A Trilha Para Casa escrita por Isabel the Ace


Capítulo 1
A Trilha Para Casa


Notas iniciais do capítulo

Eu escrevi isso ♥



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"Isso é um desastre. Ele está perdendo muito sangue." Disse uma voz por dentro das tendas. "Temos sorte de ele já estar inconsciente."

“A gente precisava era fazer as malas e ir embora." Ká:nien ouviu um soldado britânico murmurar para seu amigo. "O que ainda estamos fazendo cuidando de um homem morto? Temos que sair desse buraco."

Seus punhos se fecharam. Ele puxou o casaco de pele junto ao corpo, protegendo-se da neve, mas não voltou para a fogueira, onde seus companheiros conversavam, comiam e se aqueciam. Ele ficou parado na frente do hospital de campanha improvisado, esperando. Até o cirurgião sair.

"Ele não vai sobreviver." Ele grunhiu, sua voz visivelmente resignada.

Ká:nien o empurrou para o lado, marchando para dentro da tenda. Ele sentiu o cheiro da carnificina antes de vê-la: sangue na mesa de operação, pingando no chão, sumindo na terra. O aprendiz de cirurgião, ainda segurando a serra, olhou para ele nervoso.

"Ele está morto?" Ká:nien perguntou.

O jovem demorou demais para responder. Ká:nien avançou enquanto ele protestava e colocou a cabeça contra o peito de John.

"O coração dele ainda bate!" Ele rosnou enquanto o cirurgião caminhava atrás dele para dentro da tenda. "Você cuide dele até que seu coração pare, ou até que ele sobreviva. Seu trabalho não acabou."

"Nós cortamos uma artéria! Ele pode sangrar até morrer, por melhor que tentemos! E mesmo que ele consiga, você ainda chamaria isso de vida?" O cirurgião recuou. "É de John Black que estamos falando. Ele nunca se contentaria com..."

"Ele não te deu permissão para desistir dele!" Ká:nien se enfureceu. "Quem é você para falar por ele? Como você decide se ele deve morrer, se ele não merece mais sua vida?"

"Com todo o respeito, senhor, que neste momento é quase nenhum", desafiou o cirurgião, "o que o torna melhor para tomar essa decisão no lugar dele?"

"Ele ainda está vivo." Ká:nien retrucou, esfregando as têmporas. "Então faça o seu maldito trabalho e mantenha-o assim. Agora eu preciso ir..." ele se lembrou dos soldados falando do lado de fora "e nos tirar desse buraco".

O coração dele ainda bate!

Ká:nien gritara a plenos pulmões, ao encontrar o corpo gravemente queimado do homem em meio à neve, aprisionado entre as pedras. Ele embalou John contra seu peito, recusando-se a soltá-lo mesmo enquanto o vento frio apunhalava seu corpo. Até que a ajuda chegasse, até que fosse possível levá-lo para algum lugar aquecido. Se ele se afastasse, se parasse de ouvir, ele tinha certeza de que aquela batida frágil cessaria.

Os escaramuçadores e mineiros que vinham atrás dele rapidamente se reuniram para ajudar. Como que por um milagre, o gelo e as pedras sob as quais John fora pressionado impediram que ele sangrasse mortalmente pelas feridas ainda abertas - e o fogo cauterizara o resto. O homem foi transportado de volta ao acampamento com eficiência, por um grupo que aprendera a lidar com cuidado por seus feridos durante os últimos meses de viagem.

Apesar de todas as possibilidades, ele perseverou. Mesmo contra a vontade do cirurgião, John Black ainda respirava quando a manhã chegou e eles partiram das Montanha Rochosas, deixando para trás os corpos dos russos e da Guarda de Ossos.

Só havia menos dele para levar para casa.

John piscou com a luz do sol. Raios pálidos - ainda era de manhã - doíam em seus olhos. Ou... olho.

Ocorreu-lhe que metade do seu rosto estava envolto em bandagens, com linho sobre o olho direito. Ele sentiu cheiro de mel.

Ele virou a cabeça para observar seus arredores – tanto quanto seu corpo pesado permitia. Ele estava em uma tenda - isso era familiar.

O que ele não esperava era o Mohawk dormindo em uma cadeira ao lado do seu colchão.

"Ke? É você?" Ele murmurou. Sua garganta estava seca e sua boca parecia presa semifechada. Sua voz quase não saiu.

O que, obviamente, significa que Ká:nien acordou assustado como se ele tivesse gritado.

"John!" Ele xingou baixo em Haudenosaunee, pondo a mão em seu ombro. "Você está bem?"

“Essa é uma boa pergunta”, ele respondeu. Doía falar, mas ele não estava acostumado a ficar quieto. As memórias da montanha giravam em sua cabeça.

“Você está lúcido? Se lembra do que aconteceu? Ká:nien verificou.

Ele assentiu, debilmente. Ele pensou na colônia, nos mortos e feridos em Brunswick, no ataque que não deixou ninguém de pé. Ele pensou em seu tio.

“Stuart e os outros podem descansar agora.” Ele disse. "Onde estamos?"

"Na trilha para casa." Ká:nien respondeu. Saímos da neve dias atrás."

"Dias?!" John tossiu, surpreso. "Quanto tempo..." a voz morreu em sua garganta, não resistindo o esforço de falar um pouquinho mais alto.

"Mais de duas semanas." Seu amigo respondeu. "Você esteve meio acordado, em alguns momentos. Eu fiz você comer, e beber." Ele disse. "Todos pensaram que eu estava cuidando de um cadáver. Só a lealdade deles para com você os impediu de desistir. E não posso garantir nada dos ingleses. Eles não me ouvem de jeito nenhum."

Foi a vez de John xingar. Ele tentou se sentar na cama. Ká:nien percebeu e decidiu ajudá-lo.

Quando os cobertores cairam sobre seu corpo, John olhou para o que restava de seu braço direito. Apenas um toco, envolto em bandagens pegajosas, terminando quase logo abaixo do ombro.

Ele pressionou o corpo contra o colchão, como se pudesse se afastar dele, respirando rápida e irregularmente.

"John. Respire.” Ká:nien aconselhou. "Se acalme."

“Mas eu...” ele tremeu. “Meu - meu braço...”

Seu amigo olhou para ele com uma expressão paciente, mas séria.

“E seu olho. E sua perna também.” Ele deu a notícia de forma rápida e direta. “Todo o lado direito do seu corpo estava gravemente queimado. Sinto muito, John.”

Demorou vários minutos hesitantes para que John entendesse suas palavras. Assim que o fez, ele puxou as cobertas para o lado e olhou para seu corpo, com o olho que lhe restava.

Foi recebido por mais bandagens, atadas por todo o seu tronco, com o cheiro de mel que havia sentido antes. Ele não tinha coragem de perguntar, porém, ao ver a pele vermelha queimada que aparecia através delas. Seus olhos percorreram a gaze até sua perna. Fora cortada logo acima do joelho. Ele ainda podia senti-la, mas ao mesmo tempo, sentir que não estava lá.

Contra sua vontade, ele começou a chorar. Envergonhado, ele tentou esconder desviando o olhar.

Ká:nien colocou um braço sobre seu ombro. Uma mão sobre o coração.

“Você está vivo, John. Ninguém pode tirar isso de você.” Ele o consolou. “Tudo o mais que se segue, podemos superar juntos.”

John Black era um homem duro. Era um modelo de bravura para seus homens e muitas vezes disfarçava seus sentimentos com humor ou sarcasmo. Seria impensável, para a maior parte da armada, vê-lo como estava agora. Naquele momento, porém, ele se permitiu chorar nos braços do amigo.

Ká:nien fez companhia a John até que ele adormecesse novamente. Não demorou muito, mas ele sabia que o amigo teimoso estava lutando contra o sono. Ele o entreteve com histórias da estrada, deixou-o saber que a maioria de seus homens ainda o defendia, assim como os britânicos - cujas forças que ainda caminhavam com eles estavam fazendo o melhor para mantê-los em segurança. Que estavam muito satisfeitos pelo Círculo ter sido derrotado e pelos russos já não representarem uma ameaça às suas operações na América.

Em algum lugar ao longo das estradas úmidas, John caiu no sono. Ou desmaiou de pura exaustão. “Quem luta contra o descanso nessa condição?” Ká:nien queria saber. Mesmo que ele imaginasse que a pergunta era redundante.

 

Dezesseis escaramuçadores, cinco carroças, nove colonos, um médico e seu aprendiz. Eram tudo o que restava do número original da armada, que ultrapassara 50 pessoas. Sem contar os ingleses em seus cavalos, seu número havia caído pela metade. Muitos ficaram feridos, embora não tão mal quanto John, mas o grupo perdera a maioria de seus médicos - e Hayworth e seu aprendiz, Edwards, eram novos, desconhecidos.

Teria valido a pena? John estava firme em sua convicção. Ele acreditava em sua vingança, por seu tio e sua colônia, e acreditava que o culto dos loucos era perigoso demais para continuar a agir. E com a derrota dos russos, os britânicos concordavam. Talvez tenha sido uma convergência de interesses – de qualquer forma, o Círculo tinha que acabar. E os Mercenários teriam seguido John até os confins da terra, contanto que ele estivesse comprometido.

O fato era que, agora, Ká:nien estava no comando do exército de John.

A armada sempre o respeitara, como um bom amigo de John, e como alguém incomum para que olhassem com interesse - um homem de uma cultura que eles simultaneamente desprezavam, mas se fascinavam com. O índio corajoso, com seu conhecimento da terra e da natureza, seus sentidos aguçados, um lutador inestimável ao seu lado.

Mas eles nunca o consideraram como seu líder.

Foi uma revelação para Ká:nien, de que o problema era o quão diferente ele era, e não suas origens. O próprio John tinha um pouco de sangue Haudenosaunee - da mãe de sua mãe. E os Mercenários eram um grupo unido. Alguns, eles conheciam a anos. Eles estavam cientes. John era branco o suficiente aos olhos deles para ser igual. Para os Mercenários, as contas com as quais ele decorava sua camisa eram desprovidas de qualquer significado pessoal - como se sua mãe não o tivesse ensinado com amor a costurá-las.

Os britânicos também eram diferentes do que Ká:nien esperava. Seus comandantes falavam com um sotaque elegante, com palavras tão floreadas que o inglês fluente do guerreiro não as acompanhava. No entanto, os seus homens eram quase tão vulgares como os Mercenários. Eles eram treinados, mas não muito mais instruídos do que o povo das Colônias.

“Polícia de elite.” LaMarque sussurrou para ele. “Aquele tal Círculo devia ser um negócio sério. Eles geralmente enviam criminosos pra caçar suas presas.”

O grupo lamentara suas perdas durante a cruzada de John por todo o país, mas nunca duvidara de suas razões. Ká:nien sabia que eles ainda admiravam o homem, que marchariam e morreriam por ele, mesmo em seu estado atual. Na verdade, John havia provado seu valor, depois de sobreviver a um destino tão terrível, dando sua própria vida por uma nobre causa.

Então talvez Ká:nien também precisasse provar seu valor - e isso, pelo menos, não era um conceito estranho para ele. Fizera isso durante toda a sua vida. Tanto em sua aldeia, quanto entre os homens brancos, embora os dois tivessem expectativas diferentes.

Se ele conseguisse levar todos para casa, juntos, se ao menos conseguisse manter John vivo e são... as coisas ficariam bem.

Eles enterraram seus mortos e rezaram por aqueles que não puderam, aderindo a seus rituais cristãos. John havia perdido amigos queridos e sua culpa e tristeza eram evidentes. Pior ainda, ele não podia realmente lamentar por eles, estando também com um pé na cova. A maior parte de sua energia era gasta se recuperando.

Ká:nien e o cirurgião ainda tinham seus problemas para resolver, depois daquela noite, mas concordaram a uma trégua silenciosa, para o bem de seu líder. Após a sobrevivência de John, Hayworth ficara humilde - ele agora aceitava seu papel e se concentrava apenas no bem-estar de seu paciente - chegando ao ponto de ouvir os conselhos de Ká:nien. John estivera demasiadamente perdido nos primeiros dias para reparar na animosidade deles, mas isso tornou-se claro com o tempo, quando os dois homens e o aprendiz de cirurgião o olhavam enquanto se retorcia na cama.

John ficava claramente desconfortável, tão indefeso e vulnerável, tão exposto diante de pessoas que antes respeitavam sua autoridade. Agora, eles o viam como um objeto a ser discutido, nu e cutucado todos os dias com seus instrumentos médicos.

O coração de Ká:nien doía por ele, mas ele tinha outros problemas. Hayworth testava os sinais vitais de John várias vezes ao dia e trocava seus curativos por outros frescos, cobrindo-os com mel para combater infecções. Quando John inevitavelmente perdia a consciência, o cirurgião ficava com ele para monitorar o homem. Os médicos estavam sobrecarregados, divididos em cuidar de John e dos feridos da armada. Ká:nien estava ainda mais exausto que eles.

Ele fez o possível para supervisionar a recuperação de John enquanto cuidava do grupo, levando-os para casa. Fora ideia de Ká:nien usar o mel que roubaram dos suprimentos de Warwick nas bandagens - bem como o tabaco e uma planta chamada mil-folhas, que coagulava o sangue. Ele se concentrou no que conhecia da Medicina sagrada de sua aldeia, e do que aprendera ao longo de suas viagens, para ajudar os médicos.

“Nós estamos preparando um banquete nele?” Edwards nem sempre acreditava em sua opinião. “Isso parece um desperdício. Os homens-"

“Os homens entendem. Falei com eles.” Suspirou Hayworth. “Se o mel realmente funciona, John precisa mais do que eles. E mesmo se não for verdade, usá-lo faz mais bem do que mal.”

Para desgosto do garoto, a maior parte dos bens roubados de Warwick estava sendo canalizada para os cuidados de John. Quando a dor era muito grande, eles o embebedavam com a amarga água de fogo russa. A bebida era diferente de tudo que Ká:nien já havia provado antes - ele bebera com John uma vez e ela queimara em sua garganta, mexendo com seus sentidos em apenas alguns goles. Ele decidiu ficar longe dela, pois precisava de uma mente afiada para liderar os Mercenários.

E todos os dias John melhorava. Coisas tão pequenas quanto ser capaz de sentar-se sozinho na cama eram consideradas marcos - mesmo que ele ficasse enjoado depois. Hayworth o aconselhava a ir mais devagar, embora estivesse impressionado com o quão resiliente o homem conseguia ser.

John estava determinado. A perda dos seus membros e o seu estado frágil não o detiveram - Ká:nien tinha a certeza de que nada nesta terra poderia deter um Black de alcançar seu objetivo. E se o objetivo de John era melhorar, e voltar para casa, para sua amada, então ele o faria.

"Eu tenho que vê-la novamente, Ke." Ele havia lhe dito uma vez, à medida que a noite escurecia, com um sorriso no rosto. "Eu vou vê-la novamente. Nós dois vamos. Você vai voltar para casa, para sua família."

Ká:nien tinha plena consciência de que sua família era a única família que o próprio John ainda tinha.

"Você acha que ela sente minha falta?" John murmurou. “Sinto mais falta dela a cada dia.”

Sua voz estava melhorando, mas sua boca cicatrizava mais lentamente. Às vezes, Ká:nien tinha que apurar os ouvidos para entender o que ele dizia.

"Claro que sim. Posso senti-la orando pelo seu retorno." Ká:nien assegurou-lhe. "E eu vou levar você até ela."

"Sinto muito por ter mantido segredo de você." John se desculpou. “Sempre quisemos que você fosse o primeiro a saber.”

Ká:nien sorriu. Segredo era um termo generoso. Ele se lembrava de quando John começou a carregar a sacola que Nonahkee havia feito para ele para todo lado — defendendo, quando questionado, que ela era nova, bem feita e útil. Todas muito boas desculpas, se ao menos ele soubesse que o próprio ato de ganhar um presente revelara a verdadeira relação entre eles.

“Nada neste mundo me faria desaprovar da minha irmã com o meu melhor amigo.” Ele garantiu. “Agora vá dormir, John Black. Você deveria descansar. Ainda temos muitas milhas a frente até chegar em casa.”

Eles já estavam há dois meses na estrada para casa. Os feridos haviam se curado e o próprio John estava ficando mais forte — e duas vezes mais inquieto. Ele conseguia se mover um pouco, embora com ajuda, e era difícil acompanhá-lo. Ele não vomitava mais quando se movia sozinho - e podia mais uma vez compartilhar suas refeições com seus camaradas, sentando-se com eles ao redor das fogueiras enquanto riam e cantavam.

Seu rosto meio carbonizado havia curado o suficiente para que sua boca pudesse se mover novamente, e ele falava sem os impedimentos que exigiam que Ká:nien ajudasse seus soldados a entender suas palavras. Ká:nien nunca havia traduzido para homens brancos antes. Em algumas ocasiões, John era quem traduzia para ele. Ele descobriu que isso lhe dera um impulso de confiança, no entanto, quando os escaramuçadores ouviam as palavras de John saindo de sua boca, como se fossem suas próprias ordens.

Com a voz recuperada, John pôde mais uma vez dar instruções aos seus homens. Ele não conseguia liderar o povo sozinho, mas se sentia útil o suficiente, sendo capaz de pelo menos ajudar a administrar seu acampamento.

E melhor ainda, os Mercenários passaram a ouvir Ká:nien. A familiaridade ajudou, pois ele caminhara com aquela turma durante anos, e lutara ao lado deles nos últimos seis meses de jornada.

Mas o que realmente fizera a diferença foram, surpreendentemente, os britânicos. Em sua maneira teimosa, agora odiavam tanto ele quanto John.

Eles zombavam do fato de um índio e um meio-homem lhes darem ordens, embora não tivessem escolha a não ser segui-las. O Círculo fora derrotado e uma invasão às Américas fora evitada. John era um herói, mesmo que os ingleses o vissem apenas pelo que agora lhe faltava. Em resposta à sua zombaria, os Mercenários tornaram-se ainda mais leais, defendendo-os dos seus insultos cruéis, que já não se preocupavam em disfarçar sob uma polidez mal-contida.

“Não aguento mais um dia com aqueles britânicos.” Gemeu uma mulher colona. “Mas ainda temos meses e meses de viagem pela frente.”

“Estamos indo muito devagar.” O marido dela concordou, frustrado.

A única coisa em que todos concordavam era que a viagem para casa estava demorando muito. E com isso, os escaramuçadores não comentaram por respeito. Tal cortesia não se estendia aos humildes colonos. Com seus ferimentos, John não podia viajar muito rápido, cobrindo as milhas como costumava fazer. Eram necessárias muitas pausas e a estrada estendia-se à sua volta.

Felizmente, o grupo estava se aproximando de terrenos familiares. Eles haviam chegado às planícies, e as comunidades Lakota que os ajudaram durante a perseguição a Warwick estavam a apenas algumas horas de distância.

John estava apoiado em uma das carroças, aninhado em travesseiros e cobertores das tendas entre os suprimentos, para ter um pouco de conforto enquanto observava a viagem. Ele reconheceu as pastagens pisoteadas pelos bisões e Ká:nien notou que, mesmo com sua expressão quase permanentemente atordoada, ele estava animado.

“Vamos, isso não deixa você animado?” exclamou John. “Rostos familiares, finalmente!”

“Mal conseguimos nos entender.” Ká:nien lembrou.

“Eles vão querer saber as novas, com certeza.” John respondeu, sorrindo.

“Tenho certeza que eles terão perguntas.” Ká:nien observou. Então olhou em volta, para as árvores e arbustos espalhados pelo chão. “Devíamos fazer uma pausa aqui.”

"Eu estou bem." Foi a resposta de John. “Podemos continuar.”

“Será uma pausa pequena.” Ká:nien garantiu. “Mas se não pararmos aqui, enquanto temos sombra, vai ser só horas depois com os Lakota, ou sob o sol cozinhando as nossas cabeças. E os homens e os cavalos precisam de água.”

Era uma resposta razoável. John inicialmente presumira que ele era, como sempre, o motivo de pararem. Ele percebeu que, em sua teimosia de não ser visto como um peso morto, havia ignorado seu próprio treinamento de sobrevivência.

"Desculpe. Você tem razão." Ele disse, rindo. Ká:nien respondeu com um aceno de compreensão.

O grupo fez um círculo sob as árvores, colocando as carroças ao redor para conseguirem uma sombra extra. Os soldados ocuparam-se em servir água para os cavalos. Ká:nien se aproximou de John, que já sabia o que esperar. Ele passou um braço em volta do ombro do guerreiro e se deixou ser levantado.

Ká:nien não conseguiria carregar seu amigo no passado. Quando partiram pela primeira vez em direção ao oeste, John era forte e tinha até uma barriguinha. Ele havia se adaptado para sobreviver, seu corpo moldado para caçar e lutar. Agora, ele não só estava mais leve devido à falta de membros, como também estava mais magro e mais fraco.

“Olha, Wells! O índio e sua noiva!” – zombou um dos ingleses, para o amigo que estava ao seu lado. Os dois riram enquanto Ká:nien colocava John no chão, contra o tronco de uma árvore.

“Vou te dar uma palavra, homem!” Rupert, um dos Mercenários, levantou-se.

“Afaste-se, Rupert.” — gritou John. "Tenho certeza que ele não quis dizer isso."

Rupert fez uma careta, mas rapidamente entendeu o significado por trás das ordens de seu comandante. Ele se retirou, com um aceno de cabeça.

"Sim senhor."

John olhou para o inglês com sua fúria caolha. Todo o acampamento caiu em um silêncio apreensivo. Apesar de seus Mercenários estarem em menor número, eles se uniram para mostrar-lhes uma única mensagem: eles eram leais. Não importava quantos britânicos houvesse naquele acampamento, nenhum se conhecia como os homens de John se conheciam.

Eventualmente, a tensão deu lugar à voz calma de William.

“Eu passei dos limites. Desculpas, comandante.”

John sorriu.

“Venha aproveitar a sombra conosco.”

E assim, o grupo voltou a trabalhar, rindo entre si. John havia se afirmado pela primeira vez desde o incidente, mas sua autoridade não vacilou. Um vislumbre de esperança passou por sua mente – que talvez, de certa forma, as coisas pudessem ser como antes.

Ele não mencionou a Ká:nien o quanto a breve ansiedade da altercação o deixara enjoado. Mas ele suspeitava que seu melhor amigo, aquele que cresceu com ele e sempre enxergava  suas fachadas, tinha notado.

Não muito tempo depois, enquanto o grupo aproveitava a sombra, ouviram um cavalo que não era o deles, aproximando-se do acampamento pelo Leste.

“É um batedor.” O próprio batedor de John, LaMarque, observou. “Dos Lakota.”

"Você pode falar com ele?" John perguntou, animado. LaMarque levantou-se e caminhou até ele, com as mãos levantadas para indicar que estava desarmado.

“Parlez-vous français?” John ouviu sua voz.

Depois de algumas palavras trocadas, o homem voltou.

“Ele fala francês o suficiente para me dizer que não fala. Mas que o Cacique dele fala.” Ele riu. “Acho que ele se ofereceu para nos levar até ele. Eu tenho certeza."

O batedor esperava pacientemente ao sol, sem nenhum sinal de animosidade.

“Veja se ele ou seu cavalo precisam de água.” — perguntou John. “Se você conseguir explicar.”

"Farei o meu melhor, senhor." LaMarque assentiu.

Algumas horas de lazer se passaram. O sol estava alto e quente no céu, e os homens ficaram aliviados quando avistaram, aproximando-se ao longe, o maior acampamento Lakota da região.

O batedor que os liderava rapidamente chamou a população do acampamento, que se reuniu em torno deles, entusiasmada. John e seus homens haviam lutado contra Warwick naquela área alguns meses antes, além de terem feito vários favores aos habitantes locais.

Ká:nien sabia que ainda havia uma ligeira tensão entre eles - já que eram estranhos naquela terra, e seus favores eram fortemente tendenciosos apenas a ganharem o respeito dos Lakota. Não era um verdadeiro começo para uma amizade, e eles estavam cientes disso. Mas Warwick aterrorizara a região, como fizera em qualquer lugar por onde havia passado - e expulsá-lo tinha pelo menos conquistado o respeito e os agradecimentos deles para os Mercenários.

Portanto, John e seus companheiros ainda foram recebidos calorosamente pelo Cacique.

Os Lakota não falavam inglês, mas alguns deles sabiam francês. LaMarque trabalhou como tradutor entre John e o Cacique Flecha-Certeira, que estava quase terminando de se recuperar dos ferimentos nas batalhas contra Warwick. A tradução foi difícil, pois John estava entusiasmado e não parava de falar.

Eles se reuniram no centro da aldeia para uma refeição. John, como sempre, estava encostado em um caixote ou barril de alguma coisa, para poder sentar-se ereto sem se cansar muito. Ká:nien estava ao seu lado mexendo com um pedaço de papel.

"Estou feliz em ver que você melhorou, Chefe Flecha-Certeira." John assentiu, respeitoso. "Eu estaria mentindo se dissesse que não pensei em você de vez em quando."

O Cacique fora um dos guerreiros mais ferozes batalhas contra a Guarda de Ossos. Uma bala o atingiu no ombro e outra feriu sua perna, mas ele continuou até que mais três soldados de Warwick caíssem. Não era surpresa que sua tribo o seguisse tanto. Ká:nien conhecia um homem que merecia cada pena de seu cocar quando via um.

"Eu também pensei em você." O Cacique respondeu. "Devo admitir, estou surpreso que você tenha voltado em seu estado."

LaMarque traduziu, mesmo que se fizesse uma leve careta de preocupação por estar prestes a ofender seu líder. John lançou-lhe um sorriso e um encolher de ombros.

"Não me arrependo do que fiz, Chefe. Ou do que me tornei. Warwick tinha que cair, e eu... tinha que vingar minha família e minha colônia. Mesmo que nada seja igual a antes... estou em paz com isso. Eu visto minhas cicatrizes com orgulho.”

Houve um momento de silêncio solene em todo o acampamento. John não estava dizendo aquilo em voz alta por nada. Era uma afirmação, não para seus homens, mas para si mesmo. LaMarque ficou tão impressionado que quase se esqueceu de traduzir. Flecha-Certeira, percebendo a atmosfera ao redor deles, lançou-lhe um olhar. O soldado obedeceu rapidamente, repetindo as palavras de John em francês.

O Cacique sorriu, com orgulho em seus olhos.

"Você é um verdadeiro guerreiro, John Black." Ele disse. Mas avisou: "Tenha cuidado para que isso não lhe traga ruína."

Era uma dualidade estranha, Kánien notara. As pessoas ao redor de John estavam simultaneamente impressionadas e orgulhosas de suas ações, mas ainda assim viam o incidente como um tipo de mau presságio. Ele sabia que se não fosse tão próximo do homem, pensaria o mesmo. Mas do jeito que era, ele via apenas seu amigo, cuja determinação inabalável havia levado a uma mudança em sua vida. Um amigo que precisava de ajuda, mas que ainda era o John Black que ele conhecia desde que se lembrava.

"O que você está rabiscando aí, afinal?" John perguntou, vendo Ká:nien tentar passar a caneta nanquim no papel contra uma caixa.

"Um dicionário." Ká:nien respondeu, exibindo-o.

John olhou para o papel. Ká:nien não escrevia com frequência e sua caligrafia era terrível. Palavras em Haudenosaunee explicavam palavras em Lakota, termos muito básicos como “bom dia” e “até logo”.

"Como que se pronuncia isso?" John perguntou, animado. “Gostaria de me despedir do Cacique em sua própria língua.”

Ká:nien sorriu, orgulhoso de sua ideia.

Os dias foram passando, sem muitas novidades. A recuperação de John não era de forma alguma uma escalada constante. Muitas vezes ele ficava febril e delirante quando as dificuldades da estrada o atingiam. Mesmo viajando em ritmo tranquilo, apenas algumas horas por dia, ele ainda estava se esforçando ao máximo - e isso tinha consequências. Ele tinha enxaquecas, vomitava e sentia-se mal demais para se mover, ou ser movido, mesmo numa carroça.

"Certifique-se de manter-se hidratado, pelo menos." O cirurgião retrucava. “Entre todo esse suor, vômito e mijo, você está perdendo muita água do corpo.”

Era verdade, mas não fazia com que John se sentisse menos humilhado com seus comentários. Ká:nien sabia que todos queriam voltar para casa, e o homem não queria ser um fardo para seus soldados.

Ao contrário dos britânicos, a experiência cirúrgica do médico estendia-se às suas palavras. Ele sabia exatamente o que dizer para fazer John ouvi-lo, mas suas palavras sempre soavam como um duvidoso insulto. Ninguém sabia dizer se era sua opinião profissional como um médico preocupado ou uma zombaria desdenhosa. Ká:nien desprezava o homem cada vez mais, e o pior era ver que ele estava realmente fazendo seu trabalho corretamente.

Independentemente da vontade de John, as milhas se arrastavam.

No quarto mês, chegaram aos Grandes Lagos, onde haviam se despedido de Nonahkee, que voltara à sua aldeia. Àquele ponto, a armada já estava começando a se separar. Os ingleses os deixaram nos Lagos, ansiosos por informar aos seus generais sobre a derrota do Círculo. Quem tinha família nas colônias queria voltar para casa. Com o passar dos dias, mais e mais soldados ingleses mudaram de rumo e deixaram o grupo.

Eles começaram o dia em uma vila maior. Os soldados tiveram uma ótima noite de descanso, em camas aconchegantes e entre paredes, como não acontecia havia algum tempo. Mesmo que tivessem que se empilhar nos quartos, já que a pousada era quase pequena demais para todos eles.

Graças ao descanso, John se sentia mais forte no dia seguinte. Apesar das dificuldades, sua condição estava realmente melhorando. Ele pode assistir o restante dos britânicos tomarem a estrada.

Porém, para sua surpresa, Wells veio até ele naquela manhã. Eles se sentaram juntos em uma mesa no salão da pousada.

"Will nunca vai admitir isso." Ele disse. "Mas você impressionou ele."

"Oh." Foi a resposta insegura de John.

"Você foi a razão pela qual o Parlamento finalmente levou o Círculo a sério." Wells continuou. "Os superiores nos chamavam de iludidos, por acreditarmos nas histórias. Muitos de nós tentaram avisá-los, mas eles só prestaram atenção graças a você. E então você impediu uma invasão."

"Eu estava apenas cumprindo meu dever." John começou, pronto para proferir as habituais palavras de agradecimento toda vez que alguém mencionava seus feitos - uma arte que ele aperfeiçoara para parecer humilde e ainda assim rejeitar rapidamente uma conversa. Mas Wells o interrompeu.

"Não, não é isso que eu quero dizer. Veja, Will e eu conversamos com o General e, em nome da Coroa, concordamos que você deveria ser recompensado. Bastante."

"...Oh."

John não sabia o que dizer daquilo.

"Devo acompanhá-lo até sua... comunidade. Os outros partirão." Wells disse. "Assim que chegarmos lá, cuidarei para que sua recompensa seja entregue."

"Estamos falando de... o quê, dinheiro?"

"Mais do que você já viu na vida. E títulos de terras, para o índio."

"Oh." Disse John pela terceira vez. "Eu... se me der licença, meu senhor, estou me sentindo um pouco indisposto."

"Você precisa de alguma coisa? Quer que eu chame o médico?"

"Só chame o Ká:nien, por favor." John murmurou. Ele tinha certeza de que sua tontura, pela primeira vez, não estava relacionada a necessidades médicas.

A ideia de receber terras como prêmio era tão estranha para Ká:nien quanto a ideia de que terras pudessem pertencer a alguém. Era apenas terra, lugares. As pessoas viviam neles, cuidavam deles, e em troca eles cuidavam delas. Imaginar que algumas palavras em um pedaço de papel pudessem vincular um terreno a ele era desconcertante.

Mas ele havia aprendido a navegar as regras dos homens brancos e, por mais estranho que isso lhe parecesse, ele as entendia. Um título significava propriedade e, para eles, a propriedade não podia ser invadida. Com um título, ele seria capaz de preservar a sua aldeia. Seus campos, sua caça, suas colheitas.

Ainda parecia errado. Como se ele estivesse traindo a própria terra. Ele sabia que teria que convencer seus colegas sobre isso quando chegasse em casa. Mas ele também sabia que a liberdade deles diminuía a cada dia. A cada ano as colônias cresciam, os homens brancos prosperavam e os territórios Kanien’keha:ka eram restringidos. Se algo não fosse feito, eles seriam eliminados – como ele percebeu quando as forças de Warwick lutaram contra o seu povo. Se isso significasse que ele teria que seguir o jeito dos homens brancos, que assim fosse. Talvez a única maneira de sobreviver fosse adaptar-se.

Os mercenários e colonos estavam alegres - todos receberiam uma parte do prêmio em dinheiro.

“Achei que você estaria mais feliz.” Rupert havia dito a ele.

O humor de Ká:nien não melhorou durante dias. O único que conseguia entender seu ponto de vista era John.

John também não parecia muito bem. Desde aquele dia, ele se distanciou até mesmo de seu melhor amigo. Ele se permitia ser cutucado pelos instrumentos de Edwards e Hayworth, e curado pelos próprios métodos de Medicina de Ká:nien, mas não conversava com ele durante a noite, como sempre ficava tão ansioso por fazer. Ele evitava a tudo e todos, e fazia menos pausas na viagem do que sua condição merecia.

Um dia o cansaço o atingiu de verdade. Eles haviam viajado mais naquele dia, pois John havia garantido que se sentia mais forte - o que resultou em um corpo febril, delirando por causa do estresse. Enquanto os cirurgiões partiam para a cidade mais próxima em busca de remédios, Ká:nien foi deixado sozinho nas tendas, fazendo o que podia pelo amigo. Ele estava ao lado de John quando ele finalmente abraçou o medo que pairava como uma sombra em seu coração.

"Ela não me quer." John balbuciou. “Nonahkee não... não me quer.”

"Ela disse isso para você?" Ká:nien riu, passando um pano molhado na testa do amigo.

"Ela me disse. Eu a ouvi. John continuou, com tanta convicção que ninguém pensaria que sua mente estava gravemente prejudicada. “Eu não sou mais o mesmo. E eu... eu não posso dar filhos a ela. Não mais."

“John, isso não é importante.” Ká:nien respondeu, cauteloso.

“Discutimos nomes.” John insistiu. “Ela queria ser mãe.”

"É verdade?" Ká:nien perguntou surpreso. Ele conteve a vontade de perguntar sobre sua irmã. Ele sentia tanta falta dela quanto John claramente sentia, embora o homem não estivesse em condições de entretê-lo no momento.

"Oh Deus. Ela provavelmente pensa que só fiz isso por dinheiro. Como suborno.” John estava à beira das lágrimas. “Para ela me ter de volta.”

"John-"

O homem escondeu o rosto com a mão restante. O toco de seu braço também subiu, como se ele estivesse usando ambos os membros no gesto.

"Dói tanto. Por que ainda posso senti-los?” Ele chorou. “Por que sinto os membros que fui amaldiçoado a não ter? Por que ela não me quer?

“John, John, me escute.” Ká:nien agarrou-o pelos ombros. “Minha irmã não disse nada. Ela não está aqui! Ainda não estamos em casa. Ele lembrou. “Você não pode ficar ressentido com ela por algo que ela nunca disse.”

"Ela está... ela não está aqui?" John murmurou.

Ká:nien sabia que seu amigo não estava entendendo uma palavra do que ele dizia. Mesmo assim ele tentava.

“Não vou colocar palavras na boca da minha irmã. Mas isso significa que você também não deveria.” Ele disse, segurando John para encará-lo. “Não perca a esperança, meu amigo.”

Edwards entrou na tenda nesse momento.

“Trouxemos o remédio.” Ele disse. “Posso cuidar dele a partir daqui.”

“Ke, eu não…” John murmurou, confuso. “Eu não entendo, se ela não está aqui, então onde…?”

“Você a verá pela manhã. Agora faça o que os médicos mandam.” Ká:nien conseguiu tranquilizá-lo, antes que Edwards o enxotasse.

Obviamente, Nonahkee não estava lá pela manhã. Mas John estava lúcido novamente e pôde pensar nas palavras de Ká:nien.

Ele estava sério quando o homem se aproximou dele, sentado apoiado em um caixote de frente à barraca, aproveitando o ar da manhã.

“Não posso esperar mais, Ke.” John disse, firme. “Precisamos viajar mais rápido. Faça-me acompanhar o ritmo dos homens. Mesmo se eu ficar doente.

"Você está mesmo me dizendo isso depois de ontem?" Ká:nien revirou os olhos. “Você viu o que aconteceu.”

“O que significa que eu entendo os riscos.” John respondeu. “Mas estou pedindo a você. Ká:nien, sou um líder para todos aqui, menos você. Eu te peço isso... eu te imploro, como amigo.” Ele exclamou. "Me leve para casa."

Ká:nien mordeu o lábio. O apelo de John era sincero – e ele estaria mentindo se dissesse que não queria voltar também, para sua família e amigos. Ele entendia muito bem a dor do homem.

“Vamos achar um meio-termo.” Ele disse finalmente. “Não quero entregar um cadáver à Nonahkee. Ela nunca me perdoaria se eu deixasse você morrer na estrada.”

 

Com esse acordo, eles reuniram seus pertences e partiram. John, na última carroça, fechava o grupo, enquanto Ká:nien liderava pela frente.

Havia cada vez mais cidades ao longo da estrada agora - e assim o seu bando de homens tornou-se cada vez menor, à medida que se separavam para seguir o seu próprio caminho, para as suas próprias casas. Com menos pessoas, eles poderiam viajar mais rápido.

John não reclamara uma única vez, mesmo quando suas costas ficaram doloridas de ficar sentado na carroça o dia todo sendo esbarrado, mesmo quando ele ficara com febre devido ao estresse em seu corpo. Eles seguiram pela estrada.

Havia dez deles ainda indo para a Nova Inglaterra. Até Edwards poderia ter partido para sua própria cidade, mas estava preocupado com John e com seu mentor ter trabalho demais.

A arnada estava a três dias da cidade de Ká:nien quando reservaram uma pousada no último posto avançado. Apesar da viagem, John estava se sentindo melhor do que se sentira em meses. Pela primeira vez, ele acreditou na recuperação.

Ká:nien conseguiu uma mesa com John, LaMarque e, infelizmente, Hayworth. O cirurgião sabia que a cerveja que bebiam não estava ali por motivos médicos e manteve um olhar atento sobre os homens.

John o ignorou.

"O Ke fica tonto rápido." Ele riu. "Não ficaremos aqui por muito tempo."

Ká:nien lançou ao amigo uma expressão exageradamente ofendida.

“Eu já vi como você fica quando bêbado, Black.” Ele brincou.

Eles cantaram noite adentro e contaram histórias de viagens anteriores um para o outro – as vozes ficando cada vez mais altas a cada copo. Foi um momento de descanso. Quando todos estavam sentados juntos na taverna, John não se sentia um estranho. Eles comeram juntos, jogaram jogos de festa - John tentou uma queda de braço em LaMarque, perdendo instantaneamente. Hayworth chegou a se soltar um pouco e se juntar a eles.

Mas sombras de dúvida ainda pairavam na mente do homem enquanto ele foi dormir aquela noite. John se retraiu, mais e mais distante quanto mais se aproximavam da aldeia. Ele logo obteria suas resposta, mais cedo ou mais tarde, e não sabia qual das opções era a pior.

Então ele aproveitou os bons momentos com seus amigos. Ou pelo menos fingiu.

"Nonahkee!" Chamou uma amiga do lado de fora da maloca. O grito estridente dela acordou a mulher, com um sobressalto sonolento, e ela se mexeu na cama.

"O que?" Ela gemeu.

"Você vai ficar aí o dia todo?" A amiga entrou e olhou para ela com uma expressão atrevida, de braços cruzados.

Nonahkee sentou-se na cama, com algum esforço.

"Iso’tha, eu estou tão grande que podia explodir." Ela lembrou. "Eu mereço um descanso. Você sabe que não terei muito tempo daqui a uma semana ou mais."

"Mas aí que você vai ficar acamada de verdade.” Iso’tha respondeu. "Você não quer sair por aí enquanto ainda tem a chance?"

"Não." Foi a resposta direta e seca. Iso’tha suspirou e saiu da casa.

Nonahkee começou a transferir seu peso para deitar de novo, quando Iso’tha voltou correndo.

"Nonahkee!!" Ela gritou duas vezes mais alto.

"Querida, eu não acabei de te dizer..." ela suspirou, irritada.

"É o Ká:nien! É o seu irmão, e os outros!!" Iso’tha gritou, feliz. "Eles voltaram!!"

Nonahkee sentou-se novamente.

Ela se levantou da cama o mais rápido que pôde e caminhou até a porta. Lá, a mulher viu uma fila de homens com roupas práticas entrando na aldeia, com duas carroças puxadas por cavalos na retaguarda.

E liderando-os estava seu irmão.

Ká:nien não conseguia acreditar que eles conseguiram.

Já havia se passado mais de um ano desde a última vez que ele vira sua aldeia - e ele se lembrava da última vez que esteve lá com raiva e tristeza. As forças de Warwick que marchavam sobre ela, os Mercenários quase não chegando a tempo de impedir um ataque letal. Ele ainda conseguia se lembrar dos canhões, destruindo as paredes e derrubando as malocas ao chão.

O lugar era diferente agora. Tinha sido reconstruído na ausência deles, por seu povo e pelos poucos trabalhadores sobreviventes de Brunswick, que John havia deixado para trás. Agora, havia menos malocas - mas algumas cabanas, também feitas de casca de árvore, haviam surgido entre elas.

Era estranho, mas apropriado, que a casa deles não fosse mais a mesma. De certa forma, eles também não eram mais os mesmos.

"Essa é a… comunidade da qual você tanto falou?" Wells perguntou. "Parece tão simples... quero dizer. Sem querer ofender." Ele se virou para Ká:nien.

"Não me ofendi. É uma vida simples." Ele respondeu. "É honesta."

"Ká:nien!"

Ele parou no meio do caminho. Ele acabara de ouvir a voz de sua irmã.

"Nonahkee?" Ele gritou de volta, sorrindo. Como ele sentira falta da voz dela.

Mas quando ele se virou para ela, seus olhos estavam arregalados.

"Eu não acredito..." ele sussurrou.

Ela estava gravida.

Ela estava muito grávida. Nonahkee se portava com esforço e parecia estranhamente pesada e inchada para seu pequeno corpo.

“Irmão...” ela murmurou na língua deles, aproximando-se dele. Ela parecia muito constrangida, totalmente consciente de seu estado e da surpresa nos olhos dele.

Para quebrar a tensão, ele deu um passo à frente e a abraçou.

"Eu senti tanto sua falta." Ela chorou em seu ombro. "Já faz tanto tempo! Por que você demorou tanto?! Achei que nunca mais iria ver você de novo!"

"Sinto muito por termos chegado atrasados." Ká:nien respondeu, chorando. O simples ato de falar novamente em sua língua foi suficiente para animá-lo depois de tão longa a jornada. A única outra pessoa com quem ele conseguia conversar em Haudenosaunee era John, e o dele era terrivelmente pobre...

"Ke? Tá tudo bem?" Nonahkee perguntou, quando Ká:nien congelou.

Ele teria que lidar com isso, ele percebeu.

"Onde está o John?" Ela perguntou, percebendo de repente sua ausência. Seus olhos estavam cobertos de medo.

"Ele está vindo atrás de nós." Ká:nien a tranquilizou e ela exalou de alívio. “Mas irmã, você precisa se preparar. Ele é mais como você se lembra.”

Insegura, Nonahkee o seguiu. Seu irmão a conduziu pela mão até as carroças atrás dos homens. Um deles já estava ajudando John a se levantar. Ele insistira em ser levado de pé até sua amada.

Ká:nien correu até eles e segurou-o pelo lado esquerdo, mais firme, passando o braço de John sobre seus ombros. Eles cambalearam até Nonahkee.

Ela estava com as mãos na boca, aberta mas silenciosa. Sua voz, presa na garganta.

"Nonahkee...?" John murmurou. "Meu Deus, você é linda."

"O que aconteceu com você...?" Ela sussurrou, não por julgamento, mas preocupação.

"Você é tão linda, meu amor... exatamente como eu me lembro" ele continuou falando. "Amor, eu prometo que não quero subornar você. Sinto muito."

"Do que você tá falando?" Ela correu para segurá-lo.

"Ele não está coerente." Ká:nien explicou. "Está com febre. A viagem foi difícil para ele."

"Você me aceitararia de volta?" John perguntou, mais alto. "Pode partir meu coração, mas não minta para mim. Eu te amo. Você ainda me ama?" Ele tentou dar um passo à frente na direção dela – mas sem uma perna para fazê-lo, quase caiu. "Nonahkee, eu te amo."

"E eu te amo, John." Ela respondeu, chorando. Ela se juntou a John e seu irmão em um abraço – o outro homem se afastou. "Claro que aceito você de volta. Não importa para mim sua aparência. Eu te amo."

John se aninhou em seu ombro e ela sentiu suas lágrimas.

"Já deu." Ká:nien disse, quando eles se separaram. "Você precisa descansar." Ele começou a levantar John nos braços e a carregá-lo até a carroça.

Horas depois, Nonahkee se viu deitada dentro da maloca mais uma vez. Mas desta vez, como que por uma bênção, John Black estava ao seu lado.

Ká:nien havia saído para conversar com seus amigos e companheiros guerreiros, que se reuniram no centro da aldeia para receber os recém-chegados. Ele ainda tinha a notícia dos títulos de terra para explicar.

Nonahkee teria se juntado a eles, mas nenhuma força na terra poderia separá-la de seu amante.

Ele abriu o único olho bom e se virou para ela.

"Isso é um sonho?" Ele perguntou.

"Se você está sonhando, eu também estou." Ela respondeu, sorrindo. "Você está bem?" Ela perguntou. "Consciente?"

"Eu estou bem." John respondeu. "Você está grávida."

"Só uma coisinha para me lembrar de você." Ela riu.

"Deus, é por isso que senti sua falta." John riu. "O que você acha? Menino ou menina?"

"Definitivamente um menino. Definitivamente seu filho." Ela falou. "Você tinha que ver como ele chuta."

"Posso?" John perguntou, esperançoso.

Nonahkee mexeu-se no seu lado da cama, para permitir que John colocasse a cabeça na barriga dela. Ele ouviu, ele sentiu. Ele chorou.

"Devíamos criá-lo aqui." Ele sussurrou. "Na sua aldeia. Na cultura dele."

"Sua cultura também é a cultura dele." Ela franziu a testa. "Adoraríamos tê-lo aqui. Mas não vou negligenciar o seu lado da nossa família."

John sorriu. "Então ainda somos uma família?"

"John Black. Olhe para mim." Nonahkee disse. "Não há palavras em inglês ou Kanien'ke:haka que possam descrever o quão feliz estou por ter você de volta em minha vida. Já disse isso antes e direi novamente - não importa sua aparência. Eu amo você."

John exalou.

"Eu também te amo." Ele disse. E segurou a mão dela.

NARRAÇÃO DE AMÉLIA:

O filho de Nonahkee nasceu menos de uma semana depois. A vida dos Mohawk continuou, como tinha a anos, e John teria vivido - e prosperado - por mais quatorze.

Ele criou e inspirou seu filho, à medida que aprendeu a conviver com suas feridas.

Embora os russos tivessem partido, Ká:nien sabia que outros homens brancos os seguiriam, espalhando-se como fogo até cobrir a terra. Mas até então ele viveria, trabalharia e cuidaria de sua família. Do sobrinho dele.

Meu pai: Nathaniel Black.


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Notas finais do capítulo

Muito obrigada por ler! Se possível, pode deixar um comentário? Eu não costumo pedir, mas eu realmente me esforcei nessa história.



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