No caminho escrita por Daniela Lopes


Capítulo 1
Capítulo único




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/811396/chapter/1

Ulisses não gostava de dirigir à noite. Mesmo com tempo bom, céu sem nuvens e uma temperatura agradável, seus sentidos sempre o deixavam em alerta. Desde que se mudou para uma casa no interior, longe da cidade, o incômodo nunca deixou sua mente.
Fosse no meio urbano ou selvagem, sentia que a noite não era confiável. Era uma pessoa solar, diurnal. Gostava da claridade e das coisas sempre visíveis. Em nenhuma célula de seu corpo de 43 anos, existia a possibilidade de gostar do mundo noturno. Exagerado? Ele não se importava.
        Começou com a possibilidade de trabalho em casa, longe do escritório barulhento, cheio de gente estressada e com pressa. Reuniões podiam ocorrer online ou presencialmente a cada vinte ou trinta dias, mas sempre com duração máxima de duas horas. Findo o tema discutido, passava no supermercado e seguia para casa, o sol da tarde iluminando o caminho, as luzes atravessando a copa rala das árvores, os longos troncos oferecendo, ao longo trajeto, uma paisagem bucólica.
     Ulisses gostava disso. Sentia-se como num sonho, cuja paisagem evocava o divino e o sagrado. O homem apreciava essa imagem e aproveitava o máximo a paz do caminho pra casa. Então a tarde ocupava seu lugar e o advento da noite despertava nele temores primitivos. Aqui estava ele, 22 horas de uma sexta-feira, dirigindo na única estrada que levava ao vilarejo para onde mudou-se com mulher e dois filhos
O carro virou uma acentuada curva e Ulisses apertou o volante até sentir os dedos doerem. Isso acontecia por todo o trajeto e o homem ria, nervoso, da maldita quantidade de curvas daquela estrada. Então uma reta e ele viu a tela do celular acender. A mulher mandando mensagem:
—Comprou as pilhas?
    Ulisses bufou. Era justo aquilo que havia esquecido e ele fechou os olhos um segundo. Nesse segundo, os pneus do carro atingiram alguma coisa e o carro elevou-se no asfalto uns centímetros, fazendo o volante mover-se sob as mãos do motorista de forma desconcertante. O homem freou bruscamente e ficou imóvel por alguns segundos:
—Puta merda! Puta merda! Que foi isso?
     Ele virou-se e nada viu na estrada. Nada que pudesse fazer seu carro se mover daquele jeito. Ainda incrédulo, abriu a porta e saltou para fora, contornando o veículo e conferindo embaixo dele e poucos metros à frente. Ao seu redor imperava o silêncio e a escuridão da mata. Era desconfortável e assustador, mas seu cérebro ainda não tinha digerido o que aconteceu:
—Vai que eu passei por cima de algum animal e ele fugiu para o mato... E... Se estiver ferido? Eu devia fazer algo a respeito?
     O vento fustigou os cabelos do homem, que caminhou um pouco até o ponto onde sentiu a estranha ondulação no asfalto. Nenhum sinal de sangue. Nada que respondesse às dúvidas de Ulisses.
Uma vez de volta ao controle do carro, ele continuou seu caminho, mas seus olhos ainda buscavam a estrada atrás dele. Uma última olhada antes de enviar aquele evento aos porões de sua mente, onde deveria ficar para sempre esquecido.
     A rotina do home office ocupou seus pensamentos e Ulisses deixou de lado o incômodo daquela noite. A cidadezinha escolhida para viver com a família oferecia tranquilidade e desapego. Não se arrependeu da decisão de vender o apartamento e encontrar um lugar onde teria qualidade de vida. Só não curtia ter que atravessar uma rodovia embutida no meio de um mar de árvores, toda vez que o chefe inventava uma reunião presencial.
     Aquela manhã estava particularmente bonita. A brisa fresca entre as árvores trazia o perfume da mata e Ulisses deixou a janela abaixada, respirando o máximo do ar puro. Seus olhos iam de um ponto a outro da floresta procurando por vida selvagem, mas curiosamente ele não viu ou ouviu nada. Insetos, pássaros ou animais maiores nunca atravessaram a estrada ou se esgueiraram pelo matagal, seja lá qual fosse o horário. Era só o som do vento e das árvores balançando de um lado a outro. O gemido da madeira e o farfalhar dos galhos carregados de folhas.
     Então, do lado oposto da estrada ao assento de Ulisses, ele viu algo. Uma ravina se estendia até um ponto na mata onde percebeu uma forma escura e grande. Ulisses esticou o pescoço e a imagem ficou um pouco mais nítida. Era um carro e isso o fez frear. Olhou para a estrada e desceu do carro, caminhando até a beira da ravina e avaliando o veículo abandonado.
A descida até lá não era convidativa. O barranco que se estendia ao longo da vala parecia instável. A distância entre as margens também não era segura para um salto e a inclinação do terreno dizia ao homem que voltar seria ainda mais trabalhoso. Cobriu com a mão a claridade sobre os olhos e avaliou o veículo abandonado. A carroceria não parecia avariada por algum acidente e não havia sinais de ter sido “depenado” por algum ladrão. Então o que estava fazendo ali, no meio do mato e como foi parar lá sem ficar preso na ravina que separava a estrada da mata fechada?
      De volta ao seu carro, Ulisses continuou seu trajeto para a reunião na cidade, torcendo que dessa vez fosse mais rápida. Assim que pôs os pés na empresa, foi avisado que o chefe atrasaria. Suas esperanças de chegar cedo em casa desceram pelo ralo. Mandou uma mensagem para a esposa avisando. E lembrou das pilhas esquecidas na viagem anterior.
     Ao fim da reunião, Ulisses foi o primeiro a deixar a sala. Não queria perder tempo com confraternizações ou conversa fiada. Não quando tinha uma longa estrada para atravessar. O supermercado estava quase fechando quando o homem pulou porta adentro. Os funcionários se entreolharam e um suspiro coletivo foi ouvido. Outro cliente retardatário que ia travar o fechamento de um dos operadores de caixa. Ulisses podia ler o pensamento deles só de olhar suas expressões. Pigarreou e acenou:
—Boa noite! Vou ser rápido! Só pilhas e leite!
    E foi mesmo. Em treze minutos já estava pagando sua compra e saindo do local, feliz por ser um cara legal e não um “empata-foda” miserável. Abriu a porta do carro e sentou-se ao volante. Olhou ao redor e suspirou. A estrada o aguardava.
     O celular marcava 18 horas e Ulisses bocejou. A monotonia daquela parte da estrada fazia o homem piscar mais do que deveria, mas ele manteve as mãos firmes no volante. Se o chefe fizesse as reuniões pela manhã, seria perfeito, mas o homem escolhia a tarde porque era conveniente para ele. E sempre atrasava, mas era o chefe, então os funcionários não tinham muito o que falar ou fazer. Talvez fosse a hora de sair desse trabalho e ver algo novo. Ulisses bocejou de novo. Era preguiçoso demais para sair da mesmice do seu emprego. Aventurar-se no mercado de trabalho com família e filhos? Nem pensar. Isso era para os mais jovens.
     Alguns quilômetros rodados e Ulisses passou no ponto da estrada onde viu o veículo abandonado. Virou a cabeça e lá estava a forma escura do carro, entre as árvores, quase oculto da vista de passantes. Mas enquanto voltava sua atenção para a estrada, pela visão periférica, viu um movimento ao lado do carro e freou bruscamente. Era uma pessoa?
    Ulisses respirou fundo e abriu a porta. Não havia nada perto do carro abandonado. Aquele ponto da mata ainda recebia a última luz do entardecer e o vento soprava entre a vegetação. Nada. O homem balançou a cabeça e suspirou. As sombras da mata pregando-lhe peças. Um tempero a mais para alguém que já não curtia muito aquele caminho a certa hora da tarde ou da noite. Dando-se por vencido, entrou no carro e retomou o caminho pra casa, mas, para sua surpresa e desespero, uma figura surgiu no meio da estrada, pouco atrás de seu carro, fazendo o homem frear novamente.
     Ulisses travou. O coração disparando como um cavalo a galope morro à baixo, os lábios apertados que quase se machucavam contra os dentes. A figura estava parada, imóvel e escura, mal iluminada pelos faróis traseiros do carro, mas o motorista sabia que era uma silhueta masculina. Abriu a porta e ergueu meio corpo para fora:
—Ei! Companheiro? Está... _Ulisses fechou o punho, se arrependendo do que ia perguntar_ Precisando de ajuda?
     A figura balançou-se bem devagar, de um lado para outro, então avançou lentamente e alcançou o carro, ficando agora visível às luzes do veículo. Era um homem mais velho, cabelo longo pouco abaixo das orelhas e um tanto desgrenhado. As roupas pareciam desgastadas pelo tempo, com alguns rasgos verticais ao longo das mangas longas do moletom e da calça jeans. Ulisses notou a barba por fazer e os olhos um tanto baços do homem:
—Amigo? Se sente bem?
     O estranho pestanejou e parece ter finalmente notado Ulisses:
—Uh? Ah... Eu... Que dia é hoje?
—Terça-feira.
—Nossa! Me dá uma carona?
     Ulisses apontou para a mata:
—Aquele carro abandonado... É seu? Era o senhor do lado dele agora a pouco?
     O homem franziu a testa:
—Carro? Onde você...
     O semblante do senhor mudou de repente e ele olhou para a mata:
—Oh, meu Deus! Maria e as meninas! Maria e as meninas!
     Então correu de volta para o ponto da estrada que ficava na direção do veículo abandonado e desceu rumo à ravina seca, fazendo Ulisses segui-lo, desesperado:
—Moço! O que aconteceu? Espera! Não...
     Sem dar ouvidos, o homem saltou e alcançou a outra margem, andando desembestado na direção do carro na mata. Quando o alcançou, agarrou a maçaneta da porta do motorista, gritando:
—Maria! Maria! Onde estão...
      Então parou de gritar e ficou olhando para o interior do carro, enquanto Ulisses andava de um lado a outro da margem oposta do barranco, mãos segurando nos lados do pescoço, tentando entender o que estava acontecendo:
—Senhor! Senhor! Deixe-me levá-lo a algum lugar pra pedir ajuda! Está muito escuro e não vamos...
    O homem virou-se para Ulisses. Seus olhos muito abertos e perdidos em algum delírio que fazia seu semblante, quase oculto naquela escuridão, ainda mais perturbador. Ele riu:
—Não restou ninguém aqui...Oh, Jesus!
      Ulisses parou de andar quando escutou um som vindo da mata, poucos metros do carro onde o estranho estava parado. Um misto de folhas secas, galhos estalando e algo se arrastando pesadamente, mas num crescente perturbador até se tornar um pandemônio.
A escuridão da mata tornou-se mais densa quando algo grande e cumprido avançou contra o veículo e o estranho, fazendo Ulisses recuar pela grama e cair sentado no asfalto, enquanto uma massa escura e disforme disparou entre as árvores. O som de metal se retorcendo e vidro quebrando ecoou, seguido de um urro quase animalesco que fez o sangue de Ulisses gelar nas veias. Então a mata silenciou e não havia sinal do veículo abandonado ou do estranho homem que Ulisses tentou ajudar.
      Ainda sentado no chão, ele permaneceu algum tempo com os olhos grudados na mata à sua frente. A respiração suspensa e todos os pelos de seu corpo eriçados o mantinham em um tipo de transe, até que soltou um gemido e ergueu-se de uma vez, correndo para o carro parado a poucos metros de onde estava. O tremor em suas mãos atrapalhou sua tentativa de ligar o veículo. A visão ainda fresca em sua mente levando seu rosto a tiques involuntários da boca e dos olhos. O silêncio ao seu redor ainda mais opressivo que antes.
Ulisses pisou fundo no acelerador assim que o motor vibrou. Disparou estrada à fora sem se preocupar com as curvas e a possibilidade de encontrar algum carro na direção contrária. Não sabia o que tinha acontecido quilômetros atrás e não entendeu o que viu, só sabia que algo terrível aconteceu ao estranho homem. Sua cabeça tentando montar um cenário lógico, mas sem sucesso.
      Chegou em casa por volta das 23 horas. A esposa o recebeu na varanda, preocupada e o estado de Ulisses a fez exclamar:
—Que te aconteceu, homem? Que cara é essa?
      Ele passou por ela com a mão no estômago. Uma terrível náusea derivada da adrenalina o fez correr para o banheiro e por para fora todo o lanche da reunião. Só depois de algum tempo, acalmou-se e sentou no chão do banheiro, buscando regularizar sua respiração. Fechou os olhos. E se aquilo tudo fosse fruto de sua imaginação? Seu nervosismo em relação à estrada à noite?
     Sabia que a margem da ravina, oposta à estrada era impossível de atravessar. Que um carro nunca chegaria ao meio da mata sem cair na vala. Que o homem da estrada era velho demais para saltar tão alto e tão rápido a ponto de alcançar o carro em movimento de Ulisses. Sim. Era isso. Puro delírio de uma mente sugestionada pelo temor na noite e do escuro. Ulisses era um homem prático e vivido. Não tinha que alimentar medos infundados como aqueles.
      Esperou um pouco mais sentado ali, meditando. Despiu-se e decidiu tomar um banho quente para relaxar os músculos tensos. Logo depois, foi ter com a esposa sentada no sofá da sala, emburrada pelo pouco caso que ele lhe fizera. Ulisses tocou o ombro dela e afagou:
—Vai ficar de cara fechada pra mim?
—Quem fez cara feia pra mim foi você. Que bicho te mordeu?
—Acho que comi algo estragado na cidade. Precisava por pra fora...
—Hum. Quer jantar?
—Não, obrigado. Vou ficar bem...Acho que vou dormir agora. Vem pra cama?
—Verei um filme. Vou em seguida...
      Ulisses beijou a mulher e seguiu para o quarto, deitando-se apenas de cueca. A maciez do colchão foi um bálsamo para seu corpo ainda tenso, mas sua mente ainda não estava em paz. O estranho evento na estrada passava como um filme em sua cabeça e o homem tentava trazer sentido a tudo aquilo. Quando a mulher entrou no quarto, Ulisses já estava adormecido, mas ela notou que ele tremia levemente. Cobriu-o e aconchegou-se ao seu lado, dormindo em seguida.
     Durante o restante do mês, Ulisses ocupou-se em trabalhar e cuidar de pequenas coisas domésticas. Levava os filhos à escolinha e voltava para casa, para seu laptop, dando continuidade às planilhas e relatórios. Uma rotina que ocupava sua mente e evitava que voltasse a pensar naquela noite. Quando buscou os filhos na escola ao entardecer, passou num pequeno armazém conhecido pelos moradores da localidade. Era dos antigos, onde o dono vendia de tudo um pouco e, sempre que podia, trazia da cidade o que o cliente pedisse fora do estoque.
       Ulisses comprou pirulitos para os filhos e canetas para si. O vendedor olhou o homem e sorriu-lhe:
—Que tal nosso vilarejo, moço? Muito tranquilo para um homem da cidade como o senhor?
     Ulisses sorriu:
—Tranquilo o suficiente pra mim, garanto! Mais alguns anos na cidade e eu teria enfartado!
—Então está bem instalado! Aqui o tempo passa diferente e isso não nos incomoda!
—Verdade! Acho que era disso que eu precisava! Gosto daqui! Do ar puro e do silêncio pra dormir... Só a estrada pra cá me dá nos nervos às vezes!
      O vendedor olhou Ulisses e ergueu uma sobrancelha:
—A estrada? Como assim?
      Ulisses notou a fisionomia do vendedor mudar:
—Eu vou para o centro pelo menos duas vezes por mês e só volto à noite... Acho que fico um pouco nervoso com a escuridão e aquela mata fechada e silenciosa! A imaginação pode pregar peças na gente, não? Ver coisas que não estão lá...
      O homem pigarreou e começou a limpar o balcão freneticamente, apesar do mesmo estar limpo. Ulisses mandou os filhos para o carro e voltou-se para o vendedor:
—Meu nome é Ulisses! Obrigado pela venda! Nos vemos por aí!
      O vendedor ergueu o polegar e acenou com a cabeça. Quando Ulisses sumiu de suas vistas, ele apoiou as duas mãos no balcão de madeira e bufou. Forasteiros tinham sempre a mesma narrativa, principalmente sobre a estrada. O vendedor fez o sinal da cruz e continuou suas atividades. Pensou que deveria esquecer Ulisses. Era o melhor a fazer.
      O homem dirigiu para casa. Os filhos sentados no banco de trás distraídos com seus doces e com o movimento da rua a caminho de casa. Ulisses ainda pensava no semblante do vendedor quando mencionou a estrada e a mata. Havia um leve tremor em sua mandíbula. Uma tensão nos ombros quando se apoiou no balcão e isso não aliviava a sensação de que algo estava muito estranho ali.
      A próxima reunião da empresa foi marcada e Ulisses olhou o calendário na parede. Estação das chuvas e frio avançando, o que tornava as estradas um tanto melindrosas. A mulher preparava algo doce no fogão e observou o marido parado diante do calendário. Ele estava pensativo, levemente curvado com o antebraço apoiado na parede, o que a levou a perguntar:
—Outra reunião?
      Ele virou a cabeça na direção dela:
—Outra...
—Mas...?
—Mas, o quê?
—Você! Parece um prisioneiro contando os dias pra sua execução! Problemas no trabalho? O chefe tá pegando no seu pé?
       Ulisses relaxou um pouco e aproximou-se da esposa:
—Meu chefe é um pateta vaidoso. Qualquer funcionário passa ele na conversa... É outra coisa...
—Eu até podia ler pensamentos, querido, mas estou ocupada preparando mingau pros meninos, então...
      Ele riu. Sua esposa tinha resposta pra tudo e era afiada, algo que ele apreciava desde o namoro. Beijou a nuca dela e apoiou a testa na parte de trás de sua cabeça, aspirando o cheiro de seus cabelos:
—Sabe que sou um cara pragmático e um tanto cético...
—Sim! Nem sei como te convenci a nos casarmos numa igreja!
—Você estava linda. Valeu a pena escutar todo o discurso do padre. Quando digo que não me surpreendo com certas coisas, falo sério, mas    uma coisa estranha aconteceu na minha volta da última reunião... Um cara no meio da estrada onde a mata é mais densa...
—Atropelou ele?
—Não! Eu ofereci ajuda, mas ele parecia perdido e atordoado. Falava de sua mulher e filhas e ainda tinha um carro!
—Minha nossa, Ulisses!
—Havia um carro no meio da mata, do outro lado daquela ravina seca que vemos na volta.
—Do outro lado? Aquele barranco é...
—Foi isso que pensei. Não tem como um carro atravessar ali sem cair e ficar preso.
—E o que o homem tem a ver com isso?
—Ele foi até o carro... Estava escuro e algo apareceu na mata fazendo um barulho bizarro, como se uma árvore estivesse sendo arrastada rapidamente, e o carro sumiu junto com o cara. Eu não entendo o que aconteceu...
—Você bebeu?
—Nada! Só refrigerante e sanduíches!
       A mulher desligou o fogo e virou-se para o esposo:
—Vai que teve uma indigestão... Você vomitou assim que chegou, lembra?
—Foi mesmo.
—Ponto final! Tenho certeza que sua fobia do escuro, aliada a maionese estragada ajudou a te pregar uma bruta peça! Chame os meninos! O mingau está pronto.
      Ulisses saiu dali para a varanda e olhou os filhos sentados no tapete estendido no piso frio. A tarde caía e as nuvens já se aproximavam do vilarejo, trazidas pelo vento. A chuva não tardaria a cair e o homem sentiu a tensão voltar ao seu corpo. Se o idiota do chefe marcasse outra reunião para mais tarde, ele ficaria num hotel e só voltaria para casa de manhã. Nada de estradas mergulhadas na escuridão dessa vez.
      Para a surpresa de ninguém, a última reunião do ano foi marcada para 14 horas e o céu ameaçava desabar a qualquer instante quando Ulisses deixou sua casa. Avisou a esposa que dormiria na cidade e voltaria para o café da manhã no dia seguinte, alegando o risco de dirigir com a tempestade na estrada à noite, algo que ela concordou. Resolvido o caso, Ulisses chegou à empresa com algum tempo para tomar um café e falar com os colegas. Assim que o chefe chegou, a tempestade caiu com toda sua força.
      O balanço semestral da empresa foi positivo e a reunião durou menos do que os funcionários esperavam. Satisfeitos e aliviados, decidiram se reunir num bar próximo para um happy hour entre colegas. As férias de fim de ano se aproximavam e só se veriam novamente depois das festas carnavalescas, algo que Ulisses desejava com todo seu ser. Como não ia voltar naquela noite, aceitou dividir alguns drinks com sua turma e relaxou.
      Deixou o bar por volta das 22 horas e seguiu para o carro, decidido a pernoitar numa pensão popular que ficava a poucos quarteirões da empresa. Tudo acertado e ele entrou no carro, já bocejando pelo efeito do álcool em seu corpo. O celular tocou em seu bolso e Ulisses viu o nome da esposa na tela. Atendeu e ouviu a voz angustiada da mulher:
—Amor? A reunião já terminou?
—Sim. Que foi? Tudo bem em casa?
—Não... A alergia do Duda voltou com tudo. Ele tá queimando em febre e o remédio dele tá no fim. Preciso também daquela pomada refrescante, lembra qual era o nome?
    Ulisses respirou fundo. Eduardo era o filho mais velho e, vez ou outra, era acometido por um tipo de alergia que deixava o garoto “empipocado” e febril, como catapora e sarampo na mesma tacada. O pediatra prescrevia alguns medicamentos, mas a coisa era do próprio corpo, então os pais precisavam vigiar o que gerava a reação alérgica:
—Dá pra esperar até amanhã? Ainda tá chovendo forte e a estrada...
      A mulher bufou:
—Eu não teria ligado se pudesse...
     Ele encostou a cabeça no volante. O álcool atiçando seu humor para algo nada bom, mas se conteve:
—Vou ver o que posso fazer...
—Dirija com cuidado, Ulisses...
     Ele riu e desligou:
—Estou quase bêbado, Noé decidiu passear de arca essa noite e ela me pede cuidado! Puta que pariu! Joguei pedra no santo!
     Ulisses dirigiu até um posto de gasolina e abasteceu o carro. Pediu um café amargo na lanchonete e comprou um energético. Próxima dali uma farmácia ainda atendia e o homem seguiu até lá. Tinha a receita do filho salva no celular e comprou o que a mulher pediu, além de analgésicos e uma pomada para coceira. Era tudo e ele voltou para o carro se sentindo mais ativo por causa do café. A bebida energética deixaria para uma parte da estrada, antes que o efeito da cafeína passasse. Ligou o veículo e respirou fundo. Estrada à noite no meio da tempestade.
    Passava da meia noite quando Ulisses alcançou o quilômetro onde os últimos eventos o levaram à descrença. Naquele ponto, perto da ravina, ele decidiu acelerar. Mesmo que a chuva e o vento atrapalhassem a visibilidade, o homem não queria arriscar ver qualquer coisa na mata ou na estrada. Pensou nas aulas de direção defensiva e bufou, aborrecido com a ideia de que, na prática, tudo era relativo.
     Então viu à distância a luz de faróis na direção contrária e sorriu. Outro solitário se aventurando por aquelas bandas, no meio de uma noite diluviana, ofereceu uma sensação de conforto a Ulisses e quando cruzou com o veículo, buzinou em solidariedade. O outro carro buzinou de volta e seguiu. Nesse segundo em que distanciaram alguns metros, Ulisses escutou o som de uma freada brusca e o impacto da carroceria de metal em algo sólido.
     Ulisses freou e virou-se de uma vez, percebendo que as luzes traseiras do outro carro se moviam de um lado a outro de forma estranha. O homem abriu a porta do carro, saindo para o frio e as lufadas de vento que moviam a chuva como um chicote açoitando sua pele. Ele viu o movimento das árvores ao longo da estrada, se agitando perigosamente sobre o carro, como se fossem se quebrar e cair na rodovia. Apesar do vento forte, nada justificava a força com que os troncos se inclinavam.
    De repente, Ulisses viu uma das árvores se inclinar até alcançar o asfalto e suas raízes romperem do solo como tentáculos de um polvo, uma de cada vez até que todas estivessem fora do chão. Uma vez caída, a árvore serpenteou até o carro e seus galhos seguraram a lataria, como dezenas de braços finos e grossos se movendo ao mesmo tempo. Ulisses percebeu que o veículo estava cercado por outras, algumas mais finas e compridas, mas igualmente soltas e ondulantes.
       Aquela dança macabra de troncos e galhos seguiu de volta para a mata, arrastando o veículo, cujo motorista gritava e buzinava. Haviam outras vozes, mas o som era abafado pelo vento, chuva e o farfalhar dos ramos. Impotente, o carro foi levado pela ravina e engolido pela escuridão entre as outras árvores que se agitavam de um lado a outro, a madeira gemendo e estalando, enquanto Ulisses distinguiu o som de vidro se quebrando e metal sendo esmagado, mas nenhuma voz humana outra vez.
       Então algo passou ao longo da estrada, se arrastando como uma gigantesca serpente, mas pela luz traseira do carro, Ulisses percebeu ser um tronco alongando-se e raspando o asfalto molhado até o lado oposto, para a maldita ravina. A visão arrancou um gemido doloroso da garganta do homem e ele entrou no carro de uma vez, batendo a porta e arrancando o veículo. Ele ouviu o estalar da madeira e acelerou. Pelo espelho retrovisor, notou que mais alguns daqueles troncos menores surgiram, cruzando a estrada, e recordou-se do dia que sentiu seu carro passar por cima de algo que supôs ser um animal na estrada.
     O terror apossou-se de Ulisses e ele acelerou ainda mais pela escuridão. O som dos estalos ainda era ouvido, como se toda a mata estivesse desabando atrás do carro em movimento. Seu pescoço estava travado, os olhos no asfalto à frente, mal iluminado por causa da chuva densa que caía, impiedosa. Então algo bateu na porta do passageiro e fez o carro derrapar no asfalto molhado, enquanto o homem tentava dominar o volante.
     O movimento brusco do veículo arrancou um grito de desespero de Ulisses, mas ele acelerou ao invés de frear e conseguiu recuperar a direção, desviando-se de outra coisa que avançava para o meio da pista, tentando barrar-lhe a passagem. Ele não ousou olhar no retrovisor, temendo perder o controle do carro novamente, mas seus ouvidos não o deixavam duvidar do que estava em seu encalço.
      Quando o carro alcançou um aclive da estrada e um descampado se abriu para Ulisses, os sons aterradores foram perdendo força e então cessaram. Ele ainda segurava o volante com tal força que os dedos haviam perdido a cor e sem perceber, seu lábio inferior sangrava. Nada disso incomodou o homem, que sentia como se tivesse atravessado as portas do inferno. A mente se recusando a digerir as imagens que dançavam em sua cabeça.
     O carro alcançou o vilarejo por volta das 2 horas da madrugada e a chuva reduziu sua força. O silêncio e a tranquilidade do lugar contrastavam com o que Ulisses sentia em seu peito. Raiva e pavor faziam sua boca amargar ao ponto da náusea, mas ele continuou dirigindo até o portão de sua garagem.
      Saiu do carro e olhou a porta do passageiro. Um amassado na lataria trazia fragmentos de madeira afiados como navalha agarrados ao metal. Ulisses não tocou neles. Voltou sua atenção para a casa segura e silenciosa. Seu coração bateu um pouco mais compassado e a tensão deixou seus ombros. Apanhou a sacola com os medicamentos e seguiu para a porta. O som da chave ecoou pela sala mergulhada na escuridão e ele caminhou levemente para não acordar a mulher.
      Colocou a sacola na mesa de centro e seguiu para o quarto. Então o telefone sinalizou uma mensagem, mas ele não lhe prestou atenção no momento. Queria ver os filhos e a esposa. Sentir que tudo estava bem e ficaria bem quando visse a claridade da manhã e sentisse o calor do sol em seu rosto. Que aquela merda de emprego fosse pro inferno. Nunca mais pisaria naquela estrada a noite. Abriu a porta do quarto de Duda e viu a cama vazia. Foi ao quarto do filho caçula e a encontrou do mesmo jeito. Lembrou-se que os filhos pediam para dormir com os pais e noites de tempestade, então seguiu para seu quarto.
     A porta rangeu de leve e na penumbra do cômodo, Ulisses congelou. A cama estava arrumada e o quarto vazio como o dos filhos. Seus olhos vasculharam a mesa de cabeceira e deu falta do celular da esposa. Saiu dali para os banheiros e voltou para a sala, sentindo uma leve tonteira. O celular em seu bolso pareceu pesado demais e o retirou, deslizando o dedo pela tela, indo até a caixa de mensagens.
     Três era o número de mensagens recentes. Uma por volta da meia noite e outras duas 20 minutos depois, quase sequenciais. Ulisses recordou que naquela parte da estrada, celulares ficavam sem sinal e leu o que a mulher o enviara: “_ Amor? Vai demorar muito? Duda está muito mal! A febre não cedeu e ele está delirando!” _ “Querido! Um vizinho se ofereceu para nos levar à Clínica mais próxima! Vou te mandar o endereço assim que chegarmos lá! _ Ulisses? Porque ainda não viu as mensagens?
      Ulisses deixou o celular cair no chão e cobriu a boca com força. Os olhos iam de um ponto a outro da sala, buscando algo que o homem não sabia. Abriu a porta e correu para o quintal, procurando em cada canto, a boca aberta num grito mudo e os olhos cada vez mais abertos, sentindo o corpo convulsionar levemente. Voltou para o carro e sentou ao volante, segurando a chave na ignição, mas sem se mover. Seus olhos no painel começaram a embaçar com as lágrimas que se formaram, abundantes, e ele inclinou-se, queixo apoiado no peito e um choro baixinho ganhando força até se tornar um grito de desespero e dor. 

O corpo de bombeiros encontrou Ulisses ao amanhecer, sentado à beira da ravina na estrada, olhando fixamente para a mata. Estava encharcado da chuva noturna, sujo de terra e grama. O carro estava estacionado a poucos metros dele com todas as portas abertas, por onde a chuva entrou e molhou tudo. Naquela madrugada, vizinhos chamaram a polícia quando ouviram os gritos vindos da casa da família de forasteiros, que se mudara poucos meses atrás para o tranquilo vilarejo. Alertaram também sobre um vizinho desaparecido.
          Quando o bombeiro tocou o ombro de Ulisses, este virou-se para o profissional e apontou para a mata:
—Está vendo elas? Está ouvindo as malditas?
       O bombeiro olhou a mata:
—Acalme-se, senhor! Sabe onde estão sua mulher e filhos?
       Os lábios de Ulisses se torceram num esgar de ódio e medo:
—Não restou ninguém... Está ouvindo? Ouça! Ouça!
      Ele riu. O som de sua risada congelando a equipe de bombeiros que olhava para Ulisses e depois para a mata. A chuva havia feito um grande estrago nas copas das árvores à margem da ravina. Folhas e galhos quebrados se espalhavam por toda a estrada naquele ponto onde Ulisses estacionou.
      Quando o prenderam à maca, ele olhou o profissional ao seu lado e sussurrou:
—Não se engane! Não se engane, cara! Elas fingem muito bem agora! Fingem muito bem! Mas tudo muda quando escurece nessa maldita estrada!
—Vamos levá-lo ao hospital, senhor! Fique calmo. A polícia vai encontrar sua família...
      Ulisses virou a cabeça para a pequena janela e ouviu o gemido da madeira ao vento. Um som que nunca mais esqueceria:
—Não vão achar nada...
—Porque diz isso?
—Porque aquelas coisas... Não são árvores...

Fim.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Este é um exercício de escrita com temática de horror e terror. Assim como escrever para crianças, acho bem
desafiador escrever sobre temas como comédia e terror, uma vez que ambos os gêneros tem o poder de tirar os
leitores de sua zona de conforto e mergulhá-los numa espiral de euforia ou medo profundo.
Ninguém fica insensível diante de uma situação absurda, seja cômica ou seja assustadora, por isso é um desafio
construir uma narrativa que nos leve aos extremos.
Espero ter assustado vocês.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "No caminho" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.