Aos Olhos do Menestrel escrita por Joker Joji


Capítulo 1
Inverno




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Deitado ao lado de uma mulher que mal conhecia, e que mesmo assim recebia seus mais íntimos carinhos, Kyouya passava a noite. Não dormia – raras eram as vezes em que seu sono vinha cálido, pleno. O terceiro filho que subira posições significantes na vida, que alterara radicalmente seu destino, e que agora pagava o preço por sua ascensão.

Casara-se com uma linda e rica japonesa. Miyuzo. Lindo nome, lindos cílios, lindos seios, Miyuzo era uma verdadeira boneca, uma espécie de sorte extrema em forma de mulher.

“Linda e rica japonesa”, era esse o problema. Apenas essas quatro palavras definiam-na para Kyouya. Não a conhecia (nem fizera esforço para tal), não a queria.

Ele mudara, sim, seu destino. Mas havia escolhido o caminho errado. Cabelos loiros vinham assombrá-lo em pesadelos, olhos azuis substituíam os de sua esposa nos momentos mais impróprios. Uma dor profunda o assolava nesses momentos.

Tamaki, com seu brilho dourado e angelical, o garoto que lhe parecera a promessa de uma mudança. O beijo com gosto de tudo, menos de pecado, agora maculava seus dias de paz ao lado de uma família estável. Estabilidade... Era querer demais um pouco daquele perigo europeu mais uma vez? Um tempero levemente agridoce naquela sua vida sem sal?

Dezenove anos e Kyouya sentia-se como um velho, parafusado às correntes da vida impiedosa. Essa seria a terceira noite sem dormir, e sabia o quão preocupada a mulher ficaria quando o visse na manhã seguinte, cheio das conhecidas olheiras. Estresse pós-casamento, era essa sua desculpa preferida. Porém, os dois sabiam que sua validade expiraria a qualquer momento.

Cansado de olhar para o teto e enxergar miragens, o terceiro filho dos Ootori levantou-se. A noite balançava suas cortinas e a vida ainda se agitava, furtiva, em Hiroshima. Não lhe importava que horas fossem. Só lhe importava encontrá-lo mais uma vez, num beco escuro qualquer, iluminado pelo reflexo de seus cabelos solares.

~~

Um kimono azul escuro cobria-lhe a pele adulta. Podiam ter-se passado somente três meses desde que conhecera o garoto de seu destino, mas Kyouya estava (e sentia-se) notadamente mais amadurecido. O casamento o envelhecera à força, a tensão de guiar sozinho sua vida o transformara num homem de verdade. De traços fortes, personalidade impenetrável e inteligência fora do normal. Com um brilho amarelado no olhar, o qual ele carinhosamente apelidava de “persuasão”.

E a vida seguia-se sem esperar que ele voltasse para ela. Kyouya frequentemente confundia-se entre ilusão e realidade, constantes eram seus devaneios, quando a imagem de Tamaki vinha martelar-lhe o pensamento. Miyuzo já lhe pedira para visitar um médico, ao que Kyouya negou com fervor. “Mal ingressei no mundo nos negócios, já quer que me vejam como louco? Espere mais uns trinta anos, se eu durar até lá”. Pobre Miyuzo. Só fazia obedecê-lo, e dele cuidar.

Pior: só fazia amá-lo.

Aqueles olhos quase pretos o encaravam com um quê de tristeza sempre. Ela não merecia um marido daqueles, com uma vida daquelas. Infelizmente, beleza e dinheiro pouco significavam para uma mulher da época.

Aquela maldita sociedade hipócrita levava o Ootori à loucura. Foram eles que o obrigaram àqueles hábitos, ao casamento, à Miyuzo. As garras negras de uma sociedade denegrida arrancaram o anjo de cabelos loiros de sua vida, mancharam seu futuro, esconderam o paraíso.

Mas em qual daquelas ruelas ele estaria?

Sorrindo ou chorando? Esperando-o? Esquecendo-o? Olhando as estrelas, tal qual Kyouya fazia agora, reprimindo a si mesmo por lágrimas bestas que teimavam em sufocá-lo? Ou simplesmente nos braços de outra pessoa, sem sequer lembrar-se dos lábios confusos que o beijaram outro dia? A última possibilidade nauseava o jovem excessivamente.

Respirou profundo e espanou a ideia para fora de sua mente. Ele só descobriria se o encontrasse. “Concentre-se”. Tirou os óculos, limpou-os e os devolveu para seu nariz afilado. Absorveu as luzes da noite em sua retina, pensou, procurou.

Onde?

A sua volta, políticos corrompiam-se em humanidade excessiva. Bebiam, transavam e como mágicos faziam dinheiro surgir de suas mangas. Mulheres lindíssimas engraçavam os estabelecimentos, com vozes e canções, com danças e abraços. Havia toda sorte de cores, um arco-íris noturno, provocados por efeitos de velas e celofanes. Um espetáculo, uma selva, a animalização de Hiroshima enojava Kyouya. E o encantava. E o libertava.

Onde?

Caminhou, mais uma vez, até aquele beco, seu já conhecido. Sempre começava por ali, sempre encontrava aqueles momentos na atmosfera próxima. Era como se aquele beijo houvesse evaporado em partículas de um instante, e cada pedaço houvesse grudado nas paredes com uma cola qualquer. Com amor. Kyouya podia inclusive sentir o cheiro dos cabelos loiros naquele banco. Vê-lo.

E... ouvi-lo?

Mais próximo da ruela, uma música dominou seus sentidos. Um violino pardo, discreto, como se cantasse em código – chamava seu igual. De uma tristeza inominável, até então lacrada na mais interna profundeza humana. Kyouya estava certo de que ninguém jamais ouvira, sentira ou declarara tais sentimentos. O violino o chamava. Só ele. E seu dono.

Onde?

Instintivamente, apressou o passo, beirando a corrida; se hesitasse, poderia ser que as lágrimas lhe escapassem. Ele tinha certeza. Dois olhos azuis o estariam aguardando entre aquelas paredes, mesmo na escuridão do local. A brisa noturna gelava seus dedos e a ponta de seu nariz, e sua ansiedade não ajudava. A música aproximava-se. Sua respiração tornava-se curta a cada metro.

- Tamaki?

De olhos fechados, lá estava ele. Com a melodia que parecia engolir sua própria existência, como se viesse do céu – triste, absurdamente triste. Os lábios do europeu contornavam o que seriam os versos da canção, sem emitir som. Era desnecessário. As notas por si só já falavam, comunicavam os corações...

- Suou Tamaki? – Repetiu, um pouco mais alto, quebrando o ritmo da música.

A fricção no instrumento estagnou-se. Por um momento, o próprio Kyouya sentiu seu coração perder a batida, desregular-se, logo que o outro abriu seus olhos. Azuis. Como antes. Despedaçados. Como nunca.

- ... Kyouya?

O que havia acontecido? Quem fizera uma coisa daquelas? Quem o maltratara dessa maneira?

O loiro não se moveu, parecia não ter forças. O arco de madeira pendia em sua mão direita, assim como seus cabelos sem brilho. Um garoto perdido no escuro. Kyouya não se conteve e correu, até tê-lo em seus braços, até derramar-se em lágrimas secas. Sem palavras, somente soluços. Com dedos ambiciosos e preocupados enroscados nos fios louros, sentiu logo o abraço recíproco do outro, como uma criança assustada. Não falavam. Apenas sentiam.

Tamaki deixou o instrumento escorregar por suas mãos, sem se importar com o barulho que fizera ao chegar ao chão. Kyouya voltara. Machucado, despedaçado tal qual ele, também indesejado – sua cara metade estava de volta. Tampouco resistiu às lágrimas e àqueles gritos saudosos. Mudos, mas intensos.

O mais velho guiou-o até o mesmo banco de antes, sem se importar com as poucas pessoas que também se encontravam no beco. Sentou-se e aninhou Tamaki em seu colo, infantilmente, ainda enlaçados, relembrando aquela única memória incerta. Aquela dor acesa em seu peito, que queimava como uma vela. Saudades.

Os dedos finos do anjo colaram-se às laterais do rosto do moreno, frios do tempo, desejosos da paixão. Por um momento se olharam nos olhos, procurando o que dizer, sem sucesso; um só instante, breve, até seus lábios se encontrarem como duas ondas no mar, que nada mais fazem do que obedecer a lei das marés. Aquilo era física, era natural. Puro e indiscutível amor.

Os lábios iam e vinham, as línguas, as mãos, os narizes que se roçavam de tanto em tanto. A boca de Tamaki era tão mais macia e doce que a de sua esposa, e agora tão feliz... Aquele beijo significava muito mais do que simples paixão. Música que selava um novo objetivo no coração de Kyouya. Protegê-lo. Nem que lhe custasse o total declínio social - aquela boca gritava por ele, implorava por ajuda.

As línguas continuaram a dançar até que a razão voltasse minimamente, os olhos se abrissem e as mãos largassem nucas e costas. Ainda a milímetros de distância, os dois encararam-se. Kyouya ajeitou os óculos, que já estavam tortos na metade de seu nariz afilado, e pôs uma mecha de cabelos loiros atrás da orelha esquerda de Tamaki. Seus olhos azuis sorriam como um céu claro. O moreno beijou-lhe um pouco acima de sua boca, descendo aos poucos, iniciando uma série de beijos calmos e leves. Tamaki suspirou e apertou o outro garoto com força em seus braços.

- Eu cantei tanto, mas tanto por ti, Kyouya... - Aninhou-se em seus braços, agarrando-o tão forte que era como se tivesse medo de perdê-lo novamente.

- E eu te procurei tanto em meus sonhos, dormindo ou acordado... Sabia que cedo ou tarde iria finalmente te encontrar. - Os cabelos dourados tinham cheiro de noite usada e campo desflorido. Tamaki realmente sofrera com aquela separação. Sua imagem acabada, agora, maltratava o coração de Kyouya - ainda mais. - E esse violino?

Tamaki levantou-se por um momento, apesar da resistência de Kyouya em soltá-lo, mas logo estava de volta com o violino nas mãos. Acomodou suas costas no peito de Kyouya, que o abraçou aconchegantemente, e o violino entre ombro e pescoço.

- Você nunca me contou que era um menestrel.

Tamaki mirou-o com o canto dos olhos, dando um sorriso também lateral, mas negou com a cabeça.

- Um menestrel canta sobre fatos. Eu canto sobre sentimentos. - Posicionou a haste de madeira sobre o instrumento, apenas esperando pelo sinal de largada para começar a tocar.

- Pensei que nosso reencontro fosse fato certo.

A respiração do europeu travou por um momento. Ele olhou para a rua que se movimentava à frente, alheia ao que acontecia naquele beco escuro, sentindo braços ardentes a contornar-lhe a barriga.

- Então talvez eu realmente seja um menestrel. - A primeira nota fundiu-se a suas palavras doces, levando uma melodia noturna a comover todos os habitantes de Hiroshima naquela noite. As cordas acordavam um passado recente e incendiavam os dois corpos abraçados, a canção tornava o abraço mais forte. Desajeitados, os dois seguiam a música inconscientemente. A paixão brotava daqueles olhos fechados como um broto jovem e sadio, assim se sentiam aqueles dois garotos, tão perdidos da realidade...

A última nota terminou com um baque; talvez nem fosse mesmo a última nota, Kyouya pensou. Não importava muito. O fim daquela canção de amor terminaria da mesma maneira, cedo ou tarde. Os lábios colados, o violino mais uma vez no chão, as mãos desesperadas por calor. Os corpos num todo ardor, encurvando-se frente ao frio da noite, atraindo-se com uma força incondicional. Por um momento, olharam-se mais uma vez nos olhos, duvidosos. Viraram-se então para os lados, Tamaki já deitado sobre o banco, Kyouya com as pernas sobre as suas, e encararam-se de novo. E riram.

Não poderia ser em outro lugar que não naquele beco.

Kyouya debruçou-se sobre ele e lambeu-lhe a ponta da orelha, mordiscando-a. Havia adquirido certa prática com Miyuzo, agradecê-la-ia depois que finalizasse o casamento. Seus pensamentos viajavam até um futuro não tão distante e voltavam para um presente totalmente desejável.

- Eu te amo. - Os sussurros percorreram as paredes como num raio, para que ninguém ouvisse aquelas confissões.

A resposta de Tamaki veio como um grito, apaixonado e eterno. A canção que ecoaria por toda Hiroshima naquela noite de inverno.


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Notas finais do capítulo

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Muito, muito obrigada por lerem!