Treslocura: A Ribalta das Sociedades Anônimas escrita por Pablo Alves


Capítulo 1
através da fechadura




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 Todos os lugares

têm um pouco de magia.

 

 

Naquela noite, uma chuva fina se desenrolou sobre a pequena cidade de Prados dando início a um período em que grande volume de nuvenzinhas carregadas se precipitam sobre as casas do norte do Brasil e a outra parte do país ficará nos próximos dias debaixo do sol dourado de verão. Ceuci adorava essa época do ano, momento em que os adultos ficavam menos no trabalho da cidade ou do campo e voltavam mais cedo ao conforto de casa, o cheiro do café recém saído do fogo rolando pelos cômodos. Amava quando os mais velhos se metiam ao redor da mesa para contar história, mas, especialmente, poder ouvir o telhado de barro fritando com as gotas de chuva na hora de dormir e o frio ainda lhe alcançar a pele castanha após tomar dois cobertores. Deitou sobre o pufe gigante, perto da janela de jacarandá, olhou para o forro de madeira no teto do seu quarto. Não podia sentir o mesmo entusiasmo dos anos anteriores. Talvez isso tivesse a ver com o que aconteceu à Linda Falópio. Ela ouviu os pais comentando mais cedo. Todos os outros pais se mobilizaram nas buscas, alguém sugeriu ter visto um homem entrar na mata, mas ia sozinho e só levava um saco nas costas. A floresta abraçava toda aquela área e até para alguém muito experiente em trilha era extremamente fácil se perder. A senhora Falópio ficou inconsolável.

Forçou a mente a pôr de lado o acontecido. A água fazia caminhos na superfície lisa das vidraças, o ipê balançava do lado de fora com seus galhos estendidos feito dois braços na direção da janela. Duas leves pancadas no vidro lhe acordaram de vez dos devaneios. Olhou e achou o canto vazio. Muito estranho. Lembrou, sempre que Linda ia de visita costumava rodear a casa toda, movia duas tábuas que haviam soltado da cerca em um verão passado e dava duas batidas na janela. Era sua forma de dizer que tinha chegado. De repente, se percebeu avultada com os mesmos pensamentos de que tentara se livrar e, lentamente, voltando da distração, viu que estava de pé, encarando com curiosidade a pequena borboleta verde grudar no vidro embaçado da janela. Teve a impressão que os círculos pretos inscritos em cada asa aberta pareciam observá-la como dois olhos — e essa última ideia lhe roeu a espinha com um arrepio.

Puxou as pesadas cortinas sobre a janela e quando notou o que acabava de fazer se sentiu idiota. Entretanto, tinha resolvido cair fora do quarto — talvez, fosse achar aos pés da vó Eulália um lugar melhor, ela devia estar na cozinha agora. Deu de ombros e percebeu que aquela sensação continuava queimando em suas costas. Vinha um aroma saboroso até a porta, era brigadeiro, tinha quase certeza, e quem sabe a vovó não lhe daria o melado na colher para experimentar? Eram essas as circunstâncias dos pensamentos da garota quando, nos segundos seguintes, ocorreu a coisa mais estranha somada à sucessão de coisas estranhas daquele dia, pois, o vidro explodiu em vários pedaços sobre o assoalho depois que recebeu mais duas pancadas e algo pequeno, e delgado saiu rolando para baixo da cama como uma bola de beisebol.

 

 A ÓPERA DOS RATOS DO PORÃO

 

Uma meia saiu saltitando de debaixo da cama e enquanto tropeçava em raquetes de ping pong a coisa seguia lançando protestos. Ceuci observava.

— Meu Deus, quanta tralha!

— Oh! Desculpe, — arregalou os olhos — Sr. Meia?

— Meia? Que insulto, garotinha! Sou um Protetor.

O visitante se livrou do pedaço de pano com alguma dificuldade revelando uma criatura com uns quinze centímetros, a pele verde como folhas de mangueira e cabelo cor de canela.

— Chamo-me Dândi, — disse o pequenino. Ou talvez sirva o nome pelo qual alguns me conhecem no seu mundo: o apoiaueue, em carne (e por sorte) ossos.

Ceuci deitou com a barriga no piso para poder ver melhor a curiosa criatura, apoiando a cabeça sob as duas mãos. Achou o visitante muito engraçado. Observou. Tinha cabelos longos, o nariz adunco e um colar de ossos envolvendo o pescoço. Uma tanga amarrava-se na cintura e caia com duas fendas laterais sobre os músculos magros, mas bem marcados, das pernas. Era tudo o que vestia. Falava o tempo todo, porém, parecia que conversava consigo mesmo. Ceuci quis saber de onde vinha e se havia mais criaturas como ele, que ignorava, e no lugar das respostas para essas perguntas falava coisas como “O juramento foi quebrado. No entanto, a menina mearim corria imenso — não, não, transcendente — perigo. Ele já tem a criança Falópio, dessa vez está tão perto.”

A garota franziu a testa, desenhando no rosto uma expressão divertida e, de repente, imaginou como ficaria a pequena criatura numa casa de bonecas, ideia que não ousou colocar em palavras com receio de que o apoiaueue de alguma forma se ofendesse.

— Ei, que cara é essa?

Ela fez que não era nada.

O tiritar da louça caindo na cozinha a chamou de volta daquele momento em que passara tão absorta com a nova descoberta. Por um momento quis meter o pé lá fora e ver a confusão que acabou se iniciando.

— Temos de ir agora mesmo! — O homenzinho agarrou os cadarços do tênis com uma força desproporcional à sua pequena constituição física e por muito pouco a garota não caiu como um saco de batatas.

— Espera, lá fora está péssimo. Tem uma tempestade caindo.

— Tempestade? — assumiu um tom de gravidade. E como temesse qualquer coisa foi diminuindo a voz quase para não ser ouvido — Tem coisa muito pior lá fora. Espere!

Todavia, a garota não deu ouvidos e se dirigiu à porta quando vozes agitadas na cozinha se misturaram ao murmúrio de pratos quebrando no chão. Meteu a cara pelo buraco da fechadura e tomou um enorme susto ao ver o pai, sr. Rui Garcia, amarrado no chão com as costas apoiadas no armário da pia e a mãe sendo levada em direção ao quarto por dois ratos enormes.

Avançou um terceiro rato pelo flanco do sr. Rui, desamarrando-lhe a boca. Forçou um punhal gaúcho feito de prata, abaixo da mandíbula, sugerindo ameaças, caso fizesse algum alarde. Ceuci só apanhava palavras cortadas de toda a conversa. O pequeno monstrinho demonstrava impaciência, e, quando a sua voz explodia, momento em que as palavras podiam ser facilmente ouvidas, notou que ele se referia sempre a “criança”.

Tinha metido na cabeça que ia lá agora mesmo interrogar esse sr. Ratão. Estava decidida a fazer que se arrependesse por ter virado a sua cozinha de pernas para o ar. Depois, passou na mente a ideia de alguma rebelião entre os roedores do bairro depois que tio Álvaro inventou de pôr veneno para o controle de pragas. E concluiu que a solução era sacrificar uma de suas camisas para ser roída. Mas do lado de lá algo acontecia. O grande roedor sacou do pequeno alforje um punhado do que parecia ser um pó, pálido e azulado, despejando uma pequena nuvem sobre o homem que sumiu no mesmo momento. Deixou para trás somente as acordas, deslizando vazias sobre o chão.

Ceuci quis gritar, e depois, sentiu uma vontade enorme de vomitar o lanche que fez mais cedo. Procurava um pouco de calma tentando lembrar o que a mãe dizia sobre como agir em desastres e aquele com certeza era um, um dos maiores que já vira. Dândi continuava bem ali cheio de alguma excitação e resolveu que era o momento adequado de dizer alguma coisa.

— Os Onimaus pretendem chegar até você. Por isso precisam dos seus pais vivos. Temos que sair daqui, é a única chance de manter eles a salvo por mais tempo.

Do outro lado, um agrupamento de vozes suspendeu o ar com notas graves e melancólicas pulsando lentamente, depois, ficando mais rápido, feito um tambor. Os ratos estavam cantando enquanto avançavam à marcha lenta, fazendo o piso ranger alto através do corredor principal. Os olhos dela tinham agora um pouco daquela tristeza comum dos dias de inverno e uma melancolia assomava nas pupilas negras. Maneou a cabeça concordando em partir.

Dândi escalou até os ombros da garota e depois, tomando o pó de Pirlimpimpim, espalhou-o no ar. No mesmo instante, ambos deixaram para trás a solitária casa na Rua Divisadeiro.


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Notas finais do capítulo

Enciclopédia fantástica:

O Apoiaueue

É uma criatura que faz parte do conjunto de tradições presente na cultura tupi-guarani, sendo muito comum a sua representação no folclore brasileiro e de outros países da América latina. A sua imagem é comumente associada à uma fada responsável por trazer a chuva. Segundo consta, preferem evitar seres humanos, todavia, costumam se mostrar àquelas crianças que têm um coração bom.



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