O Ladrão de Nyhue escrita por Catarina de Oliveira


Capítulo 4
4. A Jaula dos Rejeitados




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Haakon, do Clã Vidar.

Septuagésima Sétima Lua do Outono do Ciclo de 27 da Era das Espécies.

O Elfo Fronteiriço — fronteira entre a Tribo de Nyhue e a cidade de Blackfield, Extremo Norte do Velho Continente.

 

A Jaula dos Rejeitados era o maior evento dos Luares da fronteira. O vencedor ganhava duas Luas de bebidas gratuitas, mas o que realmente trazia lucro para O Elfo Fronteiriço eram as apostas coordenadas por Hessyah, que cobrava uma taxa para aquelas transações. Além disso, quando Celtigar estava por ali, atuava como campeão da casa, por vezes revezando essa posição com Merikh. Geralmente os oponentes eram outros homens perigosos que gostavam de se exibir e que de qualquer forma apreciariam o prêmio de bebida gratuita.

Os embates ocorriam em um grande salão no subterrâneo do O Elfo Fronteiriço, construído com magia. Haviam extensos tablados de madeira escura onde os espectadores se acomodavam, alguns já formando uma longa fila em direção a um majestoso anexo, também de madeira, levemente elevado, onde Hessyah já estava sentada e coordenando as apostas - e pelo que podia ver, aquele seria um Luar muito agitado.

Já a Jaula em si era um pequeno quadrado de terra batida com a pequena extensão delimitada por grossas barras prateadas que iam do chão até o teto. Haakon e Merikh decidiram sentar-se perto de Hessyah, em um dos pontos mais altos do tablado, de onde poderiam ter uma visão perfeita de onde ocorreriam os embates.

— Primeiro embate do Luar: Arik Freesword, feiticeiro parte Abissal, lutando com sua adaga contra Demir Mairwen, bruxo, com seu facão. — Hessyah anunciou, sua voz ecoando pelas paredes do local enquanto a fila diminuía e os espectadores começavam a se acomodar.

Haakon observou atentamente os oponentes, mesmo que não tivesse interesse em apostar naquela luta específica. Os dois homens tinham quase a mesma compleição física, embora Arik fosse uns bons palmos mais alto. Eram esguios, quase magricelas e não pareciam aguentar muito confronto físico, o que fazia com que Haakon considerasse Arik particularmente ousado por preferir ir para a Jaula com uma arma de curta distância. Bocejou, entediado. Lutas que se resolviam apenas na magia costumavam ser extremamente chatas e não era difícil concluir que era isso que aconteceria.

Hessyah bateu um grande sino de bronze, indicando o início da luta. Haakon observou os próximos movimentos como se já os tivesse coreografado anteriormente. Arik cortou a palma de sua mão e deixou o sangue se misturar com o chão de terra. Conseguiu ver sua boca se movendo, formando palavras em ashtar, a velha língua dos Abismos, e o assistiu simplesmente se fundir a uma sombra e desaparecer diante de seus olhos. Demir manteve-se na parte mais iluminada da Jaula, tentando atrair Arik para fora das sombras.

— Previsível. — Haakon bufou, nada impressionado com o movimento. — Celtigar vai chutar o traseiro de Arik,

— Celtigar vai. — Merikh concordou, concentrado na luta, embora também não aparentasse estar particularmente entretido. — Mas Demir não vai.

— Não, ele definitivamente não vai. — Haakon precisou concordar com aquilo. Não era preciso muita experiência para prever aquilo.

Como previsto, a luta foi rápida. Não demorou muito para que Arik conseguisse desarmar Demir e em poucos minutos, já tinha o imobilizado. Antes que o embate acabasse oficialmente, Haakon e Merikh levantaram-se e dirigiram-se até Hessyah, cada um dos dois passando cinco moedas de ouro para a velha elfa, apostando em seu amigo sem pensar duas vezes.

— Próximo embate: Arik Freesword, feiticeiro, parte Abissal, lutando com sua adaga contra Celtigar, feiticeiro parte lobisomem, sem armas. — Hessyah anunciou quando finalmente as apostas se encerraram e quando a dupla se sentou novamente, o loiro já estava na Jaula.

E não era como se Celtigar não soubesse portar lâminas, mas simplesmente considerava injusto usar mais do que seu próprio corpo e suas habilidades inatas em uma disputa amistosa. Quando o loiro fechou os olhos, Haakon deixou um sorrisinho escapar: sabia muito bem que Celtigar estava usando a Magia Elemental para se conectar com a chama de cada um das dezenas de velas e archotes que iluminavam o ambiente.

E então, sem pressa, Celtigar tirou a capa de pele de lobos-cinzentos e os pedaços de pele de urso negro que estavam amarradas em seu corpo, permanecendo apenas com a calça fina de algodão tingindo de bege já um tanto suja. Seu tronco ficou completamente desnudo, revelando suas inúmeras cicatrizes e tatuagens feitas à força com símbolos licantropos que denunciavam seus roubos e outros delitos pelo  qual foi pego.

Aquela já deveria ser uma figura assustadora por si só. Sua pele pálida remetia a Linhagem da Lua de sua avó paterna, mas seus cabelos loiros evidenciavam a Linhagem da Floresta de seu pai e de seu avô paterno. A única característica que tinha do lado materno eram as orelhas levemente pontudas, quase imperceptíveis.

Era fácil presumir que havia herdado mais de seu pai do que sua mãe baseado apenas em sua aparência. Celtigar jogou sua cabeça para trás e Haakon quase viu o momento em que o amigo resgatou toda sua raiva e o ódio que sentia contra o mundo e deixou que esses sentimentos estourassem dentro de si. Já tinha visto aquela cena tantas vezes antes: era hora de libertar o lobo.

Ouviu Celtigar urrando no momento em que seus ossos aumentavam e se curvaram - por mais que ainda conseguisse se equilibrar em duas patas, sua coluna agora era capaz de baixar o bastante para que fosse confortável correr em quatro patas. Presas pontudas rasgaram sua gengiva, enchendo sua boca de sangue, e suas unhas se transformaram em garras. Sua pele engrossou antes de pelos espessos e claros cresceram, preenchendo todo o seu corpo.

Então, Hessyah tocou três vezes o grande sino de bronze ao seu lado, anunciando o início do segundo embate da noite. Conforme previu, no mesmo momento Arik cortou um pedaço de seu próprio pulso e deixou o sangue cair no chão, murmurando as malditas palavras em ashtar antes de simplesmente sumir na Jaula.

— Imbecil. — Merikh deu uma risadinha, endireitando-se em seu lugar, um brilho de diversão surgindo em seus olhos.

Haakon apenas sorriu enquanto Celtigar estendeu os braços e os levantou acima de sua cabeça. Tão rápido quanto um piscar de olhos, o fogo das velas e archotes presentes no ambiente cresceram até formar uma espécie de teto de fogo, iluminando todo o ambiente e Arik apareceu tão subitamente quanto apareceu.

Haakon não conteve uma risada. Era o truque mais antigo dos elfos de fogo: se quisessem impedir que o sangue dos Abismos se fundisse com as Sombras, bastava garantir que não houvessem Sombras. Celtigar agachou-se, batendo as patas dianteiras no chão e preparando-se para o primeiro ataque. Deixou Arik chegar perto o bastante para tentar apunhalá-lo, em um movimento ousado, porém bem estúpido. Celtigar rapidamente se desviou do golpe, suas garras rasgando a pele de seu oponente.

A luta não demorou muito. Arik tentou desestabilizá-lo, mas Celtigar era de uma das últimas gerações da Era dos Deuses e teve um pouco mais de cem Ciclos de vida para aprender a controlar a Magia Elemental. Além disso, apesar de Celtigar ser um feiticeiro, tecnicamente era um lobisomem adulto, com garras que rasgavam metais e força o bastante para enfrentar outro lobisomem adulto.

— Ele é uma máquina de matar. — Haakon comentou. Por mais que não fosse a primeira vez que visse Celtigar lutar, nunca deixaria de ficar impressionado com suas habilidades.

— Você não faz ideia do quanto. — Merikh respondeu sombriamente. — E por falar da Morte, quer me explicar como começou essa história de trabalhar para os Sacerdotes de Divita?

Haakon molhou o lábio inferior nervosamente. Deveria imaginar que Merikh não deixaria aquilo passar tão facilmente. Por mais que Haakon tecnicamente não precisasse da autorização de ninguém para aceitar trabalhos solos, não podia fingir que não devia lealdade a Merikh e Celtigar, e se associar com Sacerdotes da Morte praticamente em segredo era no mínimo delicado.

— Começou com um serviço pessoal para o Sacerdote Parzival. Ele queria que eu “recuperasse” um velho colar de família, aparentemente um amuleto importante para ele. — Haakon relatou, decidindo ser o mais sincero possível. — Também já fiz alguns serviços para o Sacerdote Draven, para o Sacerdote Aillard e para o Sacerdote Erelpheus. Pagam de cinquenta a cem moedas de ouro por serviço.

— E por que eles vão querer mais dois ladrões dessa vez? — Merikh tinha todos os motivos do mundo para não confiar em quem servia os Deuses e experiência o bastante para fazer todas as perguntas certas.

— Porque é a primeira vez que marcam o encontro no Mundo Inferior. — Haakon admitiu, engolindo em seco. — Draven disse que está fazendo um favor para o Guardião Caractacus.

— Então você está me pedindo para negociar com um Guardião das Almas. — a voz de Merikh soou fria e sabia que estava mais encrencado do que poderia imaginar.

Guardiões não eram bem vistos em nenhum lugar de Zhivot. Era uma forma de sacerdócio completamente desonrosa, geralmente por punição e eram conhecidos por serem pessoas horríveis em geral. Guardiões das Almas eram um assunto ainda mais delicado - eram homens e mulheres que quando vivos, cometeram as maiores atrocidades imagináveis. Não eram apenas assassinos cruéis, eram verdadeiros dizimadores de povos, sedentos por sangue, tão horrendos que não mereciam o descanso eterno. Após a morte, como punição, eram presos a uma semi vida no Mundo Inferior, condenados a passar a eternidade cuidando das almas e dos processos de reencarnação.

— Eu não te pediria algo assim se não tivesse certeza que o negócio é seguro.

Afinal, a palavra era tudo que um homem tinha. No meio em que viviam, aquela era a lei mais importante e Haakon sabia disso. Enquanto assistiam Celtigar se preparar para o seu próximo embate, Haakon rezou silenciosamente para estar realmente certo sobre tudo aquilo, porque caso não estivesse, as coisas realmente iriam ficar bem ruins para o seu lado.


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Notas finais do capítulo

Eu espero que estejam gostando do desenrolar da história! Deixem suas opiniões nos comentários



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