O Ladrão de Nyhue escrita por Catarina de Oliveira


Capítulo 1
1. O Ladrão de Nyhue


Notas iniciais do capítulo

Boa noite a todos! Espero que gostem do capítulo.



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Merikh, filho de Megaera.

Septuagésimo Sétimo Sol do Outono do Ciclo de 27 da Era das Espécies.

Tribo de Nyhue - Extremo Norte do Velho Continente.

 

MERIKH mordeu o lábio inferior com força quando sentiu as tiras de couro trançado do açoite rasgando-lhe a pele das costas mais uma vez. O seu corpo imediatamente tentou reagir por instinto e içar-se para cima, em uma tentativa vã de livrar-se daquela dor excruciante, porém foi impedido. Seus pulsos estavam presos por uma corda muito grossa a uma pedra grande e pesada, o que o fazia permanecer curvado, a disposição daquela punição extrema.

O chicote subiu e desceu novamente em um estalo seco e dessa vez sentiu seus joelhos vacilarem e finalmente caiu no chão, sentindo os galhos secos penetrarem em sua pele grossa por conta do impacto. O barulho das vaias preenchiam-lhe os ouvidos, causando ondas de ódio que pareciam tornar as chibatadas ainda mais dolorosas e amargas. Lá estava ele, de joelhos, humilhado e sangrando diante quase todos da Tribo de Nyhue, ciente que boa parte de seu povo estava se deliciando com aquela cena.

O açoite não parou, mas Merikh desistiu de contar após a vigésima quarta chibatada. Chafyr, o Chefe da Tribo, não estava poupando sua força e podia sentir a raiva do velho cada vez que o couro entrava em contato com a sua pele. Pelo canto do olho, conseguia ver algumas gotas de sangue voando. Ainda assim, recusou-se a soltar sequer um gemido de dor, sabendo que aquilo só aumentaria a satisfação daqueles que tanto odiava. As lágrimas, no entanto, escapavam de seus olhos quase negros sem que pudesse evitar, uma mistura de mágoa, rancor e sofrimento.

— Você tem sorte que não cortei sua mão. — Chefe Chafyr declarou em completo desgosto.

Ele teria esse direito, é claro. Tinha as Mãos do Ladrão, que não era nada mais do que ambas mãos completamente tatuadas - cada um de seus dez dedos era marcado por dois símbolos curvilíneos e as costas de suas mãos carregavam dois “X” negros grossos. Aquele era um costume entre os licantropos para identificar ladrões e significava que qualquer um que o pegasse roubando tinha o direito de decepar uma de suas mãos sem ser punido por isso. A bem verdade, era uma surpresa que ainda tivesse suas duas mãos inteiras e com todos os dedos praticamente intactos.

— Eu deveria agradecer por sua misericórdia? — Merikh perguntou com a voz carregada de ironia, alto o suficiente para que alguns dos espectadores mais próximos arfassem em surpresa por sua ousadia.

— Tirem ele daqui. — Chefe Chafyr rosnou, sua mão apertando mais forte o chicote como se considerasse recomeçar a punição.

Não demorou nem dez segundos após a ordem de Chafyr para que Celtigar se aproximasse. Sem dizer uma palavra, ele tirou um pequeno punhal preso em seu cinto de couro e o usou para cortar a corda e libertar-lhe os pulsos, já em carne viva. Celtigar o agarrou firmemente pelo braço esquerdo, ajudando-o a se levantar com alguma dificuldade, apoiando seu corpo enquanto dava os primeiros passos doloridos. Merikh fez questão de manter a cabeça erguida, quase como se quisesse mostrar que a punição não lhe abalou.

Era desnecessário dizer que Merikh e Celtigar se destacavam em meio aos habitantes da Tribo de Nyhue, principalmente porque não era comum e nem bem aceito que feiticeiros vivessem em meio a licantropos. Em comparação aos demais, eram considerados pequenos para dois lobisomens nascidos na Era dos Deuses, embora um pouco mais altos que os filhotes nascidos na Era das Espécies.

Merikh tinha 110 Invernos e apesar de ser um homem de quase dois metros de altura, sua aparência havia puxado mais o lado bruxo de sua mãe do que o lado lobisomem de seu pai. Seu corpo era esguio, quase magro demais para sua herança licantropa, a pele pálida como a Lua e seus cabelos curtos lisos eram negros como a noite. Seu porte era quase elegante, mas isso era considerado uma fraqueza entre os seus.

Já Celtigar era um pouco mais velho, com seus 115 Outonos recém-completados e se parecia muito mais com o que se esperava de um lobisomem da Linhagem da Lua. Certamente alcançava os dois metros de altura e seu corpo era formado por músculos exagerados, cobertos por tatuagens que denunciavam sua vida fora-da-lei. Sua pele era doentiamente pálida e usava cabelos loiros amarelados relativamente longos, raspados do lado da cabeça a moda lobisomem, o que deixava visível seu único traço élfico: as orelhas levemente pontudas.

Seguiram em silêncio até a cabana de Ulke, o pai de Merikh, onde estavam ficando os últimos Sóis. O clima estava pesado demais para que emitissem uma única palavra e qualquer tipo de conversa era desnecessária - Celtigar certamente sabia melhor do que testar o humor de seu melhor amigo naquela situação. Como era de se esperar, Ulke não estava lá - provavelmente, havia se recolhido na mata para não precisar lidar com a vergonha de presenciar o filho sendo punido bem no centro da Tribo, a desonra visível para quem quisesse assistir. Mas é claro que Mavka estava lhe esperando, aflita.

Ela era a perfeita representação de uma mulher licantropa da Linhagem da Lua. Era uns dois palmos mais baixa do que Merikh, o que estava na média para as fêmeas lobisomens nascidas na Era dos Deuses, e sua pele branca como a neve contrastava com os longos cabelos ruivos como o fogo, presos em uma trança simples. Seu corpo tinha todas as curvas de uma boa parideira e o que mais orgulhava Merikh: seu ventre estava grande, completamente preenchido pela semente do feiticeiro.

— Por Shada, como ele está? — Mavka perguntou, imediatamente adiantando-se para auxiliar o loiro a levar Merikh até a esteira que dividiam.

— Péssimo, o que esperava? — Celtigar bufou, impaciente, ajudando o amigo a se deitar de bruços. — O seu pai não pegou nada leve.

Aquele era o ponto que Celtigar considerava mais complicado no casamento do melhor amigo. Enquanto Merikh era um fora-da-lei contumaz, infamemente conhecido por todos como “o Ladrão de Nyhue”, Mavka era uma das filhas mais novas de Chefe Chafyr, embora tecnicamente tivesse sido deserdada no momento em que se casou, desafiando os costumes e o próprio pai para viver aquele amor proibido e irracional.

— Eu não tenho pai. —  Mavka o cortou friamente, mergulhando um pano grosseiro de algodão em um balde de água gelada previamente preparado, torcendo-o.

— É, tanto faz. — Celtigar revirou os olhos, decidindo não discutir aquele assunto no momento. Não iria levar a nenhum lugar, de qualquer modo. — Vai precisar que eu segure ele?

Ele está consciente e perfeitamente capaz de decidir por si mesmo. — Merikh os interrompeu com irritação, finalmente se manifestando. — Não precisa me segurar, eu aguento.

O orgulho definitivamente era um dos principais defeitos do moreno, mas se arrependeu no momento em que sentiu o pano áspero entrando em contato com sua pele maltratada. Mavka esfregou com força, limpando o sangue que ainda escorria. Era quase como se a água gelada penetrasse suas feridas, fazendo com que ardessem ainda mais. Agora, em privado, permitiu que alguns gemidos de dor saíssem de seus lábios, um tanto envergonhado por sua esposa e seu melhor amigo estarem presenciando aquele momento de fraqueza.

— Que bom que está acordado para me ouvir te chamando de idiota. — Celtigar deu um sorriso fraco enquanto sentava-se ao seu lado, começando a macerar algumas ervas que a ruiva havia separado. — Não devia ter assumido a culpa por mim.

— Não ia deixá-los te pegar. — Merikh respondeu, parecendo ofendido com a possibilidade. — Era capaz do Chefe Chafyr arrancar sua cabeça, babaca.

Aquilo fez com que Celtigar se calasse, sem argumentos. Há três décadas, quando ainda eram filhotes, Merikh e Celtigar fizeram um roubo que deu muito errado. Lembrava-se como se fosse ontem, era para ter sido fácil, tinham planejado tudo. Era um Luar chuvoso e especialmente escuro e os dois haviam encurralado três elfos, comerciantes viajantes que deram o azar de atravessar o caminho de dois homens que se recusavam a trabalhar honestamente.

Estava tudo correndo perfeitamente bem, até que um dos elfos rendidos tentou reagir. Merikh não pensou, deixou seus instintos guiarem suas ações e seu treinamento entrou em ação antes que pudesse evitar. Quando deu por si, a lâmina de seu facão já havia atravessado a garganta do elfo, que caiu sem vida aos seus pés. Celtigar se viu obrigado a entrar em ação também e deu cabo dos outros dois, que começaram a esboçar uma reação ao ver o companheiro assassinado. A partir daquele momento, a amizade dos dois foi selada com sangue.

Celtigar assumiu a responsabilidade pelas três mortes sozinho. Na época, o pai dele, Dorfaren, ainda estava vivo e tinha certa influência no Conselho de Anciãos. Inventaram uma história de que Celtigar havia perdido o controle de sua transformação, algo perfeitamente plausível para um filhote, mas não conseguiram justificar o que estavam fazendo na floresta sozinhos, no caminho dos viajantes, algo proibido para lobisomens que não estavam em caravanas comerciais. Aquilo evitou uma pena de morte, mas não queria dizer que escapou impune. Teve sua testa marcada a ferro com a Marca do Assassino, o maior símbolo de desonra entre os licantropos.

Era o desenho de uma caveira oval cercada por vários punhais, agora enegrecida pelo tempo. Embora Celtigar o usasse com orgulho, ostentando-o quase como uma coroa, aquilo também significava que poderia ser condenado à morte por qualquer mínima infração. Aquela Marca mudou para sempre a dinâmica da relação entre ele e Merikh, com o moreno o protegendo sempre que conseguia, em um eterno ciclo de sacrifício.

— Você sabe que não precisa cuidar de mim pelo resto da vida, certo? — Celtigar o lembrou com um sorriso triste, colocando um pouco de água no pote de barro com ervas maceradas, misturando para começar a formar uma pasta. Como sempre, o loiro se sentia culpado pelas feridas que o amigo suportava em seu nome.

— Cale a boca. — Merikh bufou, como sempre ignorando os apelos do melhor amigo para que deixassem as coisas seguirem seu rumo natural.

— Vocês dois são idiotas. — Mavka revirou os olhos, terminando de limpar as costas de seu marido.

— Você já sabia qual era o nosso estilo de vida quando me conheceu. — Merikh a lembrou friamente.

Não deixava de ser verdade, não havia um único membro da Tribo que não conhecia “o Ladrão de Nyhue”, seja pelos seus feitos que corriam à boca pequena, seja pelas punições constantes. Os dois começaram a interagir justamente quando Merikh estava esperando para ser chicoteado depois de ser pego roubando em uma das cidades próximas e não demorou muito para que o romance proibido começasse a se desenrolar.

— O que não os torna menos idiotas. — Mavka contestou, começando a espalhar o unguento que Celtigar preparou pelas costas do marido sem a menor delicadeza. — Ulke estava furioso quando saiu daqui.

— E quando ele não está? — Merikh rosnou, frustrado, tentando esconder sua dor. Seu pai não escondia a decepção de ter criado um filho que ignorava completamente todos os conceitos de honra que permeavam a vida dos lobisomens.

— Vamos cobrir esses machucados e voltar à cabana da minha mãe. — Celtigar os interrompeu, tentando trazer alguma racionalidade à tona, cansado das brigas constantes entre os dois. — É melhor que Hessyah dê uma olhada nessas costas.

— Merikh acabou de ser açoitado e vocês já querem voltar ao O Elfo Fronteiriço? — Mavka não conseguiu conter sua irritação. Ela claramente sabia que uma vez que estivessem na cabana de Hessyah, era apenas uma questão de tempo até que eles se envolvessem novamente em outra atividade ilegal.

— Você pode ficar aqui com o meu pai, se preferir. — Merikh alfinetou, sentando para que Celtigar pudesse enrolar longas tiras de algodão em seu tronco. Ele obviamente ia seguir a sugestão do melhor amigo, como sempre.

— Você não vai me abandonar grávida de um filho seu. — Mavka resmungou, levantando-se.

Celtigar revirou os olhos, preferindo permanecer em silêncio. Por mais que aqueles dois brigassem a cada oportunidade que tinham, por mais que a ruiva reclamasse de cada passo que Merikh desse, os dois simplesmente não conseguiam se separar um do outro. Merikh definitivamente a amava, do modo mais doentio que podia.


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