorindo as paredes brancas com luzes dançantes que parecem flores de um jardim. De um jardim em um dia de vento. 

A música. Doce, forte, calma. Cada nota ressoando da ponta do dedo da mão até a ponta do dedo do pé. E isso, depois de um tempo, acontece sem a gente perceber, ou querer. Depois de anos equilibrando-se em sonhos demasiadamente impossíveis,  tu acaba por não perceber que a pontinha do teu dedo sente a vibração da música. Acredite.

O pensamento. Confuso. A música invadindo a alma.

Viro de costas para a janela, apenas para poder ver as flores bailarinas. A sala esta vazia. O piano empoeirado e esquecido. Tão triste ele, implorando para ser tocado. Pedindo para cantar suas doces notas e embalar os sonhos.

Pensei que já não fosse mais bonito, que já estivesse completamente esquecido. Me enganei. Depois de tantos anos afastada desse mundo particular, volto. Volto e sinto a mesma dor aguda apertar o peito. Tanto tempo...

Caminho em passos leves, tocando a barra e sentindo a poeira grudar. Na outra mão a carta amassada. As lembranças insistindo em voltar. Um instante depois eu sou aquela garotinha magrela. A dos pés tortos. A que ficava sempre no fundo, esquecida ao lado do piano e do pianista.

O pianista.

Trazia a imaturidade estampada no rosto magro, mas as mãos ágeis deslizavam como se fossem água sobre as teclas. Essas mesma mãos  mostraram-se carinhosas nos nossos dois, ou talvez três encontros.

O sótão. Ultimo andar do teatro. Subindo as escadas e virando duas vezes para a direita. Uma portinhola quase invisível. Cochichos abafados pelos sons que subiam do agitamento das coxias.

Éramos nós e a poeira, alguns raios de sol e cordas, tecidos, figurinos e um piano velho esquecido por ali. Dois jovens acompanhados por muitos sonhos. Encontros acompanhados por muitas risadas.  

Foi em um desses dias de sol forte que fazem em maio. Subimos silenciosamente as escadas infinitas e parecia que chegaríamos no céu.  A mão da bailarina escondida dentro da mão do pianista.

- Bem, chegamos – ele disse com seu sorriso rasgando o rosto magro.

O olhei. Apontei para o velho piano.

Resignado ele sempre seguia até lá. Sentava-se no pequeno banquinho, olhava por sobre o ombro e deslizava mais para o lado. Eu me sentava apertadinha. Não importava muito se meu uniforme de dança estivesse um pouco sujo depois, isso não importava porque ele virava o rosto e olhava o meu. Sorrindo.

Meus olhos cheios de vergonha se viraram para frente. O raio de sol que conseguiu se esgueirar por uma frestinha aberta de uma pequena janela, lançava como uma lanterna um fecho de luz. Pequeninas poeirazinhas dançarinas se divertiam mergulhando no amarelo. 

Quando percebi que a música não havia começado, toquei meus ombros no do pianista. Ele ainda sorria, ainda me olhava. Parou. Virou-se para a frente e de olhos fechados deixou os dedos se agitarem sobre as teclas e fazerem música.

Depois, como quase sempre, ele parava e olhava-me novamente. Dessa vez não sorria. Minhas bochechas todas as vezes ruborizavam.

- Esta pensando no que? – eu perguntava.

Risinhos. O pianista sempre encolhia os ombros magrelos, dizia que não, não pensava em nada. Apenas uma vez não o disse.

Lançou-me um olhar intenso como sua música.

- Nos meus sonhos.

- É nisso que estas a pensar?               

- Sim, penso nos meus sonhos.

- E quais são eles?

- Na verdade, é apenas um.

Me ajeitei melhor no banquinho, tentando não tocar em nenhuma parte do corpo do pianista sonhador. Escolhi cuidadosamente as palavras.

- Quer contar?

- Claro! Eu sonho... sonho em sair daqui e ir para um lugar bem escondido em algum cantinho da Europa. Quero sempre viver invernos rigorosos.

Ele parou de falar aos poucos, abaixando o tom de voz até sumir, virou os olhos atentos e sonhadores na minha direção. Me encolhi mais no banquinho.

- Mas somente seria completo se...

- Se...

Senti quais seriam as palavras, quase sorri.

- Se você estivesse lá comigo.

Em seguida  veio nosso primeiro beijo.

 

Mal sabia eu que anos depois me pegaria pensando naquele beijo. O toque de lábios feito veludo. O coração saltando e girando piruetas.  

O coração saltando e girando piruetas todas as vezes que eu recordava. Como agora. Deslizo a mão da barra empoeirada e me sento. O piano abandonado ao meu lado. Sem pianista. Sem música. Uma carta amassada na mão. Mandada por um pianista que resolvera se aventurar pelos cantinhos escondidos da velha Europa.

De olhos umedecidos as cores ressaltam dos objetos. O  espelho a minha frente não reflete mais a jovem bailarina dos pés tortos, nem a senhorita do olhar cansado e atacada por dores em lugares improváveis. Agora lá, olhos colados nos meus, ha um borrão com dois borrões no lugar de olhos.

As lembranças seguintes vieram como borrões. Mais negros e assustadores do que qualquer mancha um dia conseguira ser.

 

A bailarina estava sendo puxada pelo antebraço. Doía. As lágrimas se acumulavam nos cantinhos dos olhos, dos mesmos olhos que vez ou outra insistiam em espiar para trás, somente para vê-lo.

Haviam nos pego. O velho que guardava as cordas subira as escadas que levavam ao céu e chagara ao nosso esconderijo. Viu a mim beijando o pobre pianista. Já não era nosso primeiro beijo, mas meu coração dançava frenético querendo sair do peito. Chegou a doer quando o velho, pego de surpresa, puxara o ar.

Após esse dia nunca mais o vi.

Deixei o olhar perdido do pianista sentado ao seu banquinho. Ele e seus sonhos me observavam atordoados.  Não tinha muito mais o que fazer.

O sol trazia luz feita de prata liquida. Rabiscava as paredes e a portinhola que levava ao porão. Tão lindo seria, se não fossem proibidos encontros e música por ali. Se não fosse proibido os lábios de uma bailarina se aventurarem pelos lábios de um miserável pianista.

 

Amasso a carta contra o peito. A luz dentro do estúdio de dança tornou-se escassa, agora que o manto da noite cobre o céu para mais umas horas de sono. Abro os olhos, movo os lábios. Ainda recordo de todas as palavras dele antes do nosso ultimo beijo. Antes de me arrancarem do acabado sótão esquecido.

 

- Você aceitaria? – o pianista perguntara com o olhar caído sobre mim. Com as mãos inquietas e talentosas sobre o velho piano.

- O que?

- Aceitaria ir comigo. Partiria comigo para onde eu fosse, e seria feliz?

Risos baixos. Um olhar sério. O piano cheio de expectativa olhando a nós dois, a espera de um final feliz.

- Como nos sobreviveríamos?

Olhos perdidos em planos, estalar de dedos.

- Com minha música, com sua dança! Temos tudo, temos... – as palavras dele, antes empolgadas, foram se dispersando entre ideias.

- Temos...

Dessa vez me ajeitei melhor no banquinho sem me importar em tocar no corpo nervoso do pianista.

- Temos amor, não temos?

Olhou de soslaio. Sorri.

- É o que mais temos.

- Seremos felizes então.

- Nós morreríamos de fome...

- Eu já passo fome, não seria novidade alguma.

Risadas perdidas no ar. Seus olhos olharam os meus, senti que eles queriam desvendar todos os mistérios, que eles queriam chegar mais perto. E chegaram. Se fecharam. Seus lábios me beijaram.

Depois disso veio o velho.

Puxo o ar com força, forçando sua entrada para os pulmões enfastiados. Tiro as lágrimas dos olhos e coloco diante deles a carta.

A carta. Amassada, respingada, cheia de palavras escritas por aquela letra miudinha, apertadinha.

Cheguei os olhos mais perto. Li mais uma vez.

Minha querida, minha bailarina dos pés tortos.

Já faz quanto tempo? quinze, talvez dezessete anos. Não quero que se sinta velha, mas sei que deve estar se sentindo. Estou lhe dizendo, não se sinta. Pois, se assim fizer, eu também serei velho. E longe de mim, longe de mim considerar-me acabado! Embora o tempo não tenha pena de ninguém, devora gerações, logo ira me devorar também. Por isto estou aqui, redigindo esta carta, batucando a máquina de escrever.

Tu ainda deves ser linda. Pequenina, com o olhar dizendo mais que os sutis e delicados lábios. Talvez agora esteja mudada, não se encolhendo toda vez que lhe tocam de leve a pele. Talvez você saiba mais coisas da vida do que eu, um antigo pianista, e já não lembre no nosso antigo amor.

Nos afastaram porque uma bailarina de família tão honrada nunca deve se engraçar com um pianista desgraçado. Feito eu.

Nunca entendi porque fiquei escondido bisbilhotando-a embarcar no vagão do trem e partir para algum lugar bem afastado de nossos sonhos. Talvez tenha sido porque minhas roupas eram rasgadas e imundas, e todos por ali estavam trajados tão bem. E você estava bela, como sempre.

O filho do pianista, que o substituiu alguns meses não deve ser um bom partido para uma menina que merece do bom e do melhor.

Eu era e sempre serei aquele que jamais poderia ficar ao teu lado.

Penso agora que tu deves ter me odiado. Mas minha querida, eu estava lá! Estava lá quando levaram-na de mim. Estava lá quando partistes para longe. Estava lá quando seus pais enfurecidos ouviram os relatos do velho.

Apenas estava lá. Eu e meus olhos assustados. Eu e minhas lágrimas. Eu e minhas mágoas por saber que jamais nos reencontraríamos.

E não nos reencontramos.

Mas hoje vi um anuncio pregado em uma das paredes do café que não largo. Nele estava escrito seu nome, grande, com letras enfeitadas. Jamais esqueceria seu nome, minha querida, jamais. E quem diria, quem diria?! Era um anuncio da sua academia de dança!

Perdoe-me, mas a bailarina dos pés tortos que se escondia durante os ensaios no fundo da sala, não demonstrava que anos depois estaria montando uma academia de dança.

Fiquei feliz, e fique com uma pulga atrás da orelha. Tinha que te falar.

Hoje vivo por aqui, em um cantinho qualquer da Europa, aproveitando os invernos rigorosos. Vou todas a noites para bistrôs tocar meu piano. A música veio a calhar, ela me sustenta, não me deixa morrer de fome. Especialmente nesses tempos difíceis, com todas essas confusões que se dão no mundo.

Mas não esta completo. Algo esta faltando. Só seria completo se você estivesse aqui comigo.

Com carinho, do Pianista que ainda crê que o amor traz felicidade.

14 de março de 1943, França.

 

Aperto a carta com força. As cores tinham acabado sua visita e iam embora. A sala de dança antiga parecia morta, sem cor, sem vida. Levanto com cuidado e caminho até a porta. Meus lábios se recusando a parar de sorrir. As lembranças mais mansas agora saltitam.

Não importa que cor esta o céu. Não importa se negro à noite, ou azul feito o olhar do pianista ao dia. Ele sempre estará sobre minha cabeça e o assoalho gasto da sala de dança abaixo dos meus pés. Não importa onde eu esteja.

Cominho até a porta, mas um olhar para trás. Mas uma olhadela no piano esquecido. Nas paredes brancas. Da escuridão de algumas lembranças.

Empurro a porta e levanto em meus braços bagagens recheadas de esperanças coloridas.

Um sorriso no rosto. Uma carta amassada na mão. Um sonho recuperado ardendo no peito, uma esperança tola fazendo-me ser novamente a bailarina dos pés tortos. Uma passagem na mão.

Meu pianista, França, não demorarei a chegar.

 


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Notas finais do capítulo

Então, ficou legal?



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