EU TE VEJO - Um romance com o Coringa. escrita por Eurus


Capítulo 7
Lena Miller.


Notas iniciais do capítulo

O capítulo conta com uma cena que trata de assuntos que podem ser ''gatilho'' para alguns leitores, por isso, haverá um ALERTA GATILHO antes de iniciar cenas delicadas e também uma marcação indicando o FIM das cenas com esse conteúdo, para aqueles que decidirem pular os parágrafos.

Aquilo que não é pesado para um pode ser para outro, então recomendo não ultrapassar seus limites. Se desejar, após o final pode comentar caso sinta que deixou algo passar e eu responderei explicando o que aconteceu sem incluir informações que possam ser gatilho.

Boa leitura pra vocês e façam terapia galeris ♥



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/812188/chapter/7

...Os buracos na sua vida são permanentes. É preciso crescer ao redor deles, como raízes de árvore ao redor do concreto; você se molda a partir das lacunas.

Paula Hawkins 

A Garota no Trem

 

Depois da tal visita, Britta buscou distrair a mente e por isso fez uma faxina minuciosa no apartamento. Mas naquela manhã acordou exausta física e mentalmente. Ainda na cama, repassou tudo o que aconteceu na noite anterior e se deu conta que ter uma viatura por perto não impediria o Coringa de fazer o que quisesse. 

Sua ansiedade, porém, não tinha a ver com medo. Precisava entender seus sentimentos e se pôs a pensar.  Ver o excêntrico e perigoso criminoso saindo pela porta do seu apartamento tão casualmente foi no mínimo esquisito. Sem contar os pensamentos intrusivos que continuava tendo, encenações na sua mente sobre o que poderia ter acontecido naquele sofá. Ele estava tão perto e mesmo assim não era medo que Britta sentia, mas uma certa curiosidade. Se sentia envergonhada pelos frutos da sua imaginação fértil.

Eu tô muito carente, não é possível… 

Ainda deitada, balançou a cabeça freneticamente e se cobriu inteiramente debaixo do lençol tentando afastar o que quer que sua mente estivesse insinuando. Estava em conflito consigo mesma sobre como aquele homem a fazia se sentir. 

Então admite que o vê como um homem?

— Que chatice! — reclamou se levantando da cama como se pudesse fugir de uma parte de si. 

Decidida a tomar um banho, ao entrar no banheiro do quarto se deparou com o próprio reflexo no espelho acima da pia. Estava um caco, principalmente porque demorou a pegar no sono, apesar do cansaço. Teve flashes daquela voz, o ritmo pesado mas meio largado no andar. Ele estava dominando a sua mente completamente.

— Mas é normal, certo? — murmurou pra si mesma se sentando no vaso sanitário — Qualquer pessoa que sobrevive a um encontro com alguém assim vai pensar muito no assunto! — tentava se convencer enquanto fazia xixi.

E riu. Riu de si. Colocou a mão sobre a boca contendo o sorriso como se escondesse um crime. No boxe, enquanto a água caía em seu corpo, Britta se sentiu diferente, se sentia viva, ansiosa de um jeito bom, ela estava gostando da sensação, seu corpo estava gostando da sensação. 

Então, como um ladrão esgueirando-se na esquina, sua memória lhe confrontou com a notícia sobre Kirah Machin. No fundo Britta desejou que ele não estivesse por trás do assassinato da ativista e esse pensamento pesou sua consciencia.

— Hm… — gemeu aflita fechando os olhos e permitindo a água quente molhar sua cabeça.

E ainda tem esse maldito pendrive…

>

Chelsea era um lugar especial para Britta, charmoso e boêmio, o distrito fazia qualquer um se sentir fora da fria Gotham. Chelsea abriga a Universidade de Gotham, onde a moça estudou, tem uma energia agradável e jovial, sobretudo por conta dos universitários e comunidade artística, além do baixo índice de criminalidade.

Saiu do carro de aplicativo alguns blocos antes de seu destino para andar um pouco pelas ruas onde viveu bons momentos. Por ser um domingo, as ruas estavam vazias, os prédios residenciais e comerciais tinham uma arquitetura diversificada e colorida, o suficiente para dar vida ao lugar. 

— Britta! — uma voz aguda e familiar. 

— Oi — não conteve o sorriso ao ver Jocelyn correr em sua direção de braços abertos. 

A sorridente ruiva de grandes olhos azuis a encheu de elogios reclamando de como a foto profissional no messenger não lhe fazia justiça. Enquanto entravam no restaurante japonês a moça explicou energicamente que ali tinha sido uma galeria de arte onde uma vez um dos seus colegas de classe havia feito uma exposição de tirar o fôlego e seguiu falando sem parar sobre pessoas das quais Britta pouco lembrava e momentos dos quais provavelmente não participou. 

Em toda sua vida, a morena evitou criar laços com as pessoas, ser sozinha e distante tornou-se um hábito. Mas lá estava ela, em Chelsea com Jocelyn falando pelos cotovelos e por algum motivo a tagarelice de Jocelyn não a incomodou. Estava aproveitando o doce sabor da nostalgia.

— Wow! Você está linda! — a outra elogiou de novo — Amei esse corte em você, super elegante, bem coisa de advogada mesmo!

— Obrigada. O tempo também não passou pra você — de fato, Jocelyn continuava a mesma em todos os aspectos.

— Mas eu to impressionada, você tá radiante! Conta pra mim… — seu olhar malicioso antecipava o que Britta queria evitar — ...Como é dormir com o chefe? 

— Te asseguro que não transei com ninguém…

— Ai Britta…Não sei se isso só me deprime ou me revolta! — o olhar da ruiva era de pena — Você tá precisando de um chá mana… 

— Chá?

— De pau! — sussurrou. — E não é de canela! — e desatou a gargalhar

— Misericórdia…

— Okay, mas eu podia jurar que algum macho te pegou de jeito!

A morena negou com a cabeça mordendo o lábio inferior na tentativa de suprimir o riso. Sua mente lhe trouxe memórias distintas, os lábios pintados de vermelho, o aroma de Ethan, o pescoço livre de tinta branca, o olhar intenso do barbudo grisalho.

— E quais são as novas? — mudou de assunto. 

— Então, eu quis te encontrar porque eu também recebi uma proposta profissional irrecusável! 

— Obrigada… — agradeceram quando os pratos de sushi, sashimi e sunomono foram dispostos à mesa. 

— É uma oportunidade incrível, vou juntar tudo o que mais amo: advocacia e glamour! — Bateu palminhas, seu rosto irradiava felicidade.

— Você não vai virar advogada de atriz não né?

— Quase isso! Eu fui convidada para participar da equipe de advogados das Kardashians!!

— Oh Jocelyn… — lamentou enquanto a ruiva riu divertida. 

O almoço foi delicioso e muito divertido. Britta estava feliz que Jocelyn sairia de Gotham logo em breve, principalmente pelo risco que ela corria por ser a única pessoa próxima a si. Sentiu um certo alivio por Jocelyn não mencionar o assassinato de Kirah Machin ou o seu sequestro. Lembrou da ameaça.

‘’Faça tudo certo e ninguém que estiver ao seu redor sofrerá as consequências.’’

>>

Dirigir o Batmóvel pelas ruas desertas de Gotham na madrugada trazia a Bruce uma sensação de controle, pertencimento e poder. Lembrou do sorriso e olhar instigante de Britta no jantar. O que Lena Miller, Jenkins e Kirah Machin tinham em comum? Bruce não queria descobrir que Gordon tinha razão.

Analisando as novas informações, Bruce ainda acreditava que Lena Miller ter assumido a identidade de Britta Ledger estava longe de torná-la uma criminosa com algum tipo de aliança ao Coringa, mas, não negava que toda sua existência se tornou suspeita, sobretudo por conta da tragédia envolvendo Kevin Miller. Precisava tirar dela a completa verdade e ele não teria tempo para fazer isso como Ethan O’Dwyer. 

Destrancou a porta do apartamento 1503 e logo a tecnologia conectada à máscara detectou várias câmeras microfonadas distribuídas pelo ambiente. Depois que fechou a porta atrás de si, não deu um passo, apenas se certificou dos seus arredores. À direita era possível ver toda a cozinha americana, onde também tinha uma câmera microfonada. 

Depois de checar todos os cômodos, se direcionou ao único quarto. A porta já estava aberta e assim como todo o apartamento, o ambiente estava completamente escuro com a diferença de que o cômodo estava mais aquecido. Detectou mais câmeras e julgou se tratar de uma medida de segurança justificável após o sequestro que a moça sofreu. Logo levou seus olhos para a cama onde a morena dormia. 

Britta dormia confortavelmente bem no centro da cama. Mais difícil foi ignorar as curvas de seu belo corpo sob o vestido curto de tecido leve. Ele subiu o olhar para o rosto sereno de Britta decidindo como a acordaria sem lhe dar um grande susto. Acender as luzes não fez diferença alguma, Bruce se posicionou mais de perto.

— Acorde — a voz grave chamou mas nada aconteceu. — Britta, acorde — mais alto.

Britta, que havia finalmente conseguido descansar e dormir pesadamente, abriu os olhos debilmente, torcendo a cara em uma careta, tamanha sua confusão ao perceber a claridade do seu quarto. Coçando os olhos em direção ao chão cambaleou se pondo de pé para apagar a luz, que ela estava certa de que havia desligado antes de dormir. Extremamente sonolenta e de olhos quase fechados não conseguiu chegar no interruptor, seu corpo bateu no que pareceu uma parede no meio do caminho, levantou o olhar e gritou cambaleando para trás.

No milissegundo em que Britta assimilou a figura sombria no meio do quarto, ela correu de ré no ato desesperado de se afastar do que quer que fosse aquilo e acabou caindo de mal jeito na cama completamente assustada. Um choque em sua coluna fez outro grito escapar de sua boca já aberta. 

Bruce por outro lado permaneceu no mesmo lugar, estático, se certificando de manter o olhar longe das pernas completamente expostas tamanha agitação da moça. Ele estava ciente de que levaria algum instante até Britta se acostumar com sua presença. 

— O q...Batman? — sua voz falhou, a máscara completamente fechada dava uma aparência muito mais assustadora a  enigmática figura do Vigilante. — O que você está fazendo aqui? — Britta tentava se ajeitar na cama sentindo o coração palpitar. 

— Não vou demorar — a voz grave e metalizada dele a fez cair em si de que aquilo realmente estava acontecendo. — Conto com sua colaboração.

Ela não conseguiu responder engolindo em seco enquanto se levantava, para se escorar na parede, o lado mais distante dele. Teria ele descoberto que ela estava sendo usada pelo Coringa? Será que ele entendia que ela era inocente? Olhou ao redor, ciente de que haviam câmeras e não poderia contar tudo o que queria. Uma pena, Britta entendia que Batman era a melhor pessoa para ajudá-la naquela situação.

— Vou perguntar apenas uma vez... — a pausa e cautela ao falar, a fez ter certeza de que o assunto era bem sério e urgente. O tom lhe soou ameaçador e ela teve medo — ...o seu verdadeiro nome é Lena Miller?

Ao ouvir o nome, foi como se um vácuo a tivesse sugado pelo chão direto pro abismo. Em choque, seu coração batia mais forte no peito, ela parou de respirar e nada se passou em sua mente. Nenhum pensamento, além da sensação de ter sido pega no flagra de um crime cruel. Toda discrição, que levou anos para construir,  desabando de uma só vez naquele exato momento. 

Com os olhos fixos no herói, Britta se deu conta que era óbvio que uma pessoa como o Batman descobriria aquilo. Como muitos cidadãos de Gotham, ela sabia que o homem debaixo daquele traje tinha meios e recursos muito mais avançados que a própria polícia. Lembrou do Comissário, no entanto não pretendia jogar nenhum joguinho com o Batman. 

Engoliu em seco e olhando pro chão e respirou fundo organizando as ideias em sua mente. Os pensamentos corriam como feixes de luz em sua mente. Contar toda a verdade? Até que ponto ele sabia sobre si? Se estava ali era porque não sabia tudo, certo? Como contar a infame "missão" dada pelo Palhaço? Que garantia ela teria de que Batman lhe protegeria? E o que dizer de Jocelyn que ainda estava na cidade? Lembrou-se do fim de Kirah Machin, não queria seu nome ou o de Jocelyn nas manchetes como as próximas vítimas.

Levantou seu olhar para ele, a máscara completamente fechada lhe impedindo de discernir qualquer micro expressão do homem. Era uma estátua, uma escultura de pedra ônix no meio do quarto. Era difícil acreditar que aquela figura lhe compreenderia, mas que saída tinha? Sua melhor defesa viria de si mesma, então falou.  

— Sim — suspirou vencida. — Eu sou Lena Miller — sentiu um leve alívio e o pesar que seu passado lhe trazia.

— Qual seu envolvimento com o massacre da escola e a morte de Tom Miller no Narrows em 97? — a pergunta a pegou de surpresa. 

— Nenhum! — respondeu indignada — Espere aí...não me diga que o Comissário está tentando me...

— Como deve imaginar, está sendo investigada — a voz robusta a cortou lhe fazendo engolir em seco —, sair ilesa de um sequestro do Coringa é no mínimo suspeito.

— E eu concordo… —  arriscou cuidadosa — Mas isso não faz de mim cúmplice dos crimes que meu irmão cometeu — ao mencionar a palavra "irmão" a mulher foi dominada por um mix de emoções fortes que a anos vinha ignorando.

Memórias do seu passado no Narrows, sobretudo os momentos que passou com Kevin na humilde casinha de 5m² com três andares. Um sorriso triste surgiu em seu rosto junto aos olhos marejados. Seu olhar longe desfocado a fez mergulhar em um mar de lembranças que anos atrás havia conseguido ignorar. Bruce analisou sua feição cuidadosamente. 

— Por que você está aqui? — fungou secando os olhos cessando o que seria o início de um choro — Pra me levar pra prisão...? — riu curto sarcasticamente, uma lágrima escapando.

— Eu faço as perguntas. — Se moveu lentamente agora mais perto da cama.

Britta o olhou, atenta ao comportamento do homem. Pra começar, ter Batman em sua presença já era impactante o suficiente além do mais, já havia ouvido falar como ele era impiedoso, direto e eficiente em suas abordagens. 

— O tempo que eu ficar vai depender da sua colaboração — ele afirmou, ao perceber o incômodo da moça. — Quem são seus pais biológicos?

— Eu não sei — Bruce notou que não houve emoção em seu olhar. — Minhas primeiras memórias...— Desceu o olhar para o chão tentando lembrar momentos que a muito tempo tinha decidido esquecer. — Sempre foram com Vera. Vera Miller. 

Lembrou–se da moça de meia idade, a pele do rosto branca com leves manchas de melasma. Uma expressão sempre neutra. Vera Miller foi a mulher mais sem personalidade que Britta conheceu em toda sua vida, mas era ela quem sempre segurava a sua mão. A mulher não a soltava por nada quando estavam na rua, de uma forma protetora que só uma mãe conseguia ter. Não era doce, carinhosa, mas não era dura ou cruel. Lembrou de sua voz lhe chamando pela casa.

‘’Lena?’’, ela nunca a chamou de filha e ela não a chamava de mãe. Vera era simplesmente Vera.

— Ela te falou sobre seus pais biológicos? — a voz a tirou de seus pensamentos.

— Vera não falava. — Fungou secando o nariz. — Ela cuidava de mim, se certificando de que eu comesse, dormisse, tomasse banho e etc.

— Nunca questionou isso?

— E não fazia perguntas. Éramos parecidas nisso — Se ajeitou trazendo os lençóis para suas pernas. — Pensando bem…No dia que eu entendi que eu realmente não era daquela família, passei a ter muitos questionamentos. 

‘’Você sabe que é adotada, não sabe?’’

Um ano mais velho, aos 8 anos, Kevin falava como um adulto. O que não a incomodava, mesmo porque o franzino menino de cabelos pretos falava pouco, então qualquer interação era bem vinda pela menina. Passavam grande parte do dia sozinhos, os Millers trabalhavam. Adotada. 

‘’Você não é minha irmã de sangue’’, ele insistiu sabendo que não se fez entender antes. 

— Meus olhos se abriram pro mundo tal qual um recém nascido. Me tornei autoconsciente, percebi as diferenças entre minha pele e a pele dos Millers, nossos cabelos. Passei o dia buscando cada uma das outras pequenas diferenças entre eu e Kevin — sentiu o olho embaçar diante a lágrima ameaçadora. 

Não se importava que Vera não era sua mãe, muito menos que Tom não era seu pai, mas perceber que Kevin não era realmente seu irmão, foi algo que apertou o pequeno coração da menina. A pequena Lena abriu os olhos para cada interação indiferente ou fria que Tom ou as pessoas da vizinhança tinham consigo, mas sua cabecinha não soube processar muito bem a real gravidade de tudo.

Ao longo dos anos entendeu que o tratamento diferente e muitas vezes negativo vindo das pessoas ao redor e a sensação que tinha de ser uma peça perdida no quebra cabeça era por conta da cor mais escura da sua pele e a textura de seu cabelo. 

No entanto, aquele era seu lar, ela não conhecia outra coisa. Ter o que comer, uma cama pra dormir e alguém pra assistir desenhos e filmes já era o suficiente, mesmo que Kevin ficasse em um canto e ela em outro. Mesmo que não houvesse afeto, carinho e conversas significativas. O mundo era assustador lá fora e sua casinha minúscula, às vezes úmida, ainda era melhor que o desconhecido. 

— Como era sua relação com Kevin? — a voz metalizada a fez retornar a realidade. 

Britta levantou o olhar para Batman, tentando entender a intenção de sua pergunta. Ainda que mergulhada em nostalgia e sentimentos, a morena sabia que aquele tipo de pergunta poderia te colocar em uma situação delicada. Ela lembrava muito bem o que Kevin havia feito. 

— Bem, eu entendia o Kevin…Não necessariamente entender… — buscou melhores palavras. — Mas eu compreendia um pouco do porquê de seu comportamento. Bem…pelo menos até certo ponto era de se compreender — deu de ombros. 

Ela também viu Kevin ser vítima da negligência, indiferença e às vezes violência de Tom. Em muitas coisas eles eram parecidos. É claro que quando mais velha, entendeu que desde criança Kevin já apresentava tendências sociopatas. 

— Tom estava sempre ausente, ele trabalhava o dia inteiro em uma fábrica de sapatos e torrava grande parte do dinheiro em bebidas e jogos — se viu falando. — Ele malmente olhava pro próprio filho. Vera trabalhava o dobro como empregada em casa de família e faxineira em um restaurante. Se nós tínhamos comida na barriga era porque Vera dava o sangue pra isso. 

— Kevin não era maldoso comigo. Distante, sim, mas às vezes ele era até gentil. Me dava dois biscoitos a mais na hora do lanche ou dormia sem meias pra que eu pudesse aquecer melhor os meus pés nas noites mais frias — para Britta todas aquelas lembranças tinham um gosto amargo de muita pobreza, frio e solidão que correram em direção a retumbante tragédia. — À medida que foi crescendo, Kevin passou mais tempo na rua, aparentemente sem trabalho, mas em andanças lucrativas. Naquela época, Vera encontrava dinheiro extra na carteira e eu ganhava roupas, livros e até um par de sapatos novos.

Manteve para si seus maiores atos de amor que eram quando Tom chegava tarde em casa. Eram momentos de ansiedade para todos em casa. Bêbado e exageradamente implicante, nunca se sabia quem seria vítima de seus gritos e mãos pesadas. Não segurou as lágrimas quando lembrou como Kevin juntava suas camas no quartinho do último andar, para que ela não se sentisse sozinha nesses momentos de tensão. 

— Por que Vera fugiu com você? 

— Eu não sei — se sentiu confusa com a pergunta repentina.

— A verdade veio à tona, não tem porque esconder. 

— Eu não sei — enfatizou o olhando sério. — Aquele dia…foi horrível.

— O que aconteceu? 

— Acho que tudo começou quando eu fiz 16 anos. Muita coisa mudou. Tom ficava mais em casa, já que foi demitido. Quando eu não estava trabalhando com Vera em algumas casas, como babá ou coisa do tipo, eu estava em casa…éramos eu e Tom. Na maioria das vezes ele estava dormindo.  

‘’Kevin nunca estava em casa. Às vezes eu nem o via na escola. Pra minha surpresa, Tom passou a falar comigo, coisas como ‘quanto tá o placar do jogo?’ e etc. Tom estava se aproximando de uma forma tão casual e não violenta que eu estava gostando. Pela primeira vez em anos não me sentia tão invisível aos seus olhos. 

‘’Uma manhã, eu estava na cozinha e ele na sala, provavelmente em sua décima lata de cerveja, assistindo um jogo. Os dois cômodos ficavam no térreo, e era necessário apenas olhar pro lado para vê-lo largado no sofá. A pele branca e oleosa, a roupa manchada de bebida e a barriga enorme. Um quadro do que eu não queria para o meu futuro. Deixei a água pro macarrão fervendo na panela. Me sentei do outro lado do sofá olhando a partida de futebol que ele assistia torcendo internamente pra que o time dele ganhasse. Era disso que dependia o humor dele.

ALERTA GATILHO - os próximos parágrafos abordam importunação/abuso sexual.

‘’Em algum momento ele levantou e quando voltou se sentou muito perto de mim. Quando o olhei ele já me olhava. O olhar mais repugnante que vi na minha vida. Eu desviei o olhar mas não fiz nada. Não consegui me mover. Fiquei ali, pensando no pior mas implorando aos céus que fosse coisa da minha cabeça. Nem a narração entusiasmada do primeiro gol fez Tom se afastar ou se distrair. Eu estava presa entre o braço do sofá e o corpo pesado dele. Me sentia em perigo, encurralada e nervosa, sem saber o que fazer.’’

— Ele te tocou — a voz grave a cortou e ela assentiu positivo com uma lágrima caindo.

— Eu me encolhi e me contorci completamente na tentativa de me proteger da sua mão entre minhas pernas mas ele não parou e embora eu estivesse com uma calça eu me senti…nua. Então eu me levantei, ele me puxou pelo quadril mas eu consegui escapar e ele levantou também. 

FIM DO ALERTA GATILHO

"Não havia pra onde ir. Eram literalmente 5m² pra uma sala e uma cozinha minúscula. Me vi correndo pra cozinha na tentativa de me afastar e ele ficou na minha frente feito um urso. Ele parecia tão maior…Eu estava em pânico, certa de que ele me alcançaria e o que eu poderia fazer? 

‘’Pensei em Kevin, desejei que ele chegasse em casa e me livrasse daquele pesadelo. Eu sei que ele poderia me salvar daquilo. Quando vi o Tom andando em minha direção, tão decidido, tão certo do que queria, o meu senso de sobrevivência foi mais rápido. Eu agarrei a panela quente no fogão ao meu lado e joguei a água e a panela com tudo no peito dele. 

‘’Minhas mãos queimaram. Nossos gritos de dor se mesclaram, mas enquanto ele agonizava no chão eu corri pra porta e continuei correndo rua a fora. Eu corri e corri, corri tanto que quando meus pulmões arderam e eu parei de correr, não reconheci onde eu estava. Eu achei uma lojinha, um mercadinho de esquina, algo assim e lembro de me sentar na entrada.’’

— Lembra que horas eram? — ela o olhou e negou com a cabeça antes de responder.

— Ainda era dia, talvez já fosse de tarde. Era um domingo. As vezes Vera fazia extra e Kevin não aparecia. Eu não podia voltar para casa. Também não podia ir pro trabalho de Vera, o que eu te diria? Inocentemente eu estava mais preocupada em como explicaria o porque que joguei a água quente nele. 

‘’Então fiquei andando pela rua indo de um lugar pro outro fingindo ser mais uma das pessoas na rua, minhas mãos doíam muito, já começaram a encher de bolhas. Já estava chegando a noite e eu não estava agasalhada o suficiente. Eu estava apenas com a roupa do corpo e um mix de alívio e agonia de não saber o que fazer, não saber para onde ir. 

‘’Eu queria sair do Narrows, mesmo não conhecendo muito bem o resto da cidade, mas atravessar uma das pontes à noite parecia muito pior. Então eu fui pra uma praça e fiquei sentada esperando o tempo passar. Até que depois de muito chorar me dei conta que havia um lugar para onde eu poderia ir.

‘’O colégio que eu estudava havia sido uma espécie de instituição de saúde de atendimento gratuito para comunidade do Narrows. Alguma coisa a ver com algum projeto da Fundação Wayne descontinuado depois da morte dos Wayne. Então haviam muitas alas interditadas e fechadas. Como alguns alunos, eu sabia de uma das entradas secretas que dava direto pra uma dessas alas pro fundo do prédio. 

‘’Eu já conhecia aquela sala, era cheia de mesas e cadeiras com defeito. Estava extremamente silencioso e escuro com alguns feixes de luz dos postes da rua lá fora. Me joguei em cima de uma das mesas empoeiradas e fechei os olhos aliviada. Estava cansada de tanto que andei naquele dia. Eu ia pra lá quando não aguentava mais a pressão do bullying que eu sofria naquela escola, até porque eu não tinha em quem me apoiar. Kevin vivia distante. Parecia que não queria que soubessem que eu era a irmã preta adotada.’’

— Essa sala era próxima a sala em que Kevin matou os 8 alunos? — Britta já havia se acostumado com a voz e a presença de Batman que se mantinha disciplinadamente imóvel feito pedra no mesmo lugar.

— Eu não sei…

— Não estava lá quando aconteceu? 

— Não. Eu não tive nada a ver com aquilo! — fez questão de esclarecer, apesar de uma voz no fundo do seu coração dizer o contrário — Eu nem soube o que tinha acontecido, só… — se interrompeu baixando o olhar — ...Só depois na televisão…

— Está dizendo que estava no colégio mas não encontrou Kevin?

— Eu não fui pra aula na manhã seguinte. — Revirou os olhos. — Eu só tinha 16 anos, meu padrasto havia tentado me abusar e tive que fugir pelas ruas! — estressada, tentou se acalmar. — Eu encontrei sim o Kevin mas eu não tenho nada a ver com o que aconteceu!

— Quando e onde você o encontrou? 

Até então, Bruce não desacreditava do que ouvia, mas sabia que faltavam informações que uma mulher que trocou sua identidade por anos não entregaria de bandeja para ele. Ele precisaria fazer as perguntas certas e esperava não precisar pressioná-la demais.

Enquanto Gordon achava perfeito a incriminação de Britta/Lena Miller como parte de um crime antigo, uma fugitiva da lei e portanto aliada do Coringa, para Bruce, Kevin Miller, assassino e prisioneiro do Asilo Arkham, era uma linha de investigação muito mais pertinente a se seguir. Provavelmente ele e Coringa se conheceram no Asilo. 

O sequestro de Britta, o nome ‘’Jenkins’’ e o assassinato de Kirah Machin eram peças soltas e desconexas de uma espécie de mosaico. Um joguinho de encaixe preparado pela mente distorcida e ansiosa de um Palhaço carente de atenção. Ele sabia. Teria que confrontar o tal Kevin, no entanto, ele precisava de uma base de informações que só Lena Miller, a Britta, poderia lhe dar. 

— A noite, não sei exatamente as horas, Kevin apareceu na sala. Mas ele não estava nada feliz de me ver. Disse que Vera estava louca de preocupação comigo, mas ele estava mais interessado em saber porque eu fiz o que fiz, já que Tom descontou toda raiva dele em Vera. Ele me botou contra a parede e eu estava tão cansada, com frio, fome e o jeito que ele falou comigo…eu acabei chorando horrores e não conseguia explicar.

‘’Ele insistiu que eu explicasse o porque de eu estar chorando, mas eu não conseguia parar de chorar. Eu só tinha 16 anos e ver Kevin chateado comigo daquele jeito, foi como se o mundo todo estivesse contra mim. Nunca me senti tão sozinha em toda minha vida. Ele ficou lá me olhando até que voltou a insistir que eu falasse, dessa vez mais calmo. Mas eu estava longe de estar calma. 

‘’Estava furiosa. Meu ódio não era só pelo assédio que sofri do Tom mas todos os anos solitários e cruéis que vivi naquela escola maldita. Eu era o saco de pancadas perfeito: preta, extremamente pobre, adotada e sem amigos. Eu descarreguei. Lembro de quase machucar as mãos quando tentei bater nele tamanha minha raiva pela maneira que me sentia abandonada por ele. Foi quando ele me imobilizou na parede e exigiu o nome de cada um. Cada um que me feriu.’’

— E então você falou. 

— Eu…—  surpreendendo a si mesma, Britta sentiu a voz falhar e os olhos encherem de lágrimas novamente. — Eu jamais…— tentou conter o choro mas não conseguiu. — Eu jamais quis que nenhum deles…Eu não sabia que ele faria aquilo! — o desespero a fez gritar as palavras — Ele não me contou, eu sequer imaginava que ele era capaz de fazer algo assim! — Se levantou e andou em direção a figura imponente. — Precisa entender que eu não sabia dos planos dele!

— O que aconteceu depois? — impassível, Batman não transparecia a pena que atingiu seu coração. 

Perante a frieza da pergunta, os ombros da moça caíram de desânimo e um torpor dominou seu corpo. Se Batman não acreditasse em nada do que estava contando, o que seria dela? 

— Depois que citei cada um dos nomes dos bullies… — com o olhar perdido, Britta sentou pesadamente na ponta da cama. — …Kevin me arrastou pra fora da escola sem dizer uma palavra. Até que implorei que ele não me levasse de volta pra casa e paramos no meio da rua escura. Ele segurou meus ombros e me olhou com o olhar mais vazio que vi em seu olhar — enquanto falava sua voz voltou a falhar. — Ele me disse que eu não tivesse medo… que ele não deixaria nada acontecer comigo outra vez.

— Pra onde foram?

— Tinha esse cinema abandonado e lá no subsolo tinha várias pessoas. Na grande maioria adolescentes como a gente. Você sabe, se drogando, se pegando, bebendo, dormindo…enfim, era uma espécie de clube secreto e pelo que percebi Kevin era muito respeitado ali. Provavelmente era onde ele ficava quando sumia, não sei…

‘’Ele me colocou em uma das salinhas que tinha, um pouco maior que um depósito de zelador. Era um quartinho improvisado. A esquerda tinha uma prateleira feita de mesa com um computador de peças diferentes uma das outras, muitos livros e caixas no chão. Ele me deu uma chave, uma muda de roupas, me sentou na cama improvisada do lado direito e enquanto passava uma pomada nas bolhas doloridas das minhas mãos ele falou pela última vez comigo.

‘’Não mexa em nada e não fale com ninguém. Eu volto antes das seis da noite, mantenha a porta trancada.’’

‘’Ele me deu uma caixa de pizza tamanho família e foi embora. Eu não perguntei nada. Nem mesmo pedi que voltasse mais cedo. Eu só aceitei. Depois de perambular pelas ruas, passar frio, dor, fome e principalmente depois do que ele me disse, na minha cabeça eu estava bem, segura e trancando aquela porta, nada nem ninguém podia me ferir. Então eu fiquei, comi, me deitei na cama e dormi. Quando acordei descobri um relógio ao lado dos cadernos e do computador. 

‘’Quem me dera eu não tivesse descoberto aquele relógio, já era de tarde mas as horas pareceram se arrastar. Já eram sete da noite e Kevin não deu notícias. Então eu tomei coragem, saí e tranquei a porta levando apenas a chave comigo. 

‘’Foi quando eu saí do cinema que me dei conta que poderia ter acontecido algo sério com Kevin. Ele era um garoto de palavra e se não voltou era porque algo aconteceu. Eu não tinha certeza da natureza do que Kevin faria e sinceramente, naquele momento eu estava feliz de saber que tinha seu apoio, mas eu sentia que algo não estava certo e isso se confirmou quando comecei a me aproximar da rua em que morávamos. 

‘’Lembro das luzes vermelhas e azuis refletindo nas casas. Quando virei a esquina e vi a cena, só pude pensar em Kevin. Haviam três viaturas e uma ambulância. Muitos vizinhos estavam nas janelas de suas casas com os olhos tão fixos na cena que acredito que ninguém me viu. Assim que vi Vera, ela sinalizou discretamente que eu voltasse por onde vim. Foi o que fiz.’’

— Pra onde vocês foram? 

— Nós andamos muito — a voz de Britta já era muito mais desanimada, tamanho o desgaste do choro e também pela triste memória que vivenciava novamente. — Pegamos um ônibus. Ela apenas chorava calada. Eu perguntava o que aconteceu e ela não dizia nada. Em algum momento eu desisti de perguntar mas eu não conseguia deixar de pensar em Kevin. Na minha cabeça, Tom fez algo com Kevin e por isso aquela ambulância.

‘’Percebi que estávamos indo para longe quando o ônibus passou por uma das três pontes que liga o Narrows ao resto de Gotham. A gente desceu em uma vizinhança diferente. Ainda não era tão tarde a noite mas a rua estava quase vazia. Quando paramos e vi onde estávamos, eu esqueci do Kevin, do Tom, da nossa rua cheia de policiais, daquela escola, me esqueci de tudo. A visão da placa escrito ‘’Orfanato’’ foi uma das piores sensações que tive em toda minha vida.

‘’Me lembro de tentar entender mas ao mesmo tempo com medo da resposta eu apenas a olhava angustiada, as perguntas engasgadas na minha garganta. Vera chorava em silêncio com a feição mais expressiva que vi nela. Uma expressão dura de decisão e certeza. ‘’

— O que ela disse? — a voz ecoou distante.

— Quando chegamos em frente a grande porta de madeira, Vera bateu desesperadamente, depois olhou fundo nos meus olhos, e o que ela disse em seguida foi a frase que ecoou na minha cabeça por semanas. 

‘’Não posso mais te proteger.’’

— Até hoje eu não sei o que Vera quis dizer com aquilo. Me proteger do que? Fiquei ali vendo ela ir embora, sem olhar pra trás. Eu fui acolhida por uma freira e ali começou um novo capítulo pra mim.

‘’Eu era uma das mais velhas, então as outras meninas não me incomodavam muito, mas eu admito que algumas eram bem esquisitas. Depois de algum tempo aprendi a ver o lado bom do orfanato. Era grande, havia lugares em que eu podia me isolar das meninas, das freiras, das aulas. Descobri o que aconteceu com Kevin e o que ele fez pela televisão. Eu não podia acreditar nas notícias sobre a escola, mas quando soube o nome de cada uma das vítimas, eu tive certeza que foi ele quem fez aquilo.’’

— Por que? — ao ouvir a pergunta, Britta riu sem graça e o olhou.

— Porque foram os meninos e meninas que mais me fizeram bullying na escola — Bruce observou a forma quase indiferente com a qual ela falava. — Aqueles de quem falei pra ele na sala abandonada…Não está óbvio?

— O que você sentiu? — perguntou inevitavelmente curioso.

— Nada — deu de ombros secando os olhos. — Eu estava mais preocupada com Kevin, com o que ele havia se tornado finalmente. Um assassino cruel. Não me entenda mal! — falou de repente olhando o Cavaleiro — Eu sinto muito pela forma que aqueles jovens perderam as vidas e eu não posso imaginar o estrago que isso causou naquelas famílias — sua empatia pareceu real — Mas eu to sendo sincera em dizer que naquele momento eu não tinha total noção do que aconteceu com aquelas crianças, só pensei em como nossa família foi destruída…— as palavras morreram em sua boca enquanto mergulhava em memórias novamente.

‘’Kevin se tornou um assassino, estava preso e pra variar se tornou a sensação de Gotham naquela semana. Só se falava em Kevin Miller, o massacre e o assassino do próprio pai. Para se ter uma ideia, as meninas do orfanato contavam histórias mirabolantes de terror, incluindo o Kevin em suas histórias. Eu lembro de  às vezes ficar super preocupada com ele, sobre como estava sendo tratado... 

‘’Com o passar dos dias eu fui esquecendo Kevin e todo o resto e me sentindo cada vez mais sozinha e deprimida. Foi na biblioteca que me encontrei de novo. Foi nos livros que pude fugir para uma realidade menos dura. Eu era uma adolscente preta com 17 anos, prestes a me tornar maior de idade. Eu nunca tive a expectativa de ser adotada. Essa realidade nunca passou pela minha cabeça. Mas foram os livros que me fizeram ver um futuro.

‘’Apesar de no fundo sempre ter um lugar especial para Kevin em meu coração, eu sabia que eu não era uma Miller e isso era bom. A família Miller teve um final desastroso do qual eu decidi que não faria parte. Nem mesmo o orfanato sabia que eu era da família, ali vi a possibilidade de ser quem eu quisesse. Aquela tragédia não precisava me definir.’’

— Ninguém nunca te visitou? 

— Quem? O espírito do Tom? — riu negando com a cabeça. — Eu não tinha ninguém. Kevin estava preso com a possibilidade de pena de morte e Vera estava Deus sabe onde. O orfanato não sabia dizer de seu paradeiro, na verdade pro orfanato eu era uma ninguém, de mim eles só sabiam o nome, Lena. 

‘’E depois de alguns meses, pra mim isso se tornou o suficiente. Estava decidida a deixar meu passado para trás. Quando saí do orfanato, por conta das minhas notas altas e excelente desempenho nas aulas, a direção me prometeu apoio para conseguir uma identidade legal, mesmo porque eu não tinha registro, nenhum documento. 

‘’Eu decidi que sairia de Gotham, mas pra isso eu teria que ter dinheiro, então eu corri atrás de trabalho, e consegui uma vaga em um restaurante contemporâneo lavando pratos e fazendo faxina. Em nenhum daqueles dias eu pensei em procurar por Vera ou Kevin. Eu estava focada, com meu olhar pra frente e isso estava sendo ótimo. Eu estava bem. Eu trabalhava o dia inteiro, implorei pra que me deixassem trabalhar em dois horários e quando descobriram que era porque eu ainda não tinha onde dormir, me ofereceram dormir no terraço onde ficavam algumas tralhas no restaurante. 

‘’Rosie Pine era a gerente do restaurante, um dia ela me flagrou estudando no meu horário de descanso e desde então ela me deu muito apoio, abriu meus olhos para como falar com as pessoas e lidar com elas. Passei minha vida inteira sozinha, muitas vezes calada. Eu era praticamente um bicho do mato. Quando finalmente consegui a bolsa e esse apartamento pelo programa do governo junto a Empresas Wayne, ela me contou que se eu quisesse eu teria um lugar para estagiar já que seu marido, Patrick Pine também era advogado.’’

— Nas Empresas Wayne. 

— O desgraçado tem um caráter completamente diferente da esposa, mas também se ele tivesse se recusado a ajudar…eu talvez não conseguiria a vaga — admitiu e respirou pesadamente deixando claro para Batman que ela não tinha mais nada para contar. — Olha… — Se levantou e o encarou. — Eu nunca mais tive contato com Kevin e nunca soube pra onde Vera foi…Como eu disse eu nem mesmo quis saber. Mas eu não sei o que tudo isso tem a ver com o sequestro que sofri…

— Sua vida toda é uma mentira — as palavras doeram nela.

Não era como Britta via sua vida. Para ela, a confusão e o desastre deram lugar a história de superação e sucesso que ela acreditava ser só o começo. Olhando para a figura imponente do Batman, achou melhor não discordar mas também pensava que não lhe devia mais nenhuma explicação.

— Eu não sei o que quer que eu diga — deu de ombros. 

O homem a encarou em silêncio, um silêncio que perdurou por tempo suficiente para Britta se sentir em perigo. Estava sendo analisada e temia qual seria o ‘’diagnostico’’. Se Batman não acreditasse em nenhuma de suas palavras ela se perguntava como a noite terminaria para si. 

Um grito de horror escapou por sua garganta quando sentiu o aperto em seu braço e percebeu que estava sendo praticamente arrastada para fora do quarto. Tentou se livrar do aperto chocada em como o traje, aparentemente pesado, não impediu a lenda de mover-se tão rápido e imperceptível para perto de si.

— O que pensa que está fazendo!? — gritou se debatendo pelo caminho. — Me solte! Você não tem o direito de fazer isso! 

E continuou protestando aos gritos contra seu novo raptor. Quando chegaram à sala, ele a pegou pelos ombros e a colocou firme contra a porta. Perante o olhar obscuro do homem, Britta se encolheu quase caindo, tendo que olhar ainda mais para cima para encará-lo. Batman parecia ter dois metros de altura, o que era muito comparado aos seus 1,60m. 

— Se continuar se debatendo, vai se machucar mais — dificilmente Bruce falaria aquilo com qualquer outro. Ignorou o pensamento.

— O que você quer dizer com isso?! Você já tá me machucando! — com a respiração acelerada, Britta gritava mais histérica, perdendo o controle cada vez  mais.

— Cale a boca. — Ele abriu a porta atrás dela e a empurrou para fora, voltando a segurá-la pelo braço.

— Se você não disser o que pensa que está fazendo eu vou gritar!!! Eu juro que vou fazer um escanda…AH! — se interrompeu quando foi jogada com força pela porta da escada de emergências. 

Quando a luz se acendeu, Britta não teve tempo de pensar em fugir porque o vulto negro já avançava contra ela a segurando pelos ombros e a prensando contra a parede. 

— Você tá me machucando! — reclamou sentindo a dor. 

Mas ele não respondeu. Manteve a pressão contra os ombros esperando que ela apenas se calasse. Bruce sabia que havia algo que Britta não estava contando e no último caso lhe pressionar o livraria de qualquer dúvida para que seguisse com sua investigação. 

— Vou perguntar somente uma vez — a morena arregalou os olhos. — Tem mais alguma coisa que não está me contando?

As luzes automáticas se apagaram, mas o aperto em seus ombros lhe faziam ter certeza de que ela ainda não tinha para onde ir. Além do mais, ela sabia que se o segurança do prédio os viu dificilmente seria contra os atos do Vigilante por conta do seu ato heróico e abnegado de anos atrás em prol da cidade, foi quando algo estalou em sua mente. A luz automática ligou novamente e Bruce viu a expressão curiosamente iluminada da morena.

— Câmeras…—  murmurou ofegante para si mesma e sorriu com o alívio que agora sentia, ela finalmente podia falar — Tem câmeras em meu apartamento! Eu estou sendo monitorada pelo Coringa! — vomitou as informações, desesperada por ajuda — Por favor, precisa acreditar em mim! — suplicou.

Bruce afrouxou o aperto ao lembrar-se das câmeras microfonadas estranhamente posicionadas pela casa e então Britta lhe explicou toda a situação do seu sequestro sem deixar de fora todos os detalhes críticos que não pôde mencionar em seu depoimento para a polícia. 

Sem nenhuma palavra ele deu um passo para trás pensativo. Infelizmente isso não lhe dizia muito, sobretudo sobre a incógnita de Jenkins. A olhou desejando que estivesse falando a verdade e virou-se para descer as escadas. Britta observou a capa o seguir em uma dança majestosa com um som encorpado mas logo correu alguns degraus para alcançar os passos rápidos do herói.

— O meu irmão está vivo? — a pergunta escapou de seus lábios e para sua surpresa Batman parou no lance abaixo.

— Asilo Arkham — a voz ecoou na escadaria.

— Asilo Arkham? Ele está bem? — não era segredo para ninguém as controvérsias envolvendo o lugar. 

— Isso você pergunta a ele. 

— Coringa me deu um pendrive… — gritou a tempo antes que o vigilante sumisse novamente.

— Vai entregar a Lucius Fox — respondeu depois de pensar um pouco.

— Lucius Fox? — ele não a respondeu, apenas voltou a seguir seu caminho.

A passos lentos voltou ao apartamento tentando fazer sentido do que Batman lhe falou, mas estava exausta e aliviada demais para se preocupar com qualquer coisa mais. Sobretudo quando sentou na ponta da cama e viu o pendrive na escrivaninha, não pôde deixar de sentir uma sensação de alívio ao perceber que finalmente não estava sozinha na trama em que Coringa lhe colocara.  

Independente de até onde Batman acreditava nela, estar de volta a seu quarto era um sinal positivo. Apesar disso seu alívio não durou muito, quando deitou a cabeça no travesseiro, relembrou as dolorosas lembranças que já havia decidido que ficariam no passado, mas teve de reviver aquela madrugada. A imagem da reportagem de Kevin sendo preso dominou sua mente. Se Kevin já era um assassino cruel naquela época, o que aconteceu para ele ser colocado em um lugar como o Arkham? O que ela encontraria lá caso fosse vê-lo? Será que ele sabia do paradeiro de Vera? Será que ela se importava tanto em saber sobre isso?

 


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "EU TE VEJO - Um romance com o Coringa." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.