Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 98
Vida 6 capítulo 17




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PARIS, DEZOITO MESES ANTES

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– Estou cansada desta cidade. Quando viemos para cá parecia que as novidades nunca iam se esgotar. Agora é um tédio só.

– Normal. Sabia que mais dia menos dia você ia se sentir assim. Estamos aqui há muito tempo.

– Tempo demais. Estava pensando. Podíamos nos mudar para Los Angeles. A empresa vai abrir um escritório lá.

– Não sei. Estamos longe do mar há tanto tempo. Quantas semanas até chegarmos lá?

– Algumas horas de avião.

– Avião? Não está falando sério.

– Quer o quê? Que nademos até lá?

– Não é algo tão absurdo assim.

– É totalmente absurdo. Não sabia que tinha medo.

– Medo?

– Medo de avião.

– Não é medo. Só não é meu elemento. Além disso, quanto tempo faz? Vinte anos?

– Bastia, Córsega. 1986. Fizemos que nos vissem mergulhar e desaparecemos. Ficamos submersos por dez dias. Lembra que devoramos um dos mergulhadores da equipe de resgate.

– Você devorou. Risquei os humanos do cardápio há muito tempo.

– Você se deixou ver na forma de merman. Puxou um rapaz para o fundo, o beijou e o deixou escapar. Depois nos divertimos lendo as reportagens. A Córsega inteira se encheu de caçadores de monstros. Foi divertido. Sinto falta das loucuras que fazíamos. O que aconteceu com a gente? Nos acomodamos. Agimos como se fossemos um casalzinho humano vivendo um casamento perfeito. Podemos ser quem quisermos. Podemos ..

– Ficar com quem quisermos? É isso que ia dizer?

– Não, não é isso. Mas há quanto tempo não somos mais nós mesmos? Não acha estranho seres como nós morando num apartamento de uma cidade sem mar? Pagando contas de luz e de gás? Indo ao supermercado e comprando carne e pescado? Assistindo programa político na televisão. Usando creme hidratante nas pernas?

– Para quem não tinha pernas, é um grande avanço.

– Neck, não sente falta da emoção da caça? A emoção de atrair a presa para a armadilha e vê-la se debatendo enquanto a armadilha se fecha sobre ela. Dos jogos de sedução?

– Minha querida, você é publicitária sênior da maior agência do ramo na Europa. E, se hoje ela é uma gigante, é porque você nunca deixou de usar seu poder de sedução e fazer seus joguinhos. Sempre foi uma caçadora impiedosa. A única ameaça ao seu posto é o aumento da quantidade de mulheres em cargos executivos. Falando nisso, não foi aquela gerente da linha de cosméticos que disse que a campanha que você desenvolveu estava pouco criativa que foi assassinada semana passada pelo próprio motorista?

– Coisas assim acontecem com quem insiste em ser desagradável.

– Você tem trabalhado demais, querida. Está estressada. Um banho de mar vai nos fazer bem.

– Não no Mediterrâneo. Lembra como nos impressionou o desaparecimento dos grandes cardumes. Muito plástico e lixo no fundo. Vai me deprimir ainda mais.

– Atlântico Norte? Báltico? Você ainda não conhece os fjords noruegueses. São lindos esta época do ano.

– Você está acostumado com águas geladas. Eu não vou me acostumar nunca. Polinésia. Nunca fomos lá.

– Polinésia?

– Está decidido. Polinésia. E vamos de avião.

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PARIS, NOVE MESES ANTES

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Necker, embora fosse um top model de primeira linha, era praticamente desconhecido na América. Sempre recusara propostas que exigissem que atravessasse o Atlântico. Preferiu voltar da Polinésia a nado. Gostou da experiência. Sentia-se revigorado. E voltou exibindo um bronzeado que lhe garantiu dois desfiles de moda verão e uma campanha multimídia de óculos de sol.

Mas a experiência de viver no mar por cinco semanas também lhe mostrou que não havia caminho de volta. Podia ser divertido por um tempo, mas definitivamente não queria voltar a viver como um peixe. Estava por demais acostumado com as comodidades e com as formas de entretenimento humanas.

Reencontrou um colega dos tempos em que estava começando na carreira. O cara se cuidava, mas era gritante a diferença de idade que aparentavam ter. Embora um dia parecessem ter tido a mesma idade, agora eram um homem maduro e um quase garoto. Isso ficaria mais e mais evidente. Se deu conta do quanto aquilo era perigoso. Lars Necker teria que sumir por uns tempos. Talvez para sempre.

Já estava sob os holofotes há dezessete anos. Estaria velho para a carreira, caso envelhecesse no ritmo humano. Já escutava piadinhas sobre estar conservado em formol. Não era tão antigo quanto Aglaope. Tinha setenta e três anos quando a conheceu e uma aparência de dezesseis. Fez as contas. Já estava com pouco mais de duzentos e oitenta anos e aparentava no máximo vinte e cinco.

Existiam milhares de fotografias suas, todas datadas. Fora um idiota. Devia ter usando sua habilidade para simular envelhecimento. Agora era tarde. Muito mais suspeito seria se mostrar subitamente envelhecido. Iam achar que estava doente. Não. Precisava tornar-se outra pessoa.

No passado, seria muito mais fácil. Era só mudar de aparência e de cidade e, automaticamente, se tornaria outra pessoa. Com dinheiro na mão, arranjavam-se documentos. Agora, não. Registros digitais podiam ser facilmente acessados de qualquer lugar e todos tinham sua história pessoal registrada em centenas de bancos de dados tanto privados quanto governamentais. Não podia surgir do nada. Não. Precisava tomar o lugar de alguém que já existisse.

Gostava de ser modelo, mas não queria ter que se tornar uma pessoa diferente a cada dez anos. Gostava de ser admirado. Gostava de aplausos. Não suportaria viver longe dos holofotes. Poderia ser, talvez, .. um ator. Atores podem envelhecer em atividade. Tinha familiaridade com câmaras. E, afinal, não representara a vida inteira o papel de humano?

Mas não ia começar do zero. Se podia escolher, porque não alguém que já fosse mundialmente famoso. Jovem e bonito, claro. Afinal, era top model de primeiríssima linha e ninguém quer ser menos do que já foi um dia.

Necker sorri ao ler a notícia que o protagonista de uma das séries de TV de maior sucesso no momento, o ator americano Jay Padalecki, desembarcaria em Paris com a namorada Sandra McCoy dali a três dias.


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Notas finais do capítulo

20.05.2011