Eu Sei Quando Você Mente escrita por Mitchece


Capítulo 15
O Anônimo


Notas iniciais do capítulo

Chegamos ao último capítulo :) Muito obrigado por acompanharem a história até aqui, foi muito bom ver todos os comentários durante a jornada.

Se tiverem interesse, podem continuar me lendo na minha nova história: Por Onde Andou Eichler?

É uma história sobre uma jornada de quatro amigos feiticeiros para se despedirem de um falecido amigo e investigar o que aconteceu nos seus últimos dias de vida. Muito mistério, romance e aventura (frase clichê, mas é isso mesmo)

Muito obrigado e bom capítulo!

Vão lá na história para salvar e ler mais tarde :)

https://fanfiction.com.br/historia/811417/Por_Onde_Andou_Eichler/



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Quando supôs que já estava sozinho, Dário levou um susto com o grunhido vindo do corpo nos seus braços. Quase o soltou de uma vez e deixou a morte tombar chão abaixo, mas logo se deu conta de que não era tão morrida assim.

Felipe fez um estalo profundo com a garganta e puxou o ar para dentro dos pulmões com furor, como alguém afogado que abocanha o ar após retornar à superfície. Não teve forças para mandar energia ao resto do corpo, então se manteve molenga no colo do outro rapaz, que o admirava meio assustado, meio aliviado por vê-lo vivo.

— Calma, calma - Dário pediu com atenção para que Felipe de fato não se mexesse muito. Aquela quantidade de sangue que havia em suas roupas já dava o alerta de que os ferimentos não podiam ser estressados. O garoto magricela tinha um olhar pálido de pálpebras pesadas que dificultavam reconhecer seu arredor.

Dário puxou um de seus braços debaixo da costela de Felipe e pôs sobre o rosto dele, limpando um pouco do sangue e gotas de chuvas para que ele respirasse e visse melhor. Felipe grunhiu tentando falar, mas não conseguiu e se conteve em apenas limpar a garganta.

— Fica de boa, fica de boa - Dário pronunciou do jeito mais claro e alto possível para que o garoto semi-vivo o entendesse bem. Não sabia muito exatamente como proceder naquele tipo de situação, só lembrava que o correto seria ficar parado e esperar ajuda. Ou talvez não. Não sabia. Não lembrava. Estar com alguém morrendo nos braços deixava a mente confusa.

A imensidão escarlate não ajudava os ânimos a ficarem calmos. Dário pensou em buscar os ferimentos do garoto para pressionar e impedir que perdesse mais sangue. Mas era tanto que hesitou. Ia tapar os buracos da peneira com poucos dedos.

— Morrer dói - Felipe resmungou as primeiras palavras que Dário conseguiu reconhecer depois de muitos resmungos e grunhidos. Não soube bem o que dizer, então mentiu:

— A ambulância já tá chegando. Eles já vem, segura aí.

De fato tinha chamado a ambulância segundos antes do garoto retornar à consciência, mas não acreditava que viriam logo.

— Tá - foi tudo que Felipe conseguiu dizer e em seguida tombou a cabeça para o lado contrário do corpo do rapaz que o segurava.

— Ei, ei, fica acordado. Se entrega não, mano - Dário pediu e, em desespero, puxou o garoto pelo pescoço para que não ficasse desmontado demais. Não conseguiu segurar as lágrimas. Até queria demonstrar força para não desacreditar Felipe, mas não pôde se conter.

— Eu vou tentar - resmungou com seu jeito delicado e deu um sorrisinho frouxo. Dário percebeu que ele estava se entregando, mas decidiu considerar o seu pedido.

— Só não dorme, não fecha os olhos - Dário queria dizer, na verdade, "só não morre". - Conversa comigo, isso, fica falando comigo até eles chegarem, ok?

— Tá bom - respondeu depois de tremer de dor. - Você vem sempre aqui?

Dário não conseguiu deixar de rir com Felipe. O contraste da tensão com aquele momento tiozão veio a calhar e foi irresistível. Mas fez com que ele se lembrasse que estava em um lugar hostil, escuro e sozinho. Vulnerável demais.

— Uma merda tudo isso, né? - Felipe se esforçou para manter-se de mente ativa, sem parar de falar.

— Pra caralho - Dário concordou. Ia puxar mais um assunto, mas o outro garoto veio antes:

— Tudo porque a gente quis guardar umas merdas de uns segredos.

Dário não soube o que responder. Sua mente foi longe porque pensava na demora da ambulância e da ajuda. Não queria que alguém morresse em seus braços. Não saberia lidar com aquilo. Não queria ter aquele registro pro resto da sua vida.

— Mas, então, me conta qual era o seu segredo - Felipe continuou tentando manter o diálogo. Sua voz estava mais distante. Parecia estar de fato deixando o seu corpo, naquele limiar em que a realidade talvez nem fizesse mais sentido pra ele.

— Meu segredo? - Dário perguntou, surpreso. A merda do seu segredo. Se não fosse ele, não estaria banhado de sangue naquela hora.

— É, qual era o seu segredo? - Felipe ficou com o olhar mais baixo. Não tinha mais sustentação no pescoço para continuar olhando para Dário. Tossiu um pouco enquanto o outro lhe respondia:

— Era bobagem - ele desbaratinou.

— Qual é? - Felipe disse baixo. - Não é como se eu fosse conseguir espalhar seu segredo pra alguém, né? Olha meu estado.

Eles riram juntos, Felipe com mais dificuldade. Dário sentiu seu corpo magricela ficar mais leve, menos tenso.

— Sério, era bobagem - Dário insistiu. Não ia verbalizar aquela vergonha que fez, nem mesmo para que fosse pra ela acabar num túmulo.

— Que saco - Felipe resmungou. - Ninguém tem coragem de confessar.

No mesmo tempo em que Dário se deu conta de que firmeza havia retornado na voz de Felipe, percebeu também no toque de seu colo e braços o corpo do garoto tensionar por inteiro, como se todos os músculos fossem contraídos de uma só vez enquanto tomava uma descarga elétrica.

Um reflexo claro passou pelos seus olhos como um feixe entre a escuridão que estava a escola. Felipe tinha feito um movimento rápido com seu braço direito que Dário mal pôde ver devida a tamanha surpresa. Apenas sentiu. A lâmina invadiu o peito, acima do mamilo esquerdo.

Num reflexo, deixou o corpo de Felipe tombar para frente e se jogou para trás, numa tentativa de afastar o seu próprio corpo daquela dor lacerante. De costas para o chão, olhou para baixo e viu a arma fincada a menos de um palmo de sua visão. Felipe já estava de pé ao seu lado, pronto para removê-la e desferir um novo golpe no outro lado do peito.

Pressionou a faca com mais força e puxou-a até o outro buraco que fizera antes, rasgando o peito de Dário para poder ver a morte tomar os seus olhos de vez.

Ficou analisando Dário agonizar no chão. Enquanto tossia o sangue pela boca, tremia e batia os braços e pernas contra o chão, como se fosse adiantar alguma coisa. Ou talvez fosse só um reflexo desesperado do seu corpo tentando amenizar a agonia. Felipe não conseguiu entender se ele havia morrido afogado, ou pela perda de sangue. Mas morto estava.

Miriam supôs que Felipe daria maiores explicações, mas ele se conteve apenas em ficar trocando seu olhar entre a garota acuada abaixo do sofá e a mulher amarrada no chão. Parecia ser um momento prazeroso para ele, algo que esperava há um bom tempo. Ver a verdade sobre a mesa e a reação entre as envolvidas - mesmo que a mãe nitidamente não estivesse entendendo a gravidade da situação, as últimas palavras de Felipe caíram como um nada para ela. Nem parecia que estava falando dela.

Já Miriam, sem maiores detalhes sobre o segredo, não pôde fazer nada além de ficar muito confusa. Não tinha uma linha lógica em mente que explicasse sua mãe ser o primeiro Anônimo. E, mesmo que tivesse, não teria espaço no seu cérebro para processar aquilo tudo devido ao pavor da situação. Felipe a encarando com um prazer macabro, Windera lavada de sangue seco atrás dele e sua mãe se debatendo e chorando como uma presa numa rede de pesca.

A garota encarou Felipe por mais um momento. Realmente esperava dele algum momento de revelação, onde o vilão explicaria suas motivações, planos, tramoias e, por fim, diria como iria se livrar daquela trama toda para ainda sair por cima e concluir seu plano maléfico. Mas não foi nada disso que fez.

Miriam esboçou abrir a boca para pedir que Felipe explicasse melhor aquela acusação, mas um som alto veio como um baque do andar de cima. Instintivamente, todos os presentes olharam para o teto, sem entender muito bem o que se passava. O garoto com a capa preta e a garota ensanguentada pareciam mais assustados e preocupados. Se entreolharam enquanto Felipe perguntava com rancor:

— Tem mais alguém na casa? - e Windera se ocupou a responder apenas com uma cara desalinhada e um levantar de ombros. Parecia não ter muita firmeza em sua postura. Felipe não ficou convencido da resposta, então esboçou um olhar insatisfeito para a aliada e pediu: - Fica de olho nessas duas.

Windera titubeou, confirmou com a cabeça e assistiu o rapaz rumar em direção às escadas com suas vestes esvoaçantes. Miriam lembrou-se de Cátia e sentiu um aperto no peito ao imaginar que a mulher pudesse estar escondida no andar de cima e acabou derrubando algum objeto que fizesse barulho. Esperava que ela tivesse pelo menos conseguido chamar a polícia, ou algo assim, nesse meio tempo. A não ser que o barulho tenha sido, na verdade, uma distração.

Se fosse isso, não adiantava nada. Windera puxou uma faca de cozinha do bolso de trás da calça e ficou apontando na direção de Miriam e sua mãe, numa pose de quem segura uma arma de fogo.

Não havia maneira segura de Miriam escapar dali. Até poderia partir de supetão e disparar em direção à porta de entrada da casa, mas deixaria sua mãe para trás, totalmente vulnerável para ser atacada. Naquele tipo de situação, irritar os algozes era a opção mais burra possível.

Mas a aflição das possibilidades tomava cada vez mais o seu corpo todo. O que Felipe queria, afinal?

Jogar a verdade na cara dela e ir embora seria uma boa para deixá-las em paz, mas duvidava muito que o plano era esse. Um maníaco que ameaçou e matou tanta gente não faria de seu último ato apenas uma lavagem de roupa suja. Seu último ato deveria ser grandioso, um xeque-mate. Miriam e sua mãe estavam ferradas.

Miriam pensou em começar a conversar com Windera. Ela parecia aflita também, talvez insegura e um pouco assustada. Na verdade, sua presença ali soava como algo não exatamente planejado, apenas conveniente. Provavelmente ela quem foi até sua casa e imobilizou a mãe enquanto Felipe se divertia com os outros na escola. Mas Miriam sabia que não conseguiria sustentar o papo com frieza e persuasão o suficiente pra levar a gringa no gogó. Ela parecia determinada demais em ser uma ajudante de psicopata. Não mudaria de ideia tão fácil assim.

As duas garotas se encararam. Miriam lançou-lhe um olhar de ódio e Windera devolveu com uma feição de peixe morto. Ela pareceu tropeçar para trás, mas logo retomou a posição ereta. Pelo menos por alguns segundos, pois, em seguida, cambaleou de novo enquanto revirava os olhos e deixou as pálpebras caírem. Tombou para trás com o corpo mole.

Miriam demorou um tempo para reagir. Imaginou que aquilo era um truque, mas ficou de joelho no chão para ver o rosto da garota melhor e se certificou que ela havia desmaiado de verdade. Windera caiu de boca aberta e deixou sangue escorrer de dentro dela, como se estivesse guardando-o entre os dentes e a língua. Língua essa que Miriam percebeu que simplesmente não existia mais dentro de sua mordida.

Um enjoo subiu-lhe pelo esôfago, mas engoliu-o com frieza e correu até Windera para se apossar de sua faca. Olhou para a escada querendo se certificar que Felipe ainda buscava algo no andar de cima e jogou seu corpo sobre sua mãe para soltá-la.

— Não me mata! Não me mata! Sai de perto de mim, sua maluca! - a mulher gritou imediatamente após sua venda ser retirada. Miriam fez sinal para que ela calasse a boca, mas foi em vão. Estava aquém da situação e parecia não reconhecer a filha.

Um frio subiu pela espinha de Miriam porque sua fuga silenciosa tinha caído por terra. Olhou para a escada novamente, já esperando ver Felipe retornando, mas ainda tinha algum tempo.

— Se esconde na edícula do fundo, no quarto da Cátia - a garota pediu para a mãe antes de voltar a ficar de pé e correr para a porta de entrada da casa. Era tudo que podia fazer por ela. Se a levasse junto, ambas seriam mortas.

Miriam virou o corpo para sair do cômodo, mas sua mãe, ainda no chão, agarrou seu tornozelo esquerdo de surpresa, fez a garota tropeçar em si mesma e cair no chão. A mulher a agarrava forte.

O baque contra o chão ardeu em seus cotovelos, ombros e seios.

— Me solta, caralho! - urrou para a mãe enquanto se chacoalhava para se livrar de seu agarrão, mas ela não cedeu. Então Miriam começou a dar chutes no ar na direção da mulher e sentiu pouco a pouco seus dedos afrouxarem até que conseguisse se desvencilhar dela.

Pôs-se de pé rápido e encarou a mulher tentando fazer o mesmo. Ela tombava de um lado para o outro como uma boneca de pano. O peito de Miriam engasgou em si mesmo de amargura, então voltou até a mulher e a agarrou pelo pulso.

— Vamos fugir - Miriam sussurrou e tentou passar seriedade para a mãe, que a olhou confusa. Ela se afastou da garota, assustada.

De repente, elas ouviram passos pesados e mais sons de coisas caindo no chão lá no andar de cima. A garota pulou e encarou a mãe pela última vez.

— Se não quiser morrer, vem comigo - sussurrou e voltou a correr até chegar no jardim da frente. Mas foi sozinha.

Lá fora, os sons de cima ficaram mais claros e deixaram de estar abafados. Ganharam amplitude e os ouvidos da garota conseguiram reconhecer que estavam vindo de seu quarto, perto da porta da sacada. Os últimos sons que soaram pareciam tiros e lançaram um clarão para fora.

A garota olhou por cima do ombro enquanto corria até o portãozinho que havia deixado aberto e um vulto passou pela beirada da sacada. Veio um grito desesperado, um tropeço no ar e um baque seco e alto no chão a uns metros de Miriam.

Teve poucos segundos para ver o corpo espatifado sobre a pedra da entrada da garagem, mas foi o suficiente para reconhecer Cátia com a blusa banhada de sangue e a pistola do pai escorrendo entre os dedos. O líquido também começava a vazar pelas têmporas, bem onde houve o impacto com o chão.

Miriam tirou os olhos do corpo e os lançou para a sacada, onde Felipe estava debruçado. A garota quis retornar para pegar a arma da mão da empregada, mas hesitou.

Felipe estava pulando a mureta da sacada e conseguiria andar sobre o telhado da fachada da casa antes de descer sobre o gramado para alcançar Miriam em pouquíssimos segundos.

Apesar do medo e pavor, seu único anseio foi fugir dali.

Passou a mão pela maçaneta, mas o portãozinho não estava mais aberto como havia deixado. Então, por instinto, forçou-o contra o fecho na esperança de que sua tranca frouxa a ajudasse.

Aquela desgraça de portão abria sozinho quase todo dia. Se não a deixasse passar naquele instante, entregaria sua vida ao destino: sua história seria morrer ali mesmo.

Sentiu o trinco ceder e passou por ela. Atrás dela, ouviu os passos pesados da queda de Felipe sobre o gramado. Ele estava perto.

— Volta aqui! - ele gritou com ódio em plenos pulmões ainda dentro da casa, mas Miriam já estava na calçada.

Seu coração travou quando viu que o carro de Rômulo ainda estava estacionado. Forçou a visão para conseguir enxergar lá dentro por causa do escuro que os fracos postes deixavam na rua. Conseguiu distinguir que o rapaz estava sentado no banco do motorista, mas com a cabeça deitada sobre o volante. Provavelmente estava morto.

O que significava que não teve tempo de buscar ajuda.

Miriam olhou para os dois lados da rua. Sua casa ficava no centro do quarteirão. Independente de qual caminho seguisse, ficaria vulnerável e no campo de visão de Felipe por muitos metros. Nos trajetos haviam alguns terrenos baldios que poderia se enfiar para esconder, mas nenhum dava passagem para o lado oposto da quadra, então ficaria encurralada.

Só havia uma única alternativa. Miriam atravessou a rua e enfiou-se na mata fechada da área verde. Era escura, grande, mas tinha um caminho que a levaria para a rua debaixo. Era uma rua bem vazia, mas uma via livre para fugir.

Sentiu que Felipe tivera tempo de vê-la entrando entre as moitas e as copas das árvores após sair da casa. Seu coração pulava tanto que jurava que ela o vomitaria a qualquer momento.

Deu passos altos e desengonçados enquanto se enfiava na mata. As raízes das árvores eram projetadas para cima e não havia iluminação o suficiente para a garota reconhecer elas e os desníveis de terra. Pensou em usar a tela do seu celular para iluminar o caminho, mas poderia chamar a atenção de Felipe, que conseguia ouvir vindo logo atrás.

Apenas semanas depois que puderam descobrir o que de fato havia acontecido no fatídico dia em que o Anônimo fizera sua primeira vítima vinte anos atrás. E também o porquê de Felipe ter dado continuidade a isso. Ele deixou um diário escondido na edícula de sua casa com os detalhes escritos à mão. A primeira página começava com "Para caso Miriam fracasse, aqui está a missa inteira:"

As perspectivas de Felipe sobre a sua vida e a da família mudaram em um dia extremamente comum para ele: de castigo e trancado no quarto dos fundos da casa. Ficava por horas preso no escuro, rodeado apenas de cacarecos, móveis e eletrodomésticos estragados, algumas ferramentas velhas, documentos e algumas respostas para um mistério.

Felipe morava com seus tios. Sua tia era irmã do seu pai. Ela criou Felipe desde bebê como se fosse filho depois da mãe biológica morrer no parto. Felipe era fruto do segundo casamento de seu pai, que não morava mais em Albuquerque quando se casou novamente. Na verdade, não gostava de visitar a cidade desde que o seu primeiro casamento chegou ao fim com uma tragédia. Sua primeira mulher, Valéria, havia morrido. Por isso, desde que abandonou Felipe, nunca mais retornou para visitá-lo.

Num mundo de "e se" que perturbou a mente de Felipe nos anos seguintes, Valéria poderia ser sua madrasta, e, seu pai, bem, seria presente. Isso posto porque ter crescido na casa de sua tia, a quem custava chamar de mãe, não teria lhe proporcionado a infância mais feliz do mundo. Foi um bebê doente, chorão e inesperado num lar que jamais o quisera ou pedira. Além de, mais tarde, virar um garoto bobalhão e afeminado. Uma soma de fatores para ser criado às margens do carinho da tia insensível e do tio violento.

Mas esses pensamentos deveriam se limitar apenas à sua cabeça, pois seus e tios não comentavam nada sobre seu pai e a vida que levou antes de abandoná-lo. Diziam apenas que era um cara bicho solto no mundo e que não queria se prender à uma criança. E quando descobriu, sentiu que não deveria compartilhar esse conhecimento com os tios. Jamais passou pela cabeça do garoto que o pai teve uma outra família antes dele. Quando descobriu, sua mente se quebrou de leve.

Continuando no fio das possibilidades, Felipe também imaginava simplesmente não existir caso Valéria não tivesse sido assassinada. Para Felipe, durante os primeiros anos da juventude, esse não era um caminho tão ruim assim. Seria melhor não ter nascido do que crescido num lar corrupto e criminoso.

Foram três as cartas que encontrou naquela noite chuvosa em que foi trancado no quartinho da bagunça pelo tio após ser flagrado dançando para um clipe da Madonna na TV. Não havia luz no cômodo, então se espreitou num canto e esperou a chuva passar até poder abrir a janela e deixar a luz do quintal pintar o interior. Era fraca, mas o suficiente para ele encontrar entre os cacarecos algo que servisse de travesseiro ou cobertor. Ou para ferir gravemente o tio. Seu primeiro impulso por morte jamais saiu de sua cabeça, mas foi interrompido por uma maleta curiosa na última prateleira.

Conseguiu romper o cadeado enferrujado com a ajuda de uma faca de caça velha e sem fio. Dentro dela encontrou uma pasta com provas e trabalhos da época de professora da tia e outras papeladas de processos e documentos do antigo trabalho do tio como policial. E três cartas assinadas anonimamente.

Duas das cartas, endereçadas para Valéria, eram nada além de ameaças subjetivas e que fariam sentido apenas para a destinatária. Valéria tinha um segredo e alguém estava a espremendo para ela dizer a verdade e abandonar a cidade. "Nós sempre sabemos quando estão mentindo", diziam as cartas.

Dois anos investigando foram precisos para Felipe descobrir que uma das principais suspeitas da cidade sobre os mistérios que a mulher guardava era verdade: Valéria era adúltera. E que seu pai era o corno em questão.

Algumas linhas de investigação da época consideraram esse caminho, mas não foram muito longe. Investigaram outras esposas da cidade para encontrar uma mulher traída e amargurada o suficiente para ameaçar e matar sua desavença. Mas era aí que estava o pulo do gato: a remetente não era a assassina.

E a polícia tampouco queria, de fato, concluir o caso. Para eles, o mistério era mais valoroso. O clima tenso e instável sobre a segurança da cidade beneficiava as pessoas certas naquele período, isso ficou claro para Felipe por causa do que descobriu a seguir. E decidiu usar esse mesmo fator a seu favor, também, anos depois.

Felipe ouviu uma conversa de madrugada da tia com o tio anos antes de encontrar as cartas. E só um tempo depois de lê-las que ligou os dois pontos. Eles costumavam usar o horário para trocarem sobre os esquemas de desvio de provas e apreensões que o patriarca participava na delegacia da cidade. Escondiam primeiro na garagem da casa, depois mandavam para a fazenda de um colega, pois ficava mais fácil para revender e despachar. O tio desviava da delegacia e a tia se encarregava dos transportes durante o dia.

Naquele dia em específico, sua tia chorava na cozinha. Havia bebido e tomado alguns remédios porque Felipe decidiu colocá-los na parede por conta dos esquemas. Abriu o jogo e prometeu que os entregaria para o delegado. Sentiu-se traída e vigiada na própria casa, mesmo nunca contando com nenhuma boa vontade por parte do sobrinho. Mas sabia que ele usaria todo aquele escarcéu para vingar-se do tratamento rigoroso que recebeu desde pequeno. Mesmo, na cabeça dos tios, ele tendo de ser grato pelo teto, comida e estudos.

A tia sempre enchia a boca para reclamar do pai de Felipe. Por abandonar a cidade, deixar o filho aos seus cuidados, algo que ela nunca quis e que, naquele momento, apresentava uma ameaça para os esquemas que eles mantinham com peixes maiores - e mais perigosos - que eles. Mas naquela noite as reclamações foram diferentes, mais viscerais. Ela fazia questão de que Felipe ouvisse lá em seu quarto todas as ofensas baixas que ela profanava contra ele e o seu irmão.

Seu tio odiava vê-la chorar e lamuriar pelos cantos, apesar de também não gostar de ser tutor de Felipe e estar fervendo pela ameaça. Começaram a discutir e brigar por algum motivo que o garoto não fisgou muito bem, mas supôs ser seu pai. Foi então que seu tio desferiu um murro na cara da esposa e a chamou de "irmã de homicida".

No dia seguinte, o pequeno Felipe precisou ir até a biblioteca consultar um dicionário para descobrir o que a palavra significava. Por que o tio chamaria seu pai de assassino? Já o ouvira dizer que seu pai tinha "matado a vida dele e da mulher", mas aquele tom foi diferente.

Por hora, manteve baixo sua recém descoberta sobre os esquemas. As ameaças do tio sobre o garoto aumentaram e ele não conseguiu sustentar aquela rixa. Mas, anos depois, quando conectou um fato ao outro, suas investigações ficaram mais fáceis. Mas ainda tinha uma outra vontade guardada no peito e que planejava desde o primeiro dia que o tio queimou sua barriga com um espeto de churrasco.

Foi quando chegou a sua vez de trancar o tio no quartinho dos fundos. Dopou ambos os tios e arrastou o corpo fedido do velho de sua cama até o cômodo. Esperou pacientemente que ele acordasse e o fez apenas um pedido: que lhe dissesse a verdade.

É claro que ela não veio de bom grado. Felipe foi maleficamente convincente de que machucaria o tio caso não o fizesse. O machucaria de todas as mesmas formas que vinha fazendo com o sobrinho há anos.

O queimaria com ferro, sufocaria com sacolas plásticas, apertaria seu escroto com uma chave inglesa, martelaria suas canelas e espetaria agulhas na gengiva. E o principal: queria enforcá-lo diversas vezes antes de matá-lo de fato.

Seu tio adorava fazer aquilo contra o garoto. O enforcava até o limite de seus pulmões quando brigavam. Às vezes, sem mais nem menos, agarrava Felipe pelo pescoço quando se cruzavam pela casa, apenas para experimentar seu susto e pavor.

Felipe começou com o saco plástico porque deixaria menos marcas no velho, mesmo querendo muito usar suas mãos. E bastou apenas essa tortura para que o tio abrisse o bico e vomitasse tudo que sabia.

Também o provocou para ficar irritado e começar a cuspir ofensas contra o sobrinho que odiava. Tudo para que ele lhe contasse melhor sobre seu pai ser um assassino.

E, de fato, seu pai era um assassino. Um corno amargurado e revoltado que assassinou com violência a própria esposa após ela lhe confessar a traição que alimentava desde antes de seu casamento.

Depois de esfaquear Valéria, o pai de Felipe ligou para seu cunhado, um dos únicos policiais da cidade. Suplicou ajuda para esconder o corpo, limpar a cena do crime ou algo do tipo. O tio e seu parceiro hesitaram, mas tomaram as dores do empresário. Quando o assassino lhes mostrou as cartas, elaboraram todos uma ideia: o real assassino seria um fantasma, um destinatário anônimo que ninguém jamais encontraria. Assim as investigações não precisariam ir para lugar algum.

Plantaram as cartas de Valéria num local seguro da casa e trataram de criar um incêndio controlado para esconder a cena violenta da luta que o casal travou no primeiro andar antes dela morrer. O parceiro do tio de Felipe encontraria ocasionalmente as cartas e as levaria como provas do crime durante os primeiros dias de investigação.

Bastou trazê-las à público para que toda a história do Anônimo ganhasse vida na pequena cidade de Albuquerque. Potencializada por um quarto homem: o então dono do único jornal da cidade, que também fazia parte dos esquemas de desvios da delegacia. Era um moço da família rival do então prefeito da cidade. A longa linhagem de fazendeiros e jornalistas lutava há anos para tirar sua família rival do poder - e da prefeitura - da cidade.

Estavam todos na fotografia que Miriam havia encontrado no maleiro, os cinco envolvidos. Pai de Felipe, o assassino. Tio de Felipe, o policial. O parceiro policial, futuro delegado da cidade e pai de Paloma. Olavo, o dono do jornal e futuro prefeito da cidade. E o pai de Miriam, o adúltero.

O pai de Felipe jamais descobrira que seu amigo de infância, o pai de Miriam, era o homem que se deitava com a noiva e esposa há anos. Mas o pai de Miriam sabia que sua esposa era a responsável pelas cartas. E quando a história do Anônimo começou a tomar proporções perigosas, eles logo trataram de sair da cidade. Mas as sequelas da mulher já estavam aparentes. Desde o dia da morte da ex-amiga. Potencializada pela descoberta de que Valéria morreu gestando uma criança de três meses.

Eram as verdades que Felipe precisava, tiradas da única pessoa que podia dá-las. E a única pessoa que poderia atrapalhar seus planos a partir daquele momento, no quartinho dos fundos.

O tio de Felipe foi encontrado morto no dia seguinte pela tia. Aos prantos, ela disse aos policiais que o suicídio dele era apenas uma questão de tempo. Foi apenas a primeira morte que Felipe conseguiu escapar sem suspeita alguma. No fundo, ela olhava torto para o sobrinho, mas começou a teme-lo mais do que nunca. E ainda tinha o esquema de desvios para dar conta sozinha. Teria que trabalhar para aquela máfia até seus últimos dias.

O terreno ficou cada vez mais desnivelado e, em um momento, Miriam quase perdeu o equilíbrio. Se acontecesse, ia descer rolando pelo gramado.

Seus passos desengonçados eram barulhentos. Arbustos e galhos roçavam em seu corpo conforme avançava e faziam sons que a afligiam a cada metro. Pelo menos conseguia ouvir Felipe. Sentiu-se uma presa fugindo de um leão.

Os sons de Felipe pararam por um segundo. Imaginou-o parar para ouvi-la melhor e reajustar sua rota, então a garota fez o mesmo. Simplesmente interrompeu seu passo e tentou respirar o mais baixo possível - com muita dificuldade, pois seus pulmões e pernas ardiam à exaustão. Ela abaixou-se na mata para se esconder da visão dele.

Estava em um bom local, quase uma clareira rodeada de árvores pequenas e arbustos. Se ficasse agachada, poderia de fato não ser vista. Aos poucos se arrastou para perto de uma grande árvore. Sentiria-se mais segura próxima de seu tronco largo, pois, pelo menos, teria suas costas guardadas por ela.

Quando pulou uma das raízes da árvore grande e se aproximou mais dela, sentiu um toque diferente nos pés. Não era mato, galhos ou folhas. Foi um toque seco. Olhou para baixo e teve dificuldade para reconhecer o que era. Estava bem escuro e os olhos demoraram para se ajustar, então ela lançou a mão sobre e nas pontas dos dedos sentiu um tecido. Logo percebeu que era uma camiseta polo dobrada sobre uma calça jeans. Reconheceu as listras da roupa de imediato. Eram de Felipe. Puxou-as para perto e notou um peso maior e desproporcional à duas peças de roupas.

No bolso da calça, alcançou um objeto frio. Era uma pistola de tambor pequena. Seu coração travou mais uma vez e ela agarrou o objeto junto do seu peito. Deixou as roupas caírem e se afundou entre as raízes das árvores para ficar acolhida.

Guardou a faca da cozinha na parte de trás do cós da calça, assim como vira Windera fazendo, e segurou a arma com as duas mãos, apontada para frente. Se aquele bosta do Felipe aparecesse, atiraria nele sem piedade alguma.

Voltou a ouvir a movimentação do Anônimo. Parecia estar a poucos metros dela, vindo da sua direita. Então um pensamento gélido tomou conta de sua cabeça: se Felipe havia deixado roupas e uma arma reserva no meio da mata, saberia exatamente como encontrá-las. Miriam se deu conta de que estava no único centímetro quadrado que o Anônimo retornaria entre aquela imensidão toda.

Levantou-se e firmou os pés no chão para ficar com uma postura que aguentasse o coice dos tiros. Então lembrou-se da trava de segurança e clicou com o dedão. O som da trava veio no mesmo momento do som dos arbustos por onde Felipe alcançou a clareira. Estava de frente para a garota e deu um passo para trás quando notou a arma. Ele não esboçou nenhuma expressão e parecia não esperar encontrá-la ali. Apenas pediu:

— A gente precisa conversar mais um pouco antes de acabar com isso.

— Você que se foda - Miriam retrucou e apertou o gatilho.

Mas nada aconteceu. Miriam apertou o gatilho outras vezes e o tambor apenas girou em falso.

— Quer vir pegar as balas? - Felipe perguntou sem conseguir esconder a comédia que achava da situação. - Tão aqui no meu bolso...

Miriam jogou a arma para longe, para as costas de Felipe, e tentou contornar a árvore para fugir da clareira. As raízes atrapalharam e fizeram ela perder a vantagem de distância contra o garoto. Ouviu os passos dele mais próximos do que nunca enquanto corriam de volta à rua. Até que o garoto conseguiu tocá-la. Empurrou-a pela costela de um jeito desajeitado, na tentativa de agarrá-la para si. Mas fez apenas com que ela tropeçasse num monte de tocos de árvores que estavam amontoados na trilha.

Miriam caiu de cara sobre a terra úmida e, antes que pudesse pelo menos virar o corpo para cima, sentiu Felipe debruçar-se sobre ela com afinco e toda a velocidade que acumulou na corrida. A garota recolheu seus braços sobre a cabeça e encolheu-se toda em posição fetal. Ouviu Felipe cair ao seu lado, também vindo de um tropeço dos tocos que se espalharam e ficaram no seu caminho. Mas o garoto estava com a faca em pulso pronto para esfaqueá-la. Miriam abriu os olhos e viu a faca a pouquíssimos centímetros de seus olhos fincar na terra.

De susto, a garota recobrou a pose e ficou de pé instantes antes de Felipe fazer o mesmo. Quando Miriam colocou a mão direita sobre o chão para içar o corpo para cima, repousou-a sem querer sobre um toco do tamanho e grossura de um canudo de formatura. Agarrou-o com força e desferiu um golpe forte com ele na direção de Felipe no momento que percebeu que ele se levantava ao lado dela.

O toco atingiu a maçã do rosto dele e o fez perder o equilíbrio novamente. Pendeu para trás e quase caiu, mas escorou-se numa árvore. Miriam quis sacar a faca da calça para cortá-lo, mas hesitou. O golpe do soco tinha sido um pouco de sorte, pois o escuro não ajudava em nada a mira. Apenas pôs-se a correr de volta para a rua.

Quando chegou na calçada, ficou no mesmo dilema de qual caminho seguir. Se subiria, ou desceria. Mas Felipe estava ainda mais próximo. Tudo que ela precisava era de tempo para chamar a polícia. Inclusive, nenhum vizinho ouviu os gritos ou sons de tiro? Será que a polícia estaria vindo? Se não, Miriam teria de chamá-la. Ou... alcançar a arma de Cátia.

Miriam atravessou a rua, entrou de volta na sua casa e fechou o portãozinho daquela forma que ele se trancasse definitivamente, sem truques. Virou-se para Cátia, mas seu mundo caiu no instante em que percebeu que a arma não estava mais entre seus dedos.

Um som nas suas costas soou alto e metálico. Felipe havia jogado seu corpo contra o portão maior, como uma fera presa numa jaula. Miriam viu pelas suas movimentações entre a grade e entendeu que ele estava tentando escalar para invadir a casa. E aparentemente conseguiria.

A garota avançou para dentro da casa e trancou a porta da entrada com violência. Quando voltou para a sala, encontrou a mãe de pé, acuada no canto do cômodo com a pistola em mãos.

— Sai daqui! - a mulher gritou e, tremendo, apontou a pistola contra a filha.

— Mãe, o Felipe tá entrando aqui - Miriam pediu com desespero e tropeçando entre as palavras por causa do fôlego descompassado. - Quando ele entrar, atira nele! Ele é o perigo!

A mulher não reagiu. Continuou com o olhar confuso contra a filha.

— Sou eu, mãe - Miriam lamuriou. - Miriam.

Soou o som do portão de ferro atrás do jardim da fachada. Felipe estava entrando na casa pela área de serviço. Em poucos segundos surgiria pela cozinha ao lado.

— É o Anônimo - Miriam apelou com afinco na última palavra. Os olhos da mulher arregalaram e ela pareceu transpirar medo.

Felipe surgiu na porta da cozinha para a sala como um demônio no mesmo instante que a mãe de Miriam apontou a arma para sua própria cabeça e apertou o gatilho.

Miriam chegou a ver o sangue espirrar todo com peso contra o canto entre as duas paredes, mas depois desviou o olhar para não encarar a mulher tombando sobre o chão com metade da cabeça estourada, ao lado de Windera.

A garota recolheu-se para o cômodo anterior, o pequeno hall de entrada da casa. Ouviu Felipe dar passos pesados em sua direção, mas mesmo assim não levantou o olhar, nem abriu os olhos. Sentia que, quando os abrisse, mesmo estando em outro lugar, veria novamente o sangue voando contra a parede amarela.

Apenas esperou que o Anônimo a agarrasse e a esfaqueasse de uma vez por todas. Mas aquilo demorou. Tempo suficiente para ela desistir de ficar encolhida junto a porta de entrada e abrir os olhos.

— Sabe, não curto muito armas de fogo, mas essa foi a coisa mais linda que já vi - Felipe disse. Estava parado abaixo do portal entre o hall e a sala. Parecia pleno, satisfeito. Não lembrava a fera que estava perseguindo a garota instantes antes.

Miriam sinceramente não sabia se tinha mais medo de ser seguida por ele, ou de encará-lo daquela forma tão de perto. Seu olhar era a treva pura.

— Obrigado por isso - ele desabafou. Miriam custou a aceitar que ele estivesse falando do que viram acontecer com sua mãe. Os olhos da garota encheram de lágrimas. - Nem no meu roteiro o fim do verdadeiro Anônimo seria tão poético.

Não demorou muito para que Felipe voltasse ao seu estado agressivo. Os ombros cresceram, a postura se alongou e os braços enrijeceram abaixo das compridas e negras vestes. Bastou um salto para ele alcançar Miriam e agarrá-la sem grandes dificuldades. Concentrou-se em seu pescoço. Agarrou-o com a mão direita e a esquerda apertou sua cintura.

Prensou a garota contra a porta e içou seu corpo no ar. Miriam sentiu os pés deixarem o chão. Não conseguia entender como o corpo frágil do garoto conseguia levantá-la daquela forma, com tanta força e facilidade.

O ar já não entrava pela sua garganta e a visão começou a escurecer. O enlace de Felipe era tão intenso que ela mal conseguia se debater.

— E acabamos por aqui - ele sussurrou no pé do ouvido da garota e afastou o seu rosto do dela para poder vê-la morrer aos poucos. - Eu disse que o seu segredo ia te matar.

Felipe a pressionou mais uma vez num baque contra a porta para reforçar suas garras no pescoço da garota. Um tato sólido soou na cintura de Miriam, fazendo-a lembrar de algo.

A garota alcançou a faca no cós da calça e rapidamente desferiu-a contra Felipe. A lâmina da faca de cozinha atravessou seu pescoço, abaixo do ouvido, e saiu pelo outro lado.

Ele arregalou os olhos e soltou Miriam. A garota caiu e deixou a faca sair entre seu palmo. Ela tossiu e, com dificuldade, tentou recuperar o ar. Sua garganta ainda sentia o peso do enforcamento e, por um momento, duvidou que conseguiria respirar novamente, mas aos poucos e entre tosses conseguiu.

Felipe tombou para trás. Nenhuma gota de sangue saía de sua pele, mas a dor parecia invadi-lo. A faca estava instalada, imóvel. Miriam conseguiu ver seus desespero pelo olhar e grunhido que ele soltou.

Assustado, o garoto botou a mão sobre o cabo de inox e puxou-o. Miriam não conseguiu enxergar a lâmina saindo. Apenas sangue, muito sangue. Fugiam pelos dois lados do ferimento como uma torneira aberta. Não demorou muito para que o garoto tombasse ao chão e morresse engasgado com seu próprio sangue.

Miriam se recolheu na porta para chorar tudo que tinha que chorar. Depois, saiu pela porta e voltou à rua. Lá, sentou na sarjeta e ouviu ao fundo os sons das sirenes ainda baixas e distantes, mas se aproximando.

Depois de descobrir quem era o Anônimo assassino, faltava para Felipe descobrir quem era o Anônimo escritor. Só não esperava que a própria destinatária também já sabia.

Entre as cartas que o tio desviou, havia uma que ele guardou consigo e deixou na mesma pasta na última prateleira do quartinho. Uma carta que a própria Valéria tinha escrito e enviaria - ou havia desistido de enviar - para mãe da Miriam. Suplicando para que ela não contasse nada ao marido. Prometendo também parar de ver o segundo homem. Não podia ser abandonada com um bebê na barriga, seria um desastre completo.

Felipe passou os anos seguintes tramando sua vingança contra os homens que sobraram. Passar a faca de caça na garganta do tio não tinha sido o suficiente. Nem denunciar o esquema de desvios que já nem existia mais. Precisava ir atrás dos outros e acabar com eles e seus legados. Assim como acabaram com o seu.

Estava tudo pronto para começar com Paloma, filha do segundo policial. E foi dias antes que Miriam chegou na cidade. Precisou adiar urgentemente a primeira vítima da nova leva do Anônimo e recalcular rota para incluir Miriam na jogada. Um adiamento de cronograma que colocou seus assassinatos convenientemente perto de mais um aniversário da morte da madrasta. Não pôde deixar passar. Aproveitou que vinha vigiando e stalkeando cada uma das vítimas há meses e, em poucos dias, enviou-lhes as cartas pretas.

Então inflou sua lista com outras vítimas para deixar o fio mais complexo, escolheu pistas para facilitar e outras para dificultar, mas sempre com a esperança de Miriam descobrir o segredo de sua família. Assim como ele fizera. O destino e uma infeliz transferência de trabalho do pai de Miriam haviam os levado de volta para Albuquerque. Isso deveria ser aproveitado.

E fazia questão de que a própria Miriam descobrisse tudo. Que ela amarrasse aquele quebra-cabeças até trazer a principal verdade da história toda à tona, mesmo correndo o risco de o fazer antes mesmo dele matar a última pessoa planejada.

Felipe não queria ser o porta-voz da revelação do maior mistério da cidade. Queria que as mentiras que continuavam contando trouxessem a identidade do Anônimo à tona. Diretamente do legado dela. A garota final, como ele gostava de chamá-la. Não poderia matá-la, mas gostaria de fazê-la pensar que iria. Porque teria que amedrontar a mente dela de uma forma que jamais esquecesse do que as mentiras de seus pais a causaram.

O legado de Felipe seria torturar uma pessoa igual fizeram com ele. Para que ambos ficassem conectados. Mostrar que não importava quantas mentiras criassem ou por quanto tempo tentassem guardá-las, elas sempre viriam à tona. Porque ele era o descobridor das mentiras da cidade. E Miriam seria a reveladora.

Fim.

 


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Notas finais do capítulo

Chegamos ao último capítulo :) Muito obrigado por acompanharem a história até aqui, foi muito bom ver todos os comentários durante a jornada.

Se tiverem interesse, podem continuar me lendo na minha nova história: Por Onde Andou Eichler?

É uma história sobre uma jornada de quatro amigos feiticeiros para se despedirem de um falecido amigo e investigar o que aconteceu nos seus últimos dias de vida. Muito mistério, romance e aventura (frase clichê, mas é isso mesmo)

Muito obrigado e bom capítulo!

Vão lá na história para salvar e ler mais tarde :)

https://fanfiction.com.br/historia/811417/Por_Onde_Andou_Eichler/



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