Por Onde Andou Eichler? escrita por Mitchece


Capítulo 5
Pistache e pimenta




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25 de Junho de 2012

Querido Bernardo,

Ainda não estava me sentindo confortável para sair por Àttinos, mas isso não quer dizer que não consegui aproveitar meus primeiros dias por aqui.

Depois de um tempo sozinho, a gente até se acostuma. Eu já tinha passado por isso antes e até em dimensões piores, daí, quando lembrei disso, me senti melhor e só me deixei levar.

Eu gosto de ficar só, de ler por horas a fio, escrever, cuidar de plantas e cozinhar. Até ajudar na limpeza da casa tá sendo ok. Precisava parar de ficar desejando estar fazendo outras coisas que gosto, enquanto já estou me divertindo sem perceber. Daqueles truques que nossa mente dá.

O fato é que esquecemos de algumas coisas mesmo. Quando me mudei de cidade pela primeira vez, ficava me remoendo de saudades de tudo que nós dois fazíamos quando éramos crianças. Das brincadeiras na rua da sua casa, as voltas de patins pelo quarteirão, as muitas horas jogando Banco Imobiliário e Detetive, nossas aventuras de explorar o bairro…

Agora, quem disse que, quando voltei a morar aí, anos depois, eu corri atrás para reviver tudo isso novamente, já que sentia TANTA falta? Demorei um ano inteiro só para retomar o contato com você. Só me importei de verdade enquanto eu era totalmente impossibilitado de ter.

Inclusive, lembra daquele riacho no final da minha rua? Aquele que entramos pela primeira vez quando enterramos a sua gatinha - acho que era Laís o nome - lá por perto?

Eu gostava muito de ir nele com você. Era dentro da cidade, mas tão escondidinho que parecia ser especial, quase como uma base secreta que só nós dois conhecíamos e sabíamos o caminho. Um lugar esquecido, que alguém construiu anos antes e depois se foi.

Morria de medo daquela santinha que ficava dentro do casebre de tijolinhos, na margem da água, mas o balanço da mangueira me fez ter coragem de entrar lá. A gente ficava horas sentados nas pedras do riacho, escondidos pela mata fechada ao redor até anoitecer.

Enfim. Alguns dias antes de me mudar pra Àttinos, tive uma síncope nostálgica que me deu energia para sair de casa durante uma semana toda. Me deu vontade de ir para lugares importantes pra mim. Fui na nossa primeira escolinha, na praça dos sorveteiros, passei em frente das nossas antigas casas, na casa da sua madrinha, da minha vó, no estacionamento do mercado onde dei meu primeiro beijo, no parque municipal e no último dia fui no riacho.

É claro que todos esses lugares mudaram muito, principalmente os que eu não visitava havia tempo. Mas o riacho doeu um pouco mais, confesso, haha.

O caminho para chegar lá estava escondido - não era mais marcado com uma trilha no chão de terra vermelha. Sinal de que realmente não ia ninguém lá há muito tempo. Custei para entrar, mas fui me guiando pelo som da queda da água da mini cachoeira e logo achei. A casinha da santa estava destruída e ela sumida. O que restou do balanço foi apenas uma corda velha e tomada por folhas. E o fluxo de água estava bem mirrado e sujo.

Fiquei alguns minutos sentado na margem lembrando das conversas malucas de crianças que tínhamos ali. Foi bom pra lembrar. Devia ter te chamado para ir comigo, mas foi uma semana turbulenta, acho que não aceitaria.

De qualquer maneira, deixei um recado para você escrito do lado daquela pedra em formato de coelho. Escrevi naquele código que a gente criou - espero que se lembre e consiga traduzir!

Se quiser, me responda por lá. Quem sabe algum dia eu consiga voltar?

Não deixe de visitar o riacho.

Töedbagr,

Írios.

Quando o corpo de Breno se livrou do encantamento da semente da araucária, o garoto já estava solto do líquen e repousado sobre o chão. Suas costas ainda tocavam o material gosmento, mas sem estarem presas contra o tronco.

Olhou para cima e encontrou o garoto desconhecido ainda envolvido pelo material verde e dormindo profundamente. Percebeu que tinha esquecido de perguntar o seu nome. Bem, quando se é preso repentinamente com um estranho após uma explosão no meio de uma floresta escura, as burocracias sociais são deixadas um pouco de lado.

Até pensou em acordá-lo, mas ficou receoso de interromper o encanto das sementes e deixar alguma sequela. Feiticeiros usavam as sementes de araucária como amuletos em períodos ruins de sono, mas porque o pinhão já estava mais velho e com a magia decaída. Nada se comparava ao efeito de uma semente recém caída da pinha.

Então alcançou sua bolsa a tiracolo e andou jocosamente até onde estava a fogueira na noite anterior. A lenha já era apenas cinza e todo o ambiente parecia normal. Da direção de onde veio a luz da explosão soava apenas silêncio e alguns cantos de pássaros alvoroçados pelo nascer dos sóis.

Breno deveria voltar para sua casa e escutar poucas e boas por mais uma vez ter passado a noite fora sem avisar. Sabia que quando avisasse seus pais, poderia fazer e ir onde quiser. Mas não gostava de prestar essa conta. Era melhor ser repreendido depois do que deixar eles saberem por onde andava. Sua mãe ficava fula da vida com essa mania do garoto e o repreendia aos berros, mesmo ela pegando um pouco mais leve com ele desde o funeral.

Pensou que sua mãe ia ferver os nervos quando o visse de cabelo raspado, mas deu pra perceber que ela se segurou. Eichler tinha partido a pouco quando fez e ela tentou entender consigo mesma que jovens revoltados faziam coisas revoltadas quando precisavam. Mas não deixou de ficar amargurada. Tanto por ver o filho sofrendo daquela forma, quanto pelos lindos cabelos que ele cuidava tão bem. Breno mentiu que ele havia mandado o barbeiro raspar tudo mesmo, e pronto.

Pegou o caminho contrário de onde deveria ir, saiu da floresta e subiu no primeiro bonde que passou.

Muitas vezes gostava de caminhar sem rumo por aí para deixar a mente funcionar um pouco. Ou apenas para ver coisas, sentir cheiros e ouvir sons das ruas, florestas e praças. Também era bom só focar no seu redor ao invés de ficar pensando, pensando e pensando.

Mas nos últimos dias, mesmo partindo de lugares e fazendo trajetos diferentes, seu destino era praticamente um só. Chegava na trilha dos marceneiros e ia até o final. Era difícil na parte mais íngreme, mas a vista do topo da Colina da Sumaúma valia a pena. Áttinos ficava ao olhar como um todo. Era apenas girar para qualquer lado que podia ver claramente o centro, os bairros, as florestas, trilhas e boa parte da periferia. No horizonte distante tinham as montanhas ao sul e um resquício de mar ao norte. Num lado da colina havia um mirante de madeira, mas a melhor parte era aos pés da única e grande árvore que se erguia ali. O local era pouco movimentado porque o acesso era meio trabalhoso, e o fato dele ser meio vazio deixava ainda mais interessante.

A sumaúma era uma árvore imponente. Não tanto quanto as araucárias gigantes, mas ainda sim alta, principalmente por ficar praticamente no centro daquela colina. Já o seu tronco era sim maior. Bem maior. As crianças gostavam de batucar suas raízes sobressalentes porque tinham som de tambor que ecoava para muito longe. Ficavam empoleiradas sobre elas. Principalmente Eichler.

Breno olhava a árvore com um misto de nostalgia e rancor. Conferiu bem os arredores para checar se realmente estava sozinho na colina. Alcançou sua adaga de na bolsa e não teve muito trabalho para fazê-la alhear. Ainda quando deixava sua postura pronta, o fio já se estendia até ficar do tamanho de seu antebraço e sentiu aos poucos o peso na mão aumentar. Da última vez que esteve aos pés da sumaúma foi quando conseguiu transformar a adaga em espada pela primeira vez. Antes disso, todas as tentativas tinham sido fracassadas.

Alhear uma adaga era um rito importante ao feiticeiro. Transformar objetivos, mesmo aqueles enfeitiçados para esse objetivo - como as armas - exigia um conhecimento e poder que só se desenvolvia a partir da adolescência, normalmente após o início da puberdade. Mesmo momento em que se descobria para qual elemento seus feitiços se inclinariam.

Breno ainda não sabia nada sobre sua inclinação, mas sentia uma predisposição específica desde a morte de Eichler.

Além da lâmina ter se esticado à espada, ela também ardia, quente como fogo. O ar úmido virava vapor ao redor do fio. Breno sentiu todo o seu calor e ódio saírem do corpo e irem diretamente para a arma que empunhava. Mas desta vez não temeu a lâmina, nem seu poder. Mesmo da última vez tendo queimado todo o seu cabelo sem querer num golpe desajeitado.

E então deu o primeiro golpe numa das raízes. Apesar do calor da espada ser o suficiente para queimar a pele, não afetava tanto a madeira milenar e mágica da sumaúma. Fazia nela apenas riscos. A lâmina não atravessava, apesar de afiada. Batia feito metal com metal e fazia ecoar um som abafado por quilômetros adiante.

E ver o seu ínfimo efeito sobre a árvore acendeu ainda mais rancor no garoto. Deu mais um golpe, depois outro e mais outro. Nenhum deles o suficiente para causar mais danos, apesar dos seus gestos violentos e carregados. O mais forte deles penetrou de leve a madeira e deixou a espada fincada e presa. Custou retirá-la do domínio da sumaúma e, quando conseguiu, tinha ainda mais ódio para descontar nela.

Empoleirou-se nas raízes mais altas para se aproximar do tronco. Queria feri-lo, cortá-lo, sangrá-lo. Mas a postura vacilante o desequilibrou. Tropeçou para trás e caiu de costas no vão entre duas raízes. A espada voou para o outro lado e quando atingiu o gramado já era uma adaga pequena e fria.

Breno se conteve em ficar ali mesmo onde se espatifou, escondido. Colocou-se a chorar um choro amargo porque as raízes o abraçavam e escondiam suas fraquezas contra a própria sumaúma e da cidade abaixo deles.

Logo Breno se deu conta de que o momento favorito dos seus dias era a saída da escola. Claro que também por causa do fim de mais um dia cheio de aulas e treinamentos. Mas, principalmente, porque ele ia direto para a casa de Eichler esperar que sua mãe saísse do trabalho para buscá-lo. Enquanto isso, os dois garotos ficavam brincando no quarto ou lá fora.

Breno e Eichler desciam a rua do Grupinho a pé e eram recebidos com um café da tarde reforçado. Café passado na hora com leite recém ordenhado da vaca da vizinha. O cardápio variava todo dia e o preferido dos dois garotos era o pão doce coberto com creme e raspas de coco ou qualquer coisa que tivesse chocolate. Em alguns dias recebiam a tarefa de passar na padaria da esquina de cima para trazerem carolinas ou algumas tortas.

Aquela mesa farta era para matar a fome dos dois, mas também para que suas mães mantivessem o ritual de anos de tomar café da tarde enquanto conversavam na copa. Os dois garotos não costumavam prestar muita atenção no que elas falavam, mas tinham papo por mais de horas. Os meninos deixavam as duas proseando e corriam para aproveitar o final da tarde. Sempre torcendo para que a conversa das duas nunca se acabasse.

Da mesma forma que o momento mais feliz do dia de Breno era chegar na casa de Eichler, o mais triste era quando sua mãe gritava lá de dentro “Breno, tá na hora de ir!”. Os dois interrompiam o que estavam fazendo, tristes, e corriam implorando para que ela ficasse mais um pouco. Só mais um pouquinho. Normalmente ela cedia. Não podia resistir. Achava uma bênção eles terem se tornado amigos tão próximos depois de terem vindo ao mundo no mesmo dia, quase na mesma hora.

Quando nasceram, cada uma delas ganhou não apenas um filho, mas uma nova amizade uma na outra. E os dois bebês já nasceram com uma parceria garantida.

Mas nem sempre foi assim. Conforme os dois meninos cresceram, passaram a conviver mais. Moravam poucas quadras uns dos outros, então a rotina era fácil. Mas já no início da infância, Eichler e Breno demonstravam que não se bicavam tanto assim. Viviam se frescando e brigando por pouca coisa, se batiam e importunavam um ao outro com provocações e implicâncias. Tinha vezes que entravam tanto em atrito que as mães preferiram mantê-los longe. O plano de matriculá-los no mesmo maternal foi por água abaixo.

Até o dia em que Breno, com seis anos, pegou catapora de feiticeiro e precisou ficar isolado em casa por quase duas semanas. Estava agonizando de tédio, coceira e espirros de purpurina. Ficava trancado e sem poder sair na rua para brincar como fazia quase sempre. Mas sua mãe sabia de uma alternativa.

Eichler também havia pego a doença e estava de repouso. Despretensiosamente, as mães marcaram um café da tarde e Breno ficou feliz por finalmente poder sair de casa, mesmo que receoso por ter que ver o azedo do Eichler.

Breno ficou acuado ao lado da mãe na mesa do café e ouvindo com desinteresse a conversa entre as duas. Já Eichler se manteve a maior parte do tempo no seu quarto e saiu apenas para comer o pão com queijo derretido de todos os dias. Até que sua mãe o chamou e sugeriu que ele levasse Breno para seu quarto. O garoto pareceu não estar muito contente com a ideia, mas cedeu. Depois de tanto tempo isolado, até Breno poderia servir de alguma companhia.

Os dois foram quietos até o cômodo ao lado e trocaram poucas palavras de início. Eichler não sabia bem como proceder, então se encolheu na cama abaixo da janela e deixou Breno sentado na cadeira da escrivaninha enquanto analisava o ambiente. Era repleto de brinquedos e principalmente figuras de ação. Mas foi quando bateu o olho na pequena TV de tubo que ficou realmente empolgado.

Breno admirou o Super Nintendo com os olhos brilhando tanto que Eichler não conseguiu deixar de notar. Aquilo era uma raridade naquele lado. Feiticeiros não ligaram tanto pras tecnologias e cacarecos dos humanos, principalmente os mais velhos. Um primo meio distante de Breno também tinha um videogame igual, mas não o deixava nem tocar nos controles, então ele se contentava em ficar assistindo-o jogar de longe.

— Quer jogar? - Eichler finalmente fez a pergunta que o outro garoto queria tanto ouvir.

Tímido, Breno fez que sim com a cabeça e esperou o dono do videogame prepará-lo para jogar. Eichler sentou no pé da sua cama, ficando a pouco menos de dois metros de distância da TV, e chamou Breno para fazer o mesmo.

— Eu tenho Super Mario World - Eichler explicou mexendo na caixa de sapatos com algumas fitas de jogos -, Digimon, Super Bomberman, X-Men…

Breno não precisou ouvir o resto da lista. Escolheu direto a última opção com empolgação e Eichler assoprou logo a fita para começarem a jogar. Breno segurou o controle com uma alegria que não sentia há dias e os dois garotos cataporentos jogaram em silêncio por horas até as mães decidirem chamá-los. Aquela foi a primeira vez de muitas que Breno insistiu para que eles ficassem apenas mais um pouquinho.

Depois desse dia, Breno passou a cobrar sua mãe para irem visitá-los mais vezes e Eichler passou a lembrar a sua mãe de convidá-los de novo porque poucos de seus amigos se interessavam pelo videogame, então jogava sozinho na maioria das vezes. Eles preferiam brincar na rua. Não que o garoto não gostasse, mas também gostava de ficar enfurnado no quarto um pouco.

Os dois passaram a explorar todos os jogos da caixa de sapatos, até que Eichler sugeriu de brincarem de X-Men, só que na rua. Podiam escolher os personagens e reproduzir os golpes que eles davam durante as lutas. E já emendar com passeios ao campinho no final da rua para soltarem pipa e jogar bets com as outras crianças da vizinhança.

Aos poucos aquilo virou rotina. Uma hora e pouco jogando videogame e depois saíam para a rua encontrar mais gente para correr até cansar. A cada café da tarde, os dois viraram de fato tão amigos como se nunca tivessem tido algum atrito antes.

Finalmente começaram a estudar na mesma escola e a convivência intensificou ainda mais a amizade. Havia quem os confundisse com irmãos gêmeos. Tinham a mesma estatura, riam das mesmas coisas, dividiam as mesmas opiniões e gostos e estavam sempre colados porque chegavam e iam embora juntos.

Depois da aula, desciam para a casa de Eichler repetir a rotina de brincadeiras. De vez em quando a tia ainda lhes dava algumas moedas para comprarem doces na padaria da esquina. Mas preferiam ir guardando alguns trocados juntos para pedalarem até o centro e comprar algum quitute que valesse a pena.

Adoravam a coxinha com massa de mandioca que a Dona Nena vendia numa barraca na praça. Eichler se esbaldava no ketchup aguado e doce, típico de lanchonete. Depois iam tomar sorvete. Aquele era o ápice da semana.

Ambos eram viciados em qualquer doce que fosse extremamente chocolatudo. Mal olhavam ou se interessavam por cremes, frutas, balas ou pirulitos. Corriam para o balcão e pediam duas bolas de sorvete de chocolate cada. Até que um dia decidiram começar a combinar chocolate com outros sabores. Eichler se apaixonou por chocolate com pistache. Já Breno ficou encantado por chocolate com pimenta. E nunca mais pediram outros sabores. Tomar sorvete enquanto olhavam o movimento da pracinha central era um programa e tanto para os dois.

Conforme cresciam, foram conseguindo permissão das mães para saírem dos limites das quadras ao redor de suas casas ou do centro. O skate velho do irmão de Eichler passou a ser uma opção para irem mais longe e logo aprenderam sozinhos a andar. Numa das primeiras tentativas, ouviram um badalo alto por perto e, quando correram para conferir o que era, encontraram a Pista de Skate Perdida. Foi um dos melhores dias de suas vidas.

Aquilo que eram apenas encontros diários se desenvolveram em uma vida compartilhada com afinco. Eichler e Breno dividiram até algumas festinhas de aniversário. A mãe de Breno levava Eichler para viajar com a família, e a mãe de Eichler adorava que Breno dormisse na sua casa para fazerem sessões de cinema na sala quando o filho mais velho estava os visitando. Breno passava várias tardes na casa do amigo porque sua mãe cobria alguns plantões de emergência no hospital. Olhando em retrospecto, Breno lembra com carinho do momento em que percebeu que deixou de ser uma visita na casa de Eichler para experimentar a rotina daquela família que também considerava sua.

Os dois brincavam de escorregar na área quando a faxineira lavava o quintal, ficavam rodeando as mães enquanto preparavam bolos para comerem. Tiravam cochilos da tarde juntos. O pai de Eichler os levava para comer cachorro-quente na praça todas as terças, depois de buscá-los na natação. Breno era apaixonado pelo pequeno trailer de lanches que ficava no final da rua. O cheiro dos ingredientes tostando na chapa eram um deleite.

Aos poucos os dois garotos pegaram gosto por explorar as trilhas das florestas ao redor. Breno compartilhava tudo que aprendia nos encontros de escoteiros e Eichler ouvia com admiração todo aquele conhecimento sobre os fascínios das matas mágicas. Na verdade, achava qualquer coisa que Breno dissesse extremamente interessante.

Eichler ganhou um mapa gigante de Àttinos de seu irmão e colou na parede de seu quarto. Nele anotava os lugares que já tinha ido, os que queria explorar e também cada cantinho favorito que descobria. Antes de sair de casa, analisava meticulosamente o mapa. Fosse para sair em expedições de pesquisa com o irmão biólogo, brincar de “conquistar” territórios com Breno ou só varzear com os seus novos amigos do bairro.

Quando os caminhos de Valen, Pólen e Julian se encontraram com os deles, a Malta já se organizou e passou a aproveitar ao máximo o que Àttinos podia oferecer. As férias se tornaram um momento sagrado para eles desde que se uniram para vencer o Campeonato Varzeano de Bets do Campinho.

Mesmo com mais gente para dividir as atenções, Eichler e Breno nunca se deixaram de lado.

No último ano, Breno descobriu que a cada dia Eichler era capaz de despertar nele sensações que não sabia medir bem o que eram. Apenas sentia que lhe faziam bem e isso bastava.

Percebeu que se enchia de satisfação quando fazia Eichler gargalhar e que esse possivelmente seria o seu novo som favorito. Amava ver o rosto do amigo encher de lágrimas depois de dizerem alguma bobagem de baixíssimo nível moral.

Transbordava de orgulho quando Eichler o escolhia para um trabalho na escola, quando o priorizava numa brincadeira, ou o preferia no lugar de outro para ser parceiro de jogo na lan house do bairro. Mesmo que aquelas atitudes fossem óbvias vindas dele.

Ficava feliz se via Eichler lembrando de algo sobre ele. Pedindo para a mãe não botar cebola na comida quando Breno ficasse pro almoço. Pegando chocolate amargo ao invés de ao leite. Preferindo ir à banca de skate ao invés de bike porque Breno ainda não sabia pedalar. Deixando ele sempre escolher Wolverine no videogame. Cortando o assunto da rodinha quando entravam em temas familiares. Confiando a ele a passagem secreta do seu quarto que dava entrada e saída direto para a rua. Deixando o abajur aceso durante a noite porque não queria que o amigo passasse medo.

No último ano, Breno queria passar cada vez mais tempo no enlace dos abraços que trocavam. Começou a prestar atenção nos seus cheiros, nos seus gestos. Começou a notar que sua boca era de riso frouxo e os lábios rosados pareciam macios e sempre estavam brilhando. Viu que uma das presas do dente era menor que a outra e dava um certo charme pro riso de canto de boca que esboçava sempre que estava meio sem jeito.

Passou a admirar ainda mais o jeito amigo e interessado de Eichler. Não conseguia entender como alguém poderia ser tão bacana quanto ele. Não havia uma única pessoa na cidade que não gostasse dele, que não risse de suas piadas, não se encantasse com sua educação e não quisesse aproveitar sua companhia agitada e alegre, ou não ter as conversas na mesma medida profundas e divertidas que só ele sabia tocar. Ser o melhor amigo de Eichler era realmente uma sorte danada.

Breno gostava quando sentavam lado a lado, quando davam as mãos para correr, quando subiam nos ombros para alcançar um muro ou galho de árvore, quando davam as mãos num toque após um plano bem sucedido ou numa promessa de dedinhos e quando Eichler passou a pedir cafunés. Porque gostava quando se relavam e do fato de um toque ser algo tão íntimo com os outros, mas muito natural entre eles.

Descobriu que seu cabelo era macio e levantava cheiro de camomila quando mexido. Que Eichler amava ser acariciado por qualquer um, mas era apenas para Breno e Pólen que pedia diretamente.

Sentia uma conexão forte entre eles quando uma simples troca de olhares era o suficiente para se comunicarem, principalmente quando estavam entre outras pessoas.

Que nunca sentiram vergonha quando se trocavam na frente um do outro ou quando fossem brincar no lago porque a intimidade não era maliciosa e nem um tabu, apenas aconchegante e libertadora.

Nos últimos dois meses, percebeu que seu corpo começou a reagir ao de Eichler, sobretudo quando eles se conectavam por gestos, gostos e convivências. Via o acolhimento quando falavam de vida e eram ouvidos com afinco e interesse mútuo que só um podia oferecer ao outro. Que mesmo Eichler e Breno passando a dividir suas vidas com os amigos da Malta de forma tão intensa e verdadeira, nunca deixaram de se dedicar um ao outro. Não cadecia se esforçar para isso. Eles precisavam, então cumpriam.

A mãe de Breno costumava dizer que a gente sabe quando uma amizade é importante quando não nos vemos mais sem alguém. Que nossos sentimentos e atitudes se voltam violentamente para manter aquele laço custe o que custar. Porque fazia parte da gente, não é algo que exista longe de nós.

Mas Breno nunca entendeu se o que estava começando a sentir por Eichler era um nível até então desconhecido de amor de amigo, ou um amor de amor que nunca tinha experimentado. Nem sabia o que era aquilo de amor que tanto ouvia dizer. Não sabia o sentir, o cheiro, o gosto e a dor do amor. Era confuso tentar entender se aquilo tudo era o sentir de seu talvez primeiro amor. Ou se era assim que se amava alguém como se deve amar sua família. Mas quando ouviu o canto sofrido do urutau que chorava pela perda do primeiro amor, talvez tivesse simpatizado um pouco melhor com o que tinha no peito da ave triste.

Talvez seu amor tivesse sentido do toque de um cafuné, cheiro de camomila, gosto de pistache e pimenta, e dor de ver partir e ficar sem.

Breno continuou encolhido e chorando aos pés da sumaúma que odiava tanto por ter tirado a vida de Eichler numa queda tão boba e violenta, mas sem saber que ele estava exatamente no mesmo vão onde sua vida caiu e deu o último suspiro.

 


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