Por Onde Andou Eichler? escrita por Mitchece


Capítulo 7
A maracutaia de Pólen




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/811417/chapter/7

A casa de Amélie não ficava longe da casa dos tios, mas as pernas de Írios queimavam de tão rápido que ele pedalava a bicicleta enferrujada. A capa de chuva laranja cobria seu corpo todo, mas não impedia as gotas de molharem seu rosto e atrapalhar a visão das ruas.

Quase perdeu o controle da bicicleta algumas vezes - em uma derrapou tanto que quase saiu da pista e caiu no gramado, mas recuperou o controle rapidamente. Já estava se sentindo quase radical e dominando aquela bike encostada.

Não sabia bem o que esperava encontrar por perto da casa da garota desaparecida, mas não conseguiu conter o ímpeto de sair de casa para ir até lá. Passou o dia todo pensando naquilo e na explosão. Talvez algumas respostas caíssem no seu colo caso estivesse por perto.

Chegando nos arredores do destino, arremessou a bicicleta no gramado da casa de um vizinho e se aproximou da movimentação da casa da garota. Nunca tinha ido andar por aquela vizinhança, mas foi fácil de achar - só seguir a direção das outras bicicletas e transeuntes. Tinha olhado no mapa também para se localizar. Precisou passar novamente pela floresta de araucárias, mas apertou o passo no pedal para não correr o risco de ficar preso em líquen de novo.

Ficou de longe olhando a movimentação. Havia muita gente na casa da garota criando um entra e sai danado. Provavelmente amigos e familiares dando apoio. Írios viu nos jornais que o desespero da mãe pelo sumiço da filha era sofrido e muito estarrecedor.

Como não queria se meter direto assim, preferiu chegar até os fundos pelo quintal de uma outra casa vizinha. Bisbilhotou e conseguiu ver pessoas encapuzadas saindo pela trilha. Eram os grupos de busca. Olhou para dentro da floresta e também percebeu que lá haviam mais pessoas. Gritavam por Amélie e acenavam bastões brilhantes para conseguirem ver melhor. Deveriam olhar atentamente para todo canto. Ela poderia estar em qualquer lugar - numa caverna, atrás de uma raiz ou pedra, escondida num tronco, etc. Viva ou morta.

O garoto teve vontade de puxar uma autoridade para o lado e contar de verdade o que havia visto naquela noite. Talvez pudesse ajudar na investigação ou mudá-la para uma linha mais certeira. Mas havia um receio de se lascar com isso. Talvez até… ser expulso da cidade, quem sabe? Imaginava estar de volta no mundo dos humanos e já ficava completamente arrepiado com essa possibilidade.

Se não confiava na guarda municipal para contar o que sabia, então deveria trocar com quem já estivesse por dentro do que aconteceu. E sabia exatamente onde encontrá-la.

 

A chuva deu uma trégua no meio do caminho para o centro. O garoto já estava exausto de pedalar, então, quando chegou no destino, se escondeu debaixo de uma marquise para recuperar o fôlego. Só depois foi prestar atenção ao redor.

A praça estava mais vazia que de costume por causa da chuva, mas algumas pessoas já se organizavam de volta por ali. O garoto entrou acuado na sorveteria sem muita esperança de encontrar quem queria, mas surpreendeu-se ao vê-la sentada na última mesa dos fundos, sozinha.

Írios até se sentia um pouco mal por saber tanto sobre a rotina daquela garota, mas ele não tinha culpa se ela fazia coisas parecidas com ele. Eles já se viram logo no primeiro dia em Àttinos, na pista de skate, enquanto esperava seu tio. Depois nos passeios de bike por perto da casa dos tios. As vezes que Írios chegou a ir até aquela sorveteria não foram muitas, mas em todas Pólen estava por lá.

Hesitou e voltou para fora da sorveteria. Não podia ficar muito exposto para ela. Ficou corado só de imaginar a possibilidade de ser visto. Mas ainda sim queria abordá-la para que eles pudessem conversar sobre as luzes púrpura, turquesa e narciso na floresta.

Ficou ensaiando entrar na sorveteria por tanto tempo que Pólen acabou sua sobremesa e saiu pelo lado oposto do estabelecimento. Só a notou quando ela puxou sua bicicleta escorada num ipê e pedalou para longe.

Imediatamente, Írios fez o que já vinha tendo costume nas últimas semanas: esperou certa distância e a seguiu.

 

O bosque calado fazia jus ao seu nome: apesar de não ser o maior da cidade, dava a sensação de que você estava perdido numa imensidão verde e silenciosa. Nem mesmo os pássaros cantavam e nenhum animal grunhia. O único som que dava para ouvir era das folhas roçando umas nas outras quando o vento batia.

Pólen desceu da bicicleta e caminhou arrastando-a ao seu lado logo na entrada de uma das trilhas. Lá, o terreno era mais irregular e tornava difícil a tarefa de controlar a bike. Se não fosse o apagamento do som, Írios já teria chamado a atenção da garota com os barulhos que fazia ao derrubar sua bicicleta várias vezes. Ou talvez não.

Num piscar de olhos, a garota simplesmente sumiu. Írios viu apenas sua bike vermelha repousada sobre o solo. Arrepiou-se por inteiro. Até onde sabia, feiticeiros não podiam ficar invisíveis, se teletransportar ou algo assim. Mas eram mais sagazes: podiam fazer com que parecessem saber fazer isso.

O garoto magricela deu um passo hesitante para trás e ouviu um som de papel abaixo de si. Encontrou seu par direito do all-star amarelo e surrado sobre uma folha quase do tamanho de um A5. Pegou-a para ler o que havia escrito em vermelho e entendeu tudo.

Não era muito versado em runas, mas o básico sabia. Ali estava um inciso clássico para pregar peças. Quando ativadas, aquelas runas faziam o corpo do afetado parar por uns três, quatro segundos. Havia caído numa armadilha. Pelo jeito, Pólen sabia que estava sendo seguida. Talvez há dias, quem sabe.

Ouviu uma movimentação atrás dele e, quando virou-se para ver do que se tratava, encontrou os olhos grandes e verdes de Pólen a menos de um palmo dos deles. Ela tinha olhos agitados, de pessoa inquieta, que prestava atenção em tudo ao redor e pensava em mil coisas ao mesmo tempo.

A garota rapidamente assoprou um pó rosado sobre o rosto de Írios, que não pôde evitar de inalá-lo. Tinha cheiro de morango misturado com madeira úmida.

— Quem é você? - ela perguntou ríspida e rápido, afastando-se um pouco do garoto desconhecido.

— Írios Fernando - ele respondeu. Não que não fosse responder, mas as palavras simplesmente voaram de dentro de sua boca milésimos depois que seu cérebro processou a pergunta. Sentiu que, se estivesse com a boca tapada ou sem a intenção de responder, seu corpo não obedeceria e falaria da mesma forma. Aquele pó…

— Por que tá me seguindo?

— Porque não tenho amigos - agora pronto. Além de seu corpo não obedecê-lo, ainda escolhia a verdade mais profunda e humilhante para falar. Subiu rasgando pela garganta, imparável.

Pólen deu uma risadinha da resposta. Adorava ver o efeito daquela muvuca. Írios corou na hora e ela continuou:

— De onde você é?

— Sou do Outro Lado - a resposta pulou para fora de seus lábios novamente. 

— De novo: por que tá me seguindo?

— Porque ontem fiquei preso no líquen com seu amigo depois de bisbilhotar você e seus amigos no meio da floresta e daí veio uma explosão e… - depois de vomitar mais algumas verdade, Írios conseguiu finalmente recobrar o controle sobre suas ideias e da boca. Então calou-se, assustado. Depois, perguntou com irritação: - O que você fez comigo?

— Seu desgraçado, me fez gastar a última nota de pó de lero - Pólen resmungou voltando até sua bike tombada. - Vai ficar me devendo um pote novo. Minha tia me trouxe esse do outro lado do continente.

— Desculpa? - o garoto tímido não sabia o que responder.

— Não desculpo, mas vai ter que vir comigo - ela pediu sem olhar para trás. Sua voz estava ficando abafada pela mata por causa dos passos adiante, então Írios foi desengonçadamente até a garota. - Você vai me ajudar numa coisa, se não eu te denuncio para a polícia por estar me seguindo.

Pólen não faria aquilo, mas precisaria do garoto nos próximos minutos, então decidiu dar uma blefada. Funcionou, pois ele agarrou sua bicicleta enferrujada e caminhou ao lado da garota, ouvindo atentamente tudo que ela tinha para dizer. Mas, antes, a indagou:

— Você sabe daquela garota, a Amélie?

— Não sou ela. Meu nome é Pólen.

— Eu sei que não é ela… Ela tá desaparecida.

— Sei. Que têm?

— A gente não deveria… contar pra polícia?

— Oxe, oxe - ela protestou. - Contar o que?

— Que a gente tava lá na floresta que ela sumiu e viu algo esquisito? - Írios estava soando maior bunda mole, mas Pólen entendia. Nem todo mundo era firme igual ela, principalmente um cambembe vindo do Outro Lado.

— Cara, fica na sua. É melhor - ela sugeriu educadamente enquanto continuavam pela trilha. - A polícia vai dar um jeito. E eu tenho coisas mais importantes pra fazer.

Írios não pareceu satisfeito. Percebendo, Pólen tentou levantar seu astral:

— Ei, depois de me ajudar no que eu preciso, juro que te agilizo um papo sobre a Amélie, ok? Isso também me interessa. Só tenho… outra prioridade agora. Fechado?

— Fechado - Írios aceitou. No fundo, seu peito estava fervilhando de alegria por estar conversando com outra pessoa sem ser seus tios e Bernardo, principalmente alguém de sua idade, um feiticeiro… Alguém que ele estava observando de longe há tanto tempo. Tomou aquilo com uma grande conquista. Será que ela era sua amiga agora?

— Massa. Agora bora pro Antiquário do Seu Nicareta. Eu tô proibida de entrar lá porque minha gatinha ficava roubando taças de cristal e levando pra minha casa. E porque eu destruí uma estátua grega. Sem querer, acho.

A gatinha de Pólen era uma ladra conhecida nas redondezas. Ela entrava com facilidade na casa dos outros e nos estabelecimentos por perto, pegava qualquer coisa e levava para a garota. Quando o pessoal começou a desconfiar dela, a mãe de Pólen teve que deixar um armário no gramado do quintal com tudo que ela roubava para as pessoas irem lá pegar de volta. “Desculpa, nossa gata é uma ladra. Pegue o que é seu de volta” dizia a placa ao lado do armário. Foi a solução que encontraram, já que era difícil reconhecer de quem eram os itens que a gata pegava. Eram cuecas, varinhas, talheres, panos…

— Ok… - Írios aceitou, mas sem ter entendido bem todas as últimas palavras que a garota soltou.

— Como tou banida, se botar os pés naquela calçada, ayê, vou tomar maior chocão. Então vai você - ela bateu nos ombros do garoto, como quem tenta incentivar. Ele não estava esperando, então perdeu o equilíbrio do corpo e quase caiu no chão. - Pega esse dinheiro e compra um vaso daqueles de decoração, tipo, sei lá, do tamanho da sua cabeça. Mas têm que ter tampa, fechou?

— Só isso? - Írios ficou decepcionado com sua parte na missão da garota. Parecia ser algo tão importante para ela, mas aquilo foi de certa forma broxante. Achou que, sei lá, iriam disparar numa grande aventura, ou ir para um lugar mais legal. Pólen percebeu seu desapontamento e entendeu. A resposta que ele deu sobre não ter amigos a pegou, então resolveu animá-lo:

— Ei, depois que comprar o vaso pra mim, te deixo assistir a maracutaia que vou fazer, ok? Daí depois conversamos sobre a Amélia.

— Amélie - ele corrigiu.

— Isso aí.

Írios sorriu para a garota alta. Ela parecia ser bacana. Era bom aquilo.

 

O antiquário ficava após a trilha norte por dentro do Bosque Calado. Era num pequeno bairro de comércio com algumas poucas casas nos quarteirões atrás da rua principal, que rodeava uma praça com uma bela fonte de água e trailers de lanche. Apesar do bairro pequeno, a praça estava movimentada, com muitas famílias se deliciando nas cadeiras de plástico sobre os chão de paralelepípedo. O sol já conseguia espiar por trás das nuvens e esquentava o dia aos poucos.

Não foi difícil achar o antiquário. Pólen esperou na praça e apontou para Írios um barracão alto e grande no final da rua principal. Lá dentro estava entulhado de móveis, obras de arte, peças, eletrodomésticos, itens de jardinagem e o que mais pudesse imaginar existir, de qualquer época possível.

O mais inesperado era que aquela tralha toda ficava amontoada uma sobre a outra. Tinha até uma pobre churrasqueira de latão sustentando um armário de madeira maciça e uma mesa de jantar com as quatro cadeiras por cima. Deu para perceber que era um truque mágico com a gravidade, talvez. Írios achou bacana, mas preferiu ficar afastado de tudo que pudesse, com medo de derrubar algo e virar persona non grata ali igual a Pólen.

O dono do local se aproximou com tudo. Era um senhor bem gordo, que ficava sobre uma cadeira de escritório com rodinhas que o arrastava pra lá e pra cá. Apesar da aproximação inesperada, era bem simpático e guiou Írios até o corredor onde tinham muitos e muitos vasos e urnas empilhadas. A ajuda foi muito bem vinda, pois aqueles corredores eram muito labirintosos e nada intuitivos.

O garoto escolheu um que tivesse tampa, a única exigência de Pólen. Pagou com o dinheiro que ela lhe deu e foi embora para a praça.

Írios tinha algumas ideias pré-concebidas sobre os feiticeiros e seu mundo que jogavam muito a sardinha para o lado deles. Idealizava demais tudo em relação aos feiticeiros daquele lado. O problema disso era que se decepcionava com algumas coisas pontuais.

No Outro Lado, Írios já tinha morado em cidades pequenas como Àttinos, e o ponto que mais lhe incomodava sobre os cidadãos daqueles lugares era a curiosidade extrema. Em palavras mais caras: fofoca.

Não podia andar na rua sem atrair olhares indiscretos e famintos sobre si. Não importava se era conhecido, desconhecido, novo, velho. Todo mundo estava de olho em todo mundo que passasse na sua frente. E olhavam descaradamente, comiam com os olhos. Isso incomodava horrores o garoto.

Chegou num ponto que parecia doer fisicamente ser tão espionado assim.  Não era incomum os pais de Írios saberem onde ele esteve e por onde passou. Conhecidos da família sempre tinham algo a dizer sobre isso. As pessoas comentavam sobre a vida dos outros com um interesse profundo, como quem comenta um filme, uma peça, um livro.

E, para sua surpresa, Àttinos não era diferente. As pessoas sempre lhe seguiam com os olhos. Muito provavelmente por ser um desconhecido na cidade, talvez também pelas suas roupas de humano, ou pelo corte de cabelo, não sabia. Mas os olhares estavam lá. E incomodavam igual. Ele só queria andar por aí sem ser notado, sem ser uma pauta, um assunto. Queria ser ninguém, invisível.

— Não duvido que tenha fugido com o namoradinho.

Passou perto de um casal novo, de no máximo uns vinte anos, que estava dividindo uma porção de fritas numa das mesas de plástico da praça, e não pôde deixar de ouvir a conversa calorosa entre eles. Foi o rapaz quem ouviu falar primeiro. Quando notou que pudessem estar falando de Amélie, Írios diminuiu o passo levemente para se manter por perto por mais tempo.

— E eu não duvido que esse tal namoradinho não tenha dado um fim nela - em seguida veio o pitaco da moça. Falava até que sem debochar, mas com certa maldade.

— Credo, que horror - ele protestou meio nervoso, mas entre sorrisos. - Você conhece eles?

— Amélie é amiga da minha irmã - Ela continuou e o garoto conseguiu confirmar que o assunto era realmente a menina desaparecida. - Elas não se davam muito bem, mas conheço mais o tal namoradinho dela.

— É o Chiano, né? - o moço pediu enquanto botava mais ketchup sobre a porção de fritas. Írios fingiu precisar amarrar o all-star. Repousou a urna ao seu lado e agachou para mexer nos cadarços dos dois pés. - É vizinho da minha vó. Um inferno, aquele garoto.

— Por que?

— Mexe com muita maracutaia - julgou - e é bem daquele jeitinho de bad boy, sabe? Lembra do Marcelo que estudava com a gente?

— Lembro - a moça confirmou e começou a rir -, aquele que vivia fazendo sapos aparecem na sua mochila, né?

— Ele mesmo - confirmou, desconfortável -, então, mesmo jeitinho do Chiano.

A garota trocou olhares com Írios por um momento. Nervoso, ele decidiu apertar o passo e voltar até Pólen, que estava sentada num banco de concreto e fazendo carinho num gato malhado de rua.

— Missão cumprida? - Pólen perguntou quando Írios já estava a poucos passos dela. Conseguia ver a urna embaixo de seu braço e era exatamente o que precisava. Em resposta, Írios apenas esticou o objeto para que ela pudesse pegar.

— Sobrou um troco - ele disse puxando algumas notas vermelhas do bolso da calça cargo.

— Boa - comemorou e levantou-se. - Bora voltar pro Bosque e esperar o Breno.

Írios engoliu a seco de nervoso. Estava tão bem até agora, só ele e Pólen. Não sabia que precisaria ver o garoto do líquen novamente. Tinha vergonha dele, do vexame que fez ele passar. Mas seguiu a garota de volta para a trilha.

Pólen o guiou até o local onde dizia ser o ponto de encontro combinado com Breno. Írios achava aquelas trilhas confusas demais, eram caminhos muito parecidos. Não entendia como ela conseguia se localizar sem um mapa e definir lugares tão específicos, se era tudo tão igual.

Os dois sentaram e esperaram em silêncio. Nada do rapaz aparecer. A garota ia ficando cada vez mais impaciente. Primeiro, foram os pés e pernas que balançavam incessantemente. Depois, nem sentada mais conseguia ficar. Levantou, ficou escorada numa árvore olhando para todos os lados da trilha na esperança de Breno aparecer. Minutos depois, começou a caminhar de um lado para o outro tantas vezes que Írios cansou só de ficar assistindo.

Quando já estava impaciente, tirou da bolsa tiracolo uma pequena concha branca, a colocou no ouvido direito e começou a falar sozinha. Írios ficou confuso, mas depois entendeu que era como se ela estivesse falando ao telefone. Na verdade, deixando recados numa caixa postal. Muitas mensagens, na verdade.

— Breno, se você não aparecer em cinco minutos, vou fazer você mijar areia por uma semana - e a cada recado ficava mais irritada.

Como a tarde ia se arrastando, Írios começou a ficar preocupado em voltar para casa antes dos tios. Já tinha ficado sumido na noite anterior, precisava dar a cara pelo menos por algumas horas. Levantou-se do toco para ir até sua bike enferrujada.

— Ei, acho que preciso ir…

— Você espera aqui!— ela protestou repentinamente.

A raiva de Pólen foi tanta que se projetou para fora de seu corpo em forma de vento. Dela, uma rajada forte surgiu. Forte o suficiente para fazer as folhas das árvores acima chacoalhar, terra levantar do chão até os olhos de Írios e gravetos voarem para todos os lados, inclusive, na cara do garoto. Sentiu um tapa acima do olho direito. Na hora não doeu tanto, mas logo sentiu um líquido escorrer pelo seu rosto até alcançar seu pescoço e uma ardência começou a apontar sobre a sobrancelha.

— Deuses, cara, me desculpa! - Pólen mudou a postura de irritada para preocupada rapidamente após perceber que feriu o coitado do garoto estrangeiro. Foi até ele para ver o machucado, mas ele recuou alguns passos para ficar longe dela. - Não foi minha intenção. Pera, eu vou cuidar disso.

Passado o primeiro susto que fez o garoto se afastar de Pólen, já se recompunha na sua timidez:

— Não, tá de boa. Relaxa, foi um acidente.

Írios e sua mania de não gostar de incomodar ninguém, mesmo quando era ele mesmo quem estava incomodado, vai entender.

Pólen estava se preparando para olhar ao redor em busca de alguma planta que pudesse ajudar num emplastro para o ferimento do rapaz. Antes, conferiu a bolsa em busca de água benzida, mas seu frasco estava vazio. Sua busca foi interrompida pela imagem de Breno se aproximando à distância.

 

 

— A gente vai fazer o quê exatamente? - Írios pediu já um pouco irritado com tanta falta de informação. Breno revirou os olhos e se afastou um pouco.

— É só uma maracutaia, ayê— Pólen respondeu enquanto colocava a urna comprada por Írios e a trazida por Breno no chão, uma na frente da outra. - Breno, deixei os dois espelhos escondidos numa pilha de folhas atrás da árvore em V.

O garoto entendeu e foi até a árvore buscar os objetos.

Maracutaia Írios até que sabia o que era, mas os conceitos e nomes de coisas de feiticeiros podiam mudar de um lugar para o outro, então ficou inseguro sobre o que a garota estava falando exatamente. Lembrou do garoto preso na árvore o julgando por perguntar o que significava ayê (e estava sem entender até então).

— O que é uma maracutaia? - Írios perguntou na mesa de jantar para os tios dias antes.

— Maracutaia, feitiço, runa, muvuca… Não sabe a diferença? - a tia pediu tentando resgatar os conceitos corretamente da memória. Eram coisas cotidianas para ela, não pensava nesses termos há anos.

Írios fez que não com a cabeça, meio que com vergonha. Mas não tinha culpa. O ensino mágico para os feiticeiros que viviam no Outro Lado era bem limitado e propositalmente sabotado pelo governo humano. Ele sabia fazer o básico, mas não ia muito fundo em teoria, muito menos em nomenclaturas.

— Tá bom, tudo bem, eu te explico - a mulher demonstrou acolhimento. - Feitiço é um… feitiço. É o básico, a materialização da magia evocada por um feiticeiro - puxou da memória a explicação mais técnica que recebeu na escola e continuou na didática: - Runas são os feitiços transcritos. Você pode combinar mais de um feitiço pra criar um encanto, que são vários feitiços ativados duma vez só, ou em sequência. A gente usa pra usar em espaços ou pra ligar maracutaias.

— Runas só funcionam se escritas e ativadas com sangue de feiticeiro - o tio complementou enquanto passava mais geléia no seu pão -, em papiro mágico de pau-brasil. Pode ser escrita com seiva de pau-brasil também, mas ela dura menos tempo. Com sangue de feiticeiro pode marcar por anos porque não decai, mesmo se num tiver mais visível. Se tiverem escritas de qualquer outro jeito, são só… letras.

— Se você coloca magia num objeto pra deixar ele com algum efeito, tipo uma adaga ou uma varinha, já é um amavio. Um objeto amaviado - a tia continuou. Írios sabia dessa.

As adagas de feiticeiros novos, por exemplo, eram amaviadas para alhear (outra palavra que aprendera dias antes com Breno), virar espadas por um curto período de tempo, já que não se podia empunhar espadas até os dezessete anos de idade.

— Também têm emplastro e muvuca. Emplastro são misturas de ervas, plantas, seiva, madeira… Pra botar num ferimento, baixar uma febre, tirar uma ardência, fazer botânica, coisa de quem tem mutreta com cura. É bom pra botar na pele, mas têm uns que dá pra beber, só que o gosto é horrível.

Muvuca é quase igual a um emplastro, mas com material seco. Têm efeito mais leve, mas a magia decai mais devagar. Dá pra usar semente, madeira, folha, galho. Dá pra fazer amuleto. Como eu falei, o efeito é leve, então guarda contigo que o encanto vai se fazendo aos poucos.”

Cantiga é um feitiço falado, cantado. Podem ser músicas, versos de recitar, sussurros, murmúrios. Um dos jeitos mais antigos de se fazer magia. São bons pra encantar objetos pequenos, tipo acender uma vela, ligar um botão, girar uma manivela. Têm de todo tipo, mas só dá o efeito enquanto canta ou recita. Algumas têm efeito no corpo, a maioria são frequências ou chiados de som. Daí já é bom pra cura ou tratamentos.”

Maracutaia é bem mais complexa - o tio assumiu a explicação novamente quando sua esposa pegou mais um gole de café para molhar a garganta - que usa a mistura de feitiços, runas, cantigas, muvucas, emplastros, encantos e o que mais precisar. Demoram pra fazer, precisam de tempo e muita tentativa. Normalmente não têm uma receita, você vai criando e montando até chegar onde quer. Claro que têm umas maracutaias clássicas que são infalíveis e quase todo mundo sabe fazer, mas o legal de uma maracutaia é a surpresa.

— Qualquer desses tipos de feitiços pode virar um encosto, que é o resultado de um feitiço que se faz pra azarar alguém - a tia retornou a falar. - Não importa o efeito, a gente fala que têm encosto quando se tá enfeitiçado por outra pessoa, normalmente com um efeito ruim.

“A gente chama de mandinga quando se faz uma cantiga ou outro feitiço tipo a longo prazo. Algo que você encanta e faz todo dia pra pegar um efeito maior, quase como uma oração dos humanos. É mais difícil e num tem muita regra não, eu acho que é mais por superstição que qualquer outra coisa. Têm uns que têm efeito mais rápido, daí já são benzeduras mesmo. 

Írios tentou resgatar aqueles conceitos todos enquanto Pólen lhe explicava a maracutaia que iriam fazer ali no Bosque Calado. Ele olhava encantado para todas as instruções da garota. Seus olhos castanhos e esbugalhados brilhavam de tanta atenção. Breno o encarou e lembrou, não sabia exatamente por quê, de como Eichler o olhava com interesse quando o ensinava sobre as coisas que aprendia nos escoteiros.

— Obrigado pela explicação - o garoto novato disse contente para Pólen após ela dar as primeiras instruções para ele.

— De nada - a garota respondeu retornando à postura mais impaciente. - Agora vá lá pegar os espelhos e coloca aqui na clareira.

Írios obedeceu, levantou e foi até os objetos.

— Por que tá perdendo tempo com esse carinha? - Breno sussurrou quando passou perto da amiga, tomando cuidado para Írios não notar o papo desta vez.

— Porque ele quer estar aqui, ao contrário de Valen e Julian - Pólen respondeu cirurgicamente, botando um ponto final verbal para que mudassem de assunto e tocassem o que estavam fazendo.

Írios ajudou com muita alegria na maracutaia e executava cada passo das ordens de Pólen com boa vontade, apesar de ser meio desastrado e fazer a mínima ideia do que estava fazendo, na real. Ele e Breno se dividiram nas atividades e Pólen ficava de longe ordenando tudo.

No geral, deixaram os dois vasos, o de Eichler e o do antiquário, lado a lado sobre o gramado. Ao redor deles, Breno espalhou em formato de círculo uma muvuca que Pólen tinha preparado em casa. Depois, cada um dos garotos segurou um dos espelhos a poucos passos do círculo, um na frente do outro, e deveriam ficar escondidos atrás deles, escorando-os para ficarem bem rentes ao chão.

Os reflexos ficaram alinhados e criaram aquela sensação de túnel infinito, refletindo diversas versões dos vasos no chão. Pólen colocou sobre a urna do antiquário um tecido branco com a baía bordada em vermelho. Depois, Írios percebeu que o bordado formava um inciso de runas. Engenhoso aquilo. A partir daquele momento, era importante que segurassem os espelhos sem deixar cair, pois a garota avisou que viria um vento forte de sua cantiga.

E assim foi. Ela começou a recitar, de longe, uma cantiga numa língua que Írios não reconheceu. Era baixa, suave e melódica. O vento subiu e pareceu rodar em círculo ao redor dos dois vasos, seguindo a linha da muvuca em pó. Írios notou que atrás do espelho que ele segurava também havia um longa sequência de runas. Tentou ler enquanto esperava a cantiga acabar. Não entendeu o inciso todo, mas reconheceu algumas runas específicas sobre cópias, replicações e ilusão.

Quando a melodia cessou, um clarão surgiu da frente dos dois espelhos seguido de um estrondo anunciando que os dois vidros haviam se partido em vários pedacinhos no chão. O tecido bordado sobre a urna do antiquário começou a pegar fogo e Pólen sinalizou para os garotos deixarem queimar até o fim. Depois, ele sumiu, consumido pelas chamas, e deixou sobre o gramado duas urnas idênticas.

— Replica feita - Pólen comentou contente após ver que a maracutaia deu certo. Breno ficou surpreso e foi conferir a urna do antiquário de perto.

— Caraca, nem sei dizer qual é a falsa - ele comemorou.

— É a da direita - a garota respondeu. - Agora, vá lá devolver. Nós cuidamos dessa.

Írios se aproximou com cautela. Na verdade, não se sentia muito confortável perto daquela urna com cinzas. Não conseguia tirar da mente o fato de ser uma pessoa reduzida ao pó lá dentro. Ficava se questionando como que os outros dois não tinham essa mesma sensação, principalmente por se tratar de alguém que eles aparentemente conheciam e gostavam muito - afinal, roubaram as cinzas para si. Mas lembrou-se que no último ano aprendeu que cada um leva a morte de um jeito, principalmente quando se tem outra cultura e criação.

De qualquer forma, não conseguiu deixar de perguntar à Pólen quando Breno subiu na sua bicicleta e pedalou pela trilha a fora:

— O que vão fazer com as cinzas?

— Isso, meu amigo, é uma longa história - ela respondeu já pronta para assumir seu tom professoral novamente.

Pólen se aproximou dele, retirou um band-aid azul-marinho da bolsa e colocou sobre o seu machucado. Disse estar amaviado para fechar cortes mais rápido. Írios não conseguiu conter o sorriso ao ser chamado de amigo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Por Onde Andou Eichler?" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.