Aquela foi uma manhã ensolarada. Arabescos nas paredes reluziam em dourado. Raios de luz atravessavam os vitrais do palácio, iluminavam os corredores com seus tapetes e quadros, davam vida a um castelo normalmente tão quieto.

Isso nunca tirou de vista as responsabilidades. Três reuniões marcadas para resolver problemas que nem mesmo o mais corajoso representante ousaria. Isso tem um nome - a senhora Burocracia.

Mas Blaze teve sua sorte em dia, graças à uma fiel amiga.

— Cream? Sabe que não precisa gastar seu tempo com isso. — disse ela, um pouco carregada de culpa ao ver a coelha polir sua tiara.

E polia com vontade, com o maior cuidado do mundo. Era uma réplica, porém não deixaria de ser polida até que brilhasse tanto quanto seus olhos.

— A senhorita... — Sentada no meio do quarto da princesa, Cream balançou a tiara e analisou — ... a senhorita precisa estar deslumbrante para impressionar aquelas pessoas sérias!

A gata esboçou um sorriso minúsculo, porém grato. Havia um tempo desde que se conheceram. Sua mãe comparecia ao castelo algumas vezes por semana e, é claro, tornou-se a oportunidade perfeita para Cream se aventurar pelas redondezas. Quando pôde, Blaze fez o papel de irmã mais velha - o que ela admitiu ser fácil. As duas passaram muito tempo juntas para perceber suas semelhanças, acostumando-se bem.

Sem dúvida, Cream era uma das únicas pessoas na qual ela se abria um pouco mais - apenas um pouco. Ela achou que era melhor assim; sem perder a postura de responsabilidade que a realeza lhe exigia. Felizmente Cream não sabia, mas altezas como ela não podiam ser nada além de "pessoas sérias", extremamente bem vestidas e cheias de cicatrizes de guerra.

Blaze realmente tinha um remorso em não ser a princesa que muitas crianças da idade dela imaginavam, mas Cream não parecia ligar.

— Finalmente terminei, está brilhando! A senhora poderia se abaixar? — comemorou em um pulo. Cream correu em direção da gata, fazendo um leve sinal.

— É claro. — disse ela.

Blaze se ajoelhou e assim que Cream ergueu o acessório diante de sua cabeça, foram surpreendidas por um estrondo inconfundível de vidro quebrando. O som estridente passou pelos ouvidos da coelha e o espanto a fez largar a tiara com um pequeno grito alarmado. Blaze pulou em sua frente e a abraçou, protegendo-a como um casulo enquanto mais sons de vidro estilhaçado se espalhavam pelo quarto, até pararem abruptamente.

Antes de espatifar na parede, ela viu voar por cima de suas cabeças uma garrafa - ou o que restara de uma. E antes de conferir um simples objeto, ela necessitava de verificar Cream da cabeça aos pés primeiro. A pobre garota estava encolhida, com as mãos tampando orelhas e rosto. Extremamente assustada, mas não machucada para seu alívio.

Bem de perto, colocou suas mãos nos ombros dela e chacoalhou de leve.

— Ei, Cream... pode abrir os olhos agora. — Blaze a acalmou em um tom suave, enquanto a via abrir um olho castanho de cada vez. Havia muita confusão naquele olhar.

— O-o que houve? — Ela balbuciou, insegura.

— Parece que jogaram algo pela janela...

— Aqui? Mas é muito alto! — a pequena exclamou, um pouco desconcertada.

A grande janela na qual sofreu o suposto ataque era muito fina - uma boa parte estava quebrada e rachada, além de vidro colorido em estilhaços nas partes mais remotas do quarto. Alguns pedaços caíram na roupa de Blaze, pequenos como flocos. O buraco feito no vidro foi atravessado por raios solares, definindo uma sombra perfeita no chão... se não fosse pelo susto, teriam achado belo.

Exatamente do outro extremo do quarto, Blaze teve um vislumbre no objeto causador do perigo, que quebrou-se ao meio com o impacto. Não havia nada de especial em uma garrafa de Rum; na verdade, a princesa se perguntava como uma coisa tão estúpida havia de parar lá em cima onde estavam.

Ao ver mais de perto, o olhar de Cream caiu sobre a tampa da garrafa. Algo estava amarrado nela.

— O que é aquilo ali? Parece um bilhete. — Cream chegou perto, curiosa. Pegou a garrafa, analisou, e quando teve absoluta certeza do que estava escrito, repetiu — "Ousarias tu quebrar a aliança?"

E repetiu novamente.

— "Ousarias tu quebrar a aliança?" — Sua voz ecoou pelas paredes charmosas do quarto, em um tom quase mórbido.

Logo ela se virou para encontrar Blaze em sua vista. Ela notou uma mudança muito repentina na sua expressão. Seus olhos dourados, normalmente elegantes e focados, demonstravam incerteza com uma pitada de preocupação. A gata fora influenciada pelas palavras assim como um guerreiro despercebido é acertado por uma flecha. Cream nunca tinha visto isso antes - pelo menos, não com Blaze.

— ... Você já ouviu falar de piratas? — Blaze quebrou o silêncio, um pouco impaciente. Seu temperamento estava começando a transparecer.

— Sim, senhora... mas por quê?

— Uma vez, um deles me ajudou. Tive que dar minha garantia de que não confrontaria sua tripulação de novo. Caso contrário... — Blaze cerrou seu punho, se esforçando em não perder sua elegância.

Cream tentava, porém não compreendia.

— Tenho certeza de que isso não é problema... a senhorita é muito boa com promessas! — A energia e inocência de Cream brilhavam de contagiantes. Ela tinha certeza.

Blaze se sentia angustiada em ter que envolvê-la, ou ao certo deixá-la saber de seus problemas de honra.

— Eu teria de convencer aquele conselho sobre isso para me pouparem... não. Definitivamente não. — A gata assentou-se na cama por um minuto, cruzou os braços. Suspirou em uma tentativa de não perder a cabeça. — ... Não vai acontecer.

— Esse conselho quer alguma coisa? — Um pouco incerta, a pequena questionou e enviou o olhar para o chão.

— Veja bem, Cream... O conselho são as mentes que pensam por trás de mim. Não posso tomar muitas decisões para meu reinado; não antes de concordarem primeiro. — Explicou ela — Eles são a voz do meu povo. E meu povo não gosta de piratas.

Blaze não garantia que sua explicação fosse entendível, mas Cream estava levemente boquiaberta com a realização. Oh céus. As coisas começaram a se encaixar!

— Sei que é um aviso de piratas, graças à garrafa de Rum. Eles tem essa como a bebida preferida. — Blaze continuou. — Eu não seria tola ao ponto de deixar quebrar a promessa... porém o conselho tem pessoas mais velhas e sábias. Com eles, simplesmente não possuo muita voz. Sou jovem demais.

— Esses piratas... — perguntou a coelha, muito temerosa — ... Eles são perigosos demais, não são?

A princesa pareceu hesitar.

Não havia muito mais oque esconder da garotinha.

Ela já estava envolvida com seus problemas desde o começo,

Mesmo que isso envolvesse polir uma simples tiara.

— Cream, — Blaze encontrou seus preocupados olhos com os dela. — você não faz ideia...