Sete Vidas escrita por SWD


Capítulo 96
Vida 6 capítulo 15




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A mulher morena tinha olhos amendoados e um sorriso encantador. Era linda. Era o que todos diziam. E era a mais pura verdade. Mas o que impressionava mesmo nela era a sua voz. Sua voz era ao mesmo tempo inocente e sensual. Uma voz melodiosa e encorpada que destoava um pouco de sua aparência de quase menina.

Sabia do fascínio que exercia sobre os homens. A maioria não se preocupava em esconder o desejo que sentia. Muitos até faziam questão de explicitar esse desejo com palavras. Alguns com sutileza e elegância. Outros de forma cafajeste, como se estivessem lhe fazendo um favor. Outros ainda, de forma desagradável, mestres em tornar sórdido o que devia ser sublime. Não, nenhum destes tinha qualquer chance com ela.

Ela gostava de homens cujo desejo era intenso, mas estava dirigido para outra. Ou outro. Gostava do jogo da sedução. Não que precisasse seduzir. Tinha a voz. Bastava comandar. Mas isso não a satisfazia. Gostava do desafio. A voz costumava ser necessária apenas para a prova definitiva. Para retirar-lhes a inibição. Os homens deste século até podiam entender o conceito romântico de morrer de amor. Matar por amor se tornara um conceito estranho.

Um século estranho, de valores deturpados. A carreira e o sucesso financeiro passaram a significar mais que o amor e a satisfação sexual. Era cada vez mais difícil encontrar quem realmente quisesse viver o amor em sua plenitude. Quem estivesse disposto a matar e a morrer por este sentimento. Parecia que somente ela no mundo ainda acreditava no amor.

O mundo moderno a fizera perder o gosto pela música. E pensar que um dia a música fora a coisa mais importante na sua vida. Cantava e, ao cantar, encantava a todos, homens e mulheres. Quem a ouvisse cantar experimentava uma sensação de felicidade que perdurava por dias. Sua música aliviava dores e fazia esquecer perdas. Sua música era um bálsamo para todos os males.

Era amada e retribuía esse amor. Era feliz e espalhava felicidade. Mas ela e suas duas irmãs foram vítimas da inveja. Os deuses sabiam ser cruéis. Ao serem transformadas, passaram a ver medo nos olhos dos homens. Então, passaram a espalhar medo. A rejeição dos homens as feria e elas desejaram feri-los. Olho por olho.

Ganharam asas e puderam ver o mundo do alto. Mas suas almas estavam feridas demais para reconhecer beleza nos campos ondulados pelo vento, nos rios cristalinos cruzando planícies e nas oliveiras que cresciam nas encostas das colinas. Voando para longe do que lhes era familiar, chegaram à costa e viram, pela primeira vez, o mar. Vagaram por um tempo. Até se fixarem num pequeno arquipélago rochoso da costa italiana, próximo à Capri. E por lá ficaram. O arquipélago acabou batizado de Sirenuse, perpetuando a lembrança da passagem delas pela região.

No mar existia beleza, mas não harmonia. O mar era mutável e traiçoeiro. Como elas, as sereias. Como ela própria, Aglaope. Sua alma agora respondia com a violência do mar quebrando contra as rochas costeiras. Seus sentimentos tumultuados lembravam a superfície do mar em noite de tempestade. Comprazia-se em atrair marinheiros com canções plenas de promessas de amor que sua voz tornava irresistíveis e, do alto dos penhascos, vê-los afogarem-se.

Mas, gostassem ou não, estavam condenadas a fazê-lo. Uma profecia as alertara que seriam tragadas pelo mar se algum homem escapasse com vida após escutar seu canto.

Um protegido dos deuses, ΟΔΥΣΣΕΥΣ, fez com que seus homens tapassem os próprios ouvidos com cera de abelha e deixou-se amarrar no mastro do navio que comandava, ao cruzarem o trecho de mar que ela e as irmãs habitavam. Suas ordens para que desviassem o navio na direção do maravilhoso canto foram ignoradas pelos marinheiros e o destino das irmãs sereias foi selado.

Ao serem engolidas pelo mar, se viram mais uma vez transformadas. De mulheres-pássaro para mulheres-peixe. Sua dieta teve que mudar. Incapazes de deixar o mar e de fazer fogo, foram obrigadas a comer peixes vivos. Mas descobriram que preferiam o gosto de carne. Carne humana. Suas vozes perderam a capacidade de enfeitiçar mulheres, mas ainda eram predominantemente homens que cruzavam os mares. Alimento não lhes faltou.

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Três mil anos se passaram. O poder dos velhos deuses enfraqueceu. Alguns caíram em um sono profundo. Outros se aventuraram em outras realidades. O contato entre deuses e homens escasseou. E também elas aprenderam a serem discretas. A esconderem seus rastros. E, como os antigos deuses, elas também passaram a serem vistas como seres lendários.

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Mas, embora elas próprias ignorassem, restritas ao seu pedacinho de mar, o mundo estava repleto de criaturas antigas. Muitas das quais, se passando por humanas.

O sol estava quase se pondo. O mar exibia sua face tranqüila. Aglaope emergiu a cabeça humana, atraindo a atenção de um jovem marinheiro. Não foi preciso que ela fizesse nada para que o rapaz se lançasse nas águas profundas e nadasse em sua direção. Era uma atitude suicida, pois o barco estava em movimento e ninguém o vira mergulhar.

Quando ele se aproximou, ela submergiu e ele a acompanhou na direção do fundo. Nada diferente de centenas de outros encontros ao longo dos séculos. Ela veio até ele, prendeu-o em seus braços e o abraçou e beijou, mantendo-o sob as águas. Mas, os minutos passavam e o jovem, ao contrário das centenas de outros que o precederam, não dava sinais de que estava se afogando. Ele sorriu da surpresa que ela demonstrou. Foi a vez dele segurá-la com força pela cintura, e mergulhar ainda mais fundo. E, na areia do fundo do Mediterrâneo, eles se amaram. No calendário cristão, estavam no ano de 1734.

Seu nome era Necker e ele era um nyx. Como elas, ele era uma criatura aquática que atraía humanos para a água e os devorava. Diferente delas, ele podia se passar por humano e viver afastado da água. Sua espécie habitou por muito tempo os rios do norte da Europa, mas a poluição das águas pelas atividades humanas os estava afetando e eles resolveram buscar outros lugares. A maioria foi para o norte, para regiões ainda intocadas da Escandinávia. Necker quis conhecer o grande mar ao sul da Europa.

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Aglaope vivera desde sempre com as irmãs Thelxiepeia e Peisinöe e sempre compartilhara tudo com elas. Mas não compartilharia Necker. Ele era somente dela. E ela foi, mais uma vez, vítima da inveja. As irmãs investiram contra Necker com fúria assassina e o estraçalharam. Arrancaram-lhe os braços e, sorridentes, devoraram os membros arrancados do merman ensangüentado na sua frente, indiferentes ao seu desespero.

Ela se afastou com o corpo dilacerado de Necker. Não lhes daria o prazer de vê-lo agonizar e morrer. As teria matado com as próprias mãos naquele momento. Mas ainda teria sua vingança. Tempo não significava nada para quem era imortal.

Foi com surpresa que as irmãs sereias descobriram que ganharam as habilidades de Necker de assumir a forma humana e poder viver em terra firme. Mas o mundo humano as assustava. E, em suas cidades, os homens viviam cercados de terríveis criaturas. Pequenos monstros que podiam identificá-las, não importa a forma que assumissem. Monstros que as acuavam e as atacavam sempre que tinham chance. Cães e gatos. O latido de cães quebrava o encantamento que suas vozes exerciam sobre os homens. Ferimentos causados por gatos geralmente infeccionavam e podiam levá-las à morte.

Thelxiepeia e Peisinöe acabariam por se integrar ao mundo humano. Era isso ou perecer. Havia cada vez mais humanos no mundo e agora eles estavam em todas as partes. Mas elas tiveram tempo para se adaptar. Mais de duzentos anos. A convivência com humanos voltou a serenar seus espíritos. A domesticá-las. Em 2008, elas eram donas de uma empresa de turismo e trabalhavam como guias de mergulho. Vez por outra, alguém desaparecia. Mas eram casos esporádicos. Sujeitos desagradáveis que fizeram por merecer.

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Aglaope e Necker seguiram outros caminhos. Necker não fora mortalmente ferido como parecera. Necker era um shapeshifter, e podia estancar o sangramento e regenerar os membros perdidos. Foi o próprio Necker que insistiu para que Aglaope arrancasse seu braço recriado e o devorasse, quando descobriram o que acontecera com Thelxiepeia e Peisinöe.

Aglaope queria vingança, mas tudo que Necker queria era manter distância de Sirenuse. Eles partiram para nunca mais voltar.

Foi uma linda história de amor e durou mais do que qualquer história de amor humana. Mas nenhum amor dura para sempre. Um dia descobriram que queriam coisas diferentes da vida e decidiram seguir seus próprios caminhos. Como amigos. Ela desejou de todo coração que ele fosse feliz com seu novo amor. Talvez se reencontrassem no futuro e voltassem a se amar.

Mas, ao saber pelos jornais que o único amor verdadeiro de sua vida fora assassinado, seu sangue se incendiou. Arrancaria o coração do assassino com as próprias mãos e o devoraria ainda pulsante. Olhou com ódio para a fotografia do assassino. O humano por quem Necker se apaixonara. Jansen Ackles.


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Notas finais do capítulo

13.05.2011
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Espero que tenham gostado da minha tentativa de unificar o mito grego das irmãs que desafiaram as Musas e que, por isso, foram transformadas em mulheres-pássaro (semelhantes a harpias), com a versão moderna das sereias com rabo de peixe e com versões cinematográficas recentes que mostram as sereias como seres monstruosos devoradores de carne humana.
Achei forçado que uma sereia mulher (mermaid) personificasse o Jay. Preferi criar um merman e encontrei o mito alemão dos nyx.
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ΟΔΥΣΣΕΥΣ = Odisseu (ou Ulisses)
http://picolole.co.cc/Others/merman.html