Psicopompo escrita por Pablo Alves


Capítulo 1
Moscas e Omelete




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Sabemos o que somos,

mas não o que podemos ser.

— William Shakespeare

 

01 de Março

Soube que já era muito tarde para ir à faculdade quando vi que o sol da manhã escorregava pela cortina, um gordo fio inflamado atravessando os vidros, se derramando em cheio sobre a cômoda de cabeceira.

Se é para o bem de todos e felicidade geral da nação, digo ao povo que fico.

Tite levantou cedo. Estranhei a blusa caindo folgada sobre o vestidinho lilás, moda feminina podia ser um pouco peculiar, pensei. Ia juntando moscas sobre a louça suja e a omelete engordurava o piso afogada numa possa de óleo. Havia tentado preparar o próprio desjejum. Falei a mim mesmo que podia ser pior, e agradeci o fato de não estarmos sendo reconhecidos no necrotério agora.

Com cheetos na boca, ela disse:

— Desculpe pela cozinha.

Me senti um idiota.

— Tudo bem, eu perdi o horário. Vamos no Elmo comer de verdade. Gosta de brigadeiro?

— Brigadeiro no café?

 

03 de Março

Lembro do ano em que meu time representou a nossa cidade numa grande competição estadual pela primeira vez depois de muitas décadas. A notícia pegou de surpresa os cidadãos de Cecília, gerando comoção sobre o que viria a ser conhecido como o Grande Milagre. Isto, porque, o time tinha pouca ou nenhuma chance de entrar no circuito, já que há anos vinha fazendo más temporadas.

No ano seguinte, o milagre foi ainda maior, e após uma dura campanha acabou finalista do campeonato nacional. Estávamos todos lá, na última partida, e é difícil passar um quadro geral do sentimento que luzia dentro de cada pessoa. Na quarta-feira abarrotamos as estradas com nossas caravanas em direção ao sudeste do pais, onde o jogo aconteceria no domingo.

Iniciamos sem marcar. Aos 15 minutos do primeiro tempo sofremos o primeiro gol. No segundo tempo, as pessoas encaravam o placar com ansiedade e os bancos causavam até comichão. O time levou mais um e segundos antes do placar zerar saiu o terceiro gol. Não sei se realmente acreditávamos que aquele título era possível. Digo o que nos levou a abandonarmos nossos trabalhos e percorrer o país em dois dias de viagem, foi a mesma ideia que aturdiu o primeiro homem de que seria possível pôr os pés no solo rochoso e gelado da lua: queríamos ver, com nossos próprios olhos, o Grande Milagre — e se possível —, apalpá-lo, como o próprio Tomé tocou nas chagas de Cristo. Bem, o jogo acabou. Os torcedores do Cecília já haviam abandonado o estádio antes mesmo da partida terminar. Nós perdemos. Fiquei imaginando como foi para os jogadores, será que sentiam mais que os outros? É triste saber que você está completamente perdido e deve continuar tentando.

 

04 de Março

Não sabia ao certo a utilidade de escrever um diário quando comecei. Talvez, a necessidade de falar tenha ido bem fundo, com a sua ponta afiada. Às vezes, queria ter com quem conversar depois que o dia acaba.

Todos os dias, tomo o metrô de Avaré, cruzando a Matinha e outros bairros de Cecília, até um distrito bem cuidado. Depois dos pontos comerciais, dos cafés e quiosques, você acaba na fachada da faculdade Marquise. Frequentemente, reparo nos assentos vandalizados do metrô. Há sempre declarações de amor, rebeldia ou inscrição pornográfica. Será que no futuro olharão para elas com mesmo pasmo que olhamos pinturas nas cavernas?

 

07 de Março

Não consegui dormir na noite passada por causa dos pássaros do outro lado. Tite possuía um acervo enorme de talentos, e me impressionava, especificamente, a variedade de sons que conseguia reproduzir com a voz. Toda a fauna da Amazônia acordou dentro do meu quarto.

Ela foi à escola nova, hoje. Foi com alguma apreensão que eu aguardei esse momento chegar, porque sabia que quando fosse a hora, significava que estava pronta para recomeçar, embora a gente nunca esteja realmente pronto para dizer adeus à uma mãe.

Ou à uma irmã.

Penso se daria tempo, — sabe? — de fazer algo quando Elise me encaminhou uma mensagem de madrugada; e se eu não estivesse diariamente inerte com antidepressivos? e se visse o aguilhão lhe abrindo a ferida todo esse tempo, pelo que aconteceu? Saberia que estava abortando a própria vida.

Há 9 anos, o Brasil Diário publicava no periódico matutino: ACUSADO DE ESTUPRO CONFESSA TUDO.

Tenho aqui um recorte do jornal:

“Ocorrido na última sexta, (4), o crime na Malogra Clube levou toda a gente de Cecília à perplexidade. Conduziu-se o flagrante após pedidos de socorro no local, quando os populares impediram o suspeito de deixar a cena do crime. Sangue cobria rosto e cabelo da vítima e teve partes da roupa arrancada do corpo.”

 “O detido teve pouca preocupação em racionar detalhes à reportagem a respeito do crime cometido na noite anterior. Eis a transcrição:

“Tinha adulterado a bebida, disse o nacional. Encurralei a vadia nos fundos do bar. Ela lutou. Eu gostava. Gosto de sentir o corpo lutando. E sentir os pulmões cansarem por tentar. Oh, gosto disso! Mas precisei ser um pouco duro. Aí, você sabe, veio a adrenalina... acabou rápido.”

Ele nem chegou a ser julgado. Foi assassinado ainda na prisão. Tite nasceu nove meses depois.


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