Mágoa escrita por Franiquito


Capítulo 1
Mágoa




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Já era a terceira vez que eu tentava o solo de Regret e não conseguia. Era rápido demais, dedilhado demais, Uruha demais pro meu gosto.

Larguei minha guitarra no sofá sem qualquer vestígio do carinho habitual que tinha por ela e me levantei bufando. Comecei a falar sozinha, coisa recorrente quando estava brava.

- Aquele falso loiro metido. Qual é a dele? Só porque ele sabe tocar e eu não... É proposital, para eu não conseguir imitar, filho da...

- Enlouqueceu de vez, Keiko?

Era Hiroshi, que também tocava guitarra na nossa banda cover de The Gazette. Ele tinha o semblante calmo de sempre e embora falasse diretamente comigo (éramos os únicos no recinto), não me olhava nos olhos, distraído com uma revista.

- Você já tentou fazer o solo de Regret? – perguntei ainda bufante.

- Não. Não é parte minha.

Estreitei meus olhos castanhos parcialmente encobertos pela franja lateral.

- É sua parte sim!

- Não a que você estava tocando – ele retrucou ainda sem me olhar.

- Ah, então você ouviu meu fiasco.

- Ainda estou ouvindo – Hiroshi tentou esconder um sorriso de canto sem muito sucesso. Em resposta, joguei uma almofada nele, o que amassou completamente a revista. Hiroshi finalmente me encarou, ainda com a expressão tranquila.

- Keiko-chan, você não pode ficar nervosa dessa maneira.

- Temos show no fim de semana e eu não consigo tocar essa merda!

- Não vai ajudar se ficar gritando e batendo na guitarra.

Eu apertei os olhos com força, controlando a vontade idiota de chorar. Eu estava me sentindo a pessoa mais fraca e impotente do mundo, mas jamais podia demonstrar aquilo, principalmente na frente de outro membro da banda. Eu era a única garota dentre os cinco integrantes e eu era a líder da banda. Fui uma das fundadoras e cuidava de tudo até hoje, quase um ano depois do início de tudo. Eu era a responsável por conseguir contatos para novos shows, por conseguir patrocínio e qualquer tipo de ajuda ou parceria, pelo marketing da banda – praticamente toda a parte de internet ficava por minha conta. Eu jamais reclamei de qualquer coisa, pelo contrário, eu gostava de ser a chefe daqueles quatro marmanjos – parecia que eu era a única que tinha cabeça para aquele tipo de tarefa. Então, por ser a mais responsável apesar de mais nova, e por ser o “sexo frágil” eu não podia falhar em qualquer aspecto.

Era por isso que eu ia tocar Regret, não importava o que custasse.

Me sentei novamente no sofá, peguei minha guitarra e respirei fundo. Dessa vez era eu quem evitava os olhos de Hiroshi. Respirei mais uma vez para me tranquilizar e recomecei o solo. Não errei as notas, mas estava totalmente fora do tempo.

- Viu? Agora que você se controlou conseguiu tocar – Hiroshi sorria para mim.

- Está muito devagar – reclamei ainda de cara feia.

- Isso é questão de prática. A técnica, que é o mais importante, você já tem.

Olhei Hiroshi bem fundo nos olhos. Os olhos dele eram um pouco menores e mais claros que os meus. Naquele momento não estavam sérios, como de costume, e sim suaves, como se sorrissem para mim. Já conheço o Hiroshi há um bom tempo e até hoje eu não faço ideia de como ele consegue ser tão calmo. Que raiva.

- Olá – a porta da sala foi novamente aberta, revelando que Kenji, o baixista, e Haru, o vocalista, tinham chegado.

- Poxa – começou Kenji com seu costumeiro ar brincalhão –, estávamos subindo as escadas e ouvimos lá de baixo alguém tentando tocar guitarra.

- Parecia um solo – Haru acompanhou a piada.

- Um solo? Tem certeza? – Kenji fingiu espanto e levou a mão aos cabelos loiros e curtos – Que horror!

- É, eu sei – o moreno deu de ombros. Nenhum dos dois me encarava, pois sabiam que expressão encontrariam – Tem cada coisa nesse mundo. Quero dizer, as pessoas não se dão conta que não sabem tocar e continuam...

Haru não pôde continuar porque dessa vez minha almofada atingiu-o na cabeça, fazendo Kenji gargalhar.

- O que foi isso? – Haru se virou para me encarar com fingida indignação – O quê? Era você?? Você estava tocando aquilo, Keiko?? Que decadência!

Kenji riu ainda mais alto e saiu de perto de Haru temendo minha reação. Eu apenas encarava o moreno com os olhos semicerrados.

- Se está ruim, acho válido que você toque, senhor “eu-não-sei-tocar-nem-violão”.

Kenji estava tão vermelho que parecia que ia explodir de tanto rir, agora da cara de Haru. Eu sabia que o vocalista ia ficar furioso com aquele comentário. No começo da banda não sabíamos como adaptar o uso do violão e sugerimos que Haru o tocasse, deixando para Hiroshi apenas a guitarra base. Mas o mais novo recusou veementemente, dizendo que não sabia tocar violão direito e que o instrumento só o atrapalharia no palco. E mais: que a função dele era ser um showman; a parte instrumental devia ficar a nosso cargo.

Egocêntrico.

- Certo, crianças, acho melhor pararmos a discussão porque o recreio já vai acabar – brincou Hiroshi – Onde está Daisuke?

- Ele disse que ia se atrasar – respondeu Haru sem tirar os olhos do meu sorriso cínico. Ele estava sério e aquilo me dava uma certa... apreensão.

- Disse quanto tempo ia levar?

- Uns vinte minutos – foi Kenji quem respondeu, agora mais controlado.

- Certo – eu retomei o controle da situação, me erguendo – Vinte minutos para começar o ensaio! Vou buscar alguma coisa para comer no mercado aqui em frente. Vem comigo, Kenji?

- Eu vou – Haru se prontificou e eu não neguei. Não ia dar esse gostinho a ele.

Assim que fechamos a porta e começamos a descer as escadas, Haru começou a falar.

- Eu não gosto que fale sobre essa história do violão, sabe muito bem disso.

- Não falei nenhuma mentira.

- Tocar não é a minha praia, eu não gosto e não levo jeito, pensei que já tivéssemos discutido isso o suficiente.

- Eu também não gosto quando criticam o jeito que eu toco guitarra, principalmente se a pessoa não é familiarizada com o assunto – retruquei com secura.

- Eu estava fazendo uma brincadeira.

- De mau gosto.

- É, eu sei. Gomen.

Eu parei, sendo imitada por Haru. Pedir desculpas não era do feitio dele e mesmo quando o fazia (a muito custo) era em japonês. Falar em outra língua não tinha o mesmo impacto e valor, mas mesmo assim era alguma coisa tratando-se de Haru.

Eu suspirei cansada.

- Você sabe muito bem que não gosto de provocações desse tipo, Haru.

- Eu já disse, gomen.

- Mas vai voltar a fazer.

Ele sorriu de canto.

- Não posso prometer que não.

Eu olhei dentro dos olhos esverdeados por alguns instantes até que me dei por vencida.

- Ok, está desculpado.

- Você também me deve desculpas.

- Não falei nenhuma mentira – eu repeti, voltando a caminhar. Ouvi Haru bufando às minhas costas e sorri. No instante seguinte meu pescoço estava preso em seu braço.

- O que eu fiz pra merecer uma líder tão cabeça dura? – ele bagunçou meus cabelos castanhos e nós dois rimos.

- Hey! – eu me soltei de seu braço – Você aceitou cantar na banda e sabia que eu era a líder, devia saber as consequências disso.

Ele passou o braço pelos meus ombros. Aquele era um hábito inconsciente que os quatro tinham comigo.

- Não é justo. – ele declarou.

- Eu nunca disse que era.

Ele apenas aumentou seu sorriso enviesado.


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Notas finais do capítulo

Críticas, positivas ou negativas, são sempre muito bem-vindas



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