Eu Sei Quando Você Mente escrita por Mitchece


Capítulo 1
Quando um estranho chama




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— A desgraça de uma geração é a diversão da outra - a mãe de Paloma retrucou quando viu a garota remexendo diversas cartas numa caixa de sapatos.

— Qual é. A gente só deu uma renovada nessa coisa toda de dia dos namorados, Valentine day e tal.

— Mas pra quê?

— Sei lá. Pra deixar a data menos deprimente.

— Ainda acho estranho. É mórbido.

— Não lembra que foi assim que o Marcos se declarou pra mim? - puxou uma carta cor de rosa e balançou no ar para chamar a atenção da mãe. Retirou o conteúdo e começou a ler: - "Soube que era você desde o primeiro olhar". A primeira vez que a gente se viu, ficamos, tipo, travados por uns dez segundos se olhando. Ele lembrou e me mandou a carta no dia do Anônimo. Nada a ver com vocês.

— Ainda acho um desrespeito com a memória dela. Podiam fazer homenagens ao invés disso.

— Pra quê? Ficou mais legal do nosso jeito.

— Porque não foi a sua amiga do colégio que foi morta por causa disso.

— Foi um sacrifício! Se não fosse ela, eu não namoraria o Marcos hoje. Qual o nome dela mesmo?

— Valéria.

— Obrigada, Valéria! - juntou a carta no peito com força para abraçá-la acima do coração, jogou-se para trás no sofá e balançou as pernas no ar. Depois, cheirou o papel rosa. - Ainda tem o cheiro do perfume que ele colocou!

— Se vocês fizeram um ano de namoro, por que continuam recebendo cartas?

— Não são só cartas de amor. São de qualquer coisa.

— As da Valéria eram ameaças.

— Às vezes rolam umas coisas nada a ver, mas é de moleque tonto ou de alguma menina recalcada. Só deixar pra lá. Lembra da Sabrina? Ela me mandou uma carta zoando meu cabelo da época só porque o Gabriel escolheu ir no meu aniversário ao invés do dela. Como se eu não fosse imaginar que a carta era dela... Enfim, nada de ameaças de segredos.

— Mas ainda são todas anônimas, né? Iguais às da Valéria.

— São. Mas não têm nada a ver com ela, mãe, desencana. É só pra gente se divertir. Contar algo que tem medo de falar na cara, zombar de alguém, se declarar. Tipo correio elegante de festa junina.

— Só que no aniversário de morte da Valéria. E o assassino ainda tá solto por aí. Imagina se ele decide voltar a mandar essas cartinhas pras pessoas de novo? - debochou da filha, juntou sua bolsa, o telefone flip coberto de strass e foi para a porta da casa.

— Mãe, isso tem o quê? Vinte anos? E tá na cara que foi o marido corno quem matou ela. As cartas dela eram típicas de dor de corno. A polícia dessa cidade é muito podre mesmo.

— Não zombe do trabalho do seu pai. Vou indo. Beijo, beijo - e saiu.

— Ele que se foda - reclamou baixo para a mãe não ouvir.

Paloma levantou do sofá num supetão e, sem querer, derrubou a caixa com cartas no chão.

— Merda - reclamou e já se abaixando para recolher. Juntou todas num monte sobre o tapete felpudo e xingou de novo ao perceber que havia misturado as cartas antigas com as desse ano, inclusive as ainda fechadas.

Quando começou a colocá-las de volta na caixinha, uma em específico chamou sua atenção. O envelope era pequeno e de papel acinzentado. Abriu e retirou de dentro um cartão preto e fosco. Analisou bem o lado que olhou primeiro, estava vazio. Girou e encontrou poucas palavras impressas em branco. Poucas, mas o suficiente para ter um nó no estômago.

— Vadia - retrucou para si mesma. Guardou a carta de volta, foi até o lixo da cozinha.

Paloma achava que mulheres deveriam seguir uma certa empatia universal e inabalável, mesmo entre as que tinham desavenças. Havia uma palavra que aprendera umas semanas antes sobre isso, mas se esquecera. Enfim. Mesmo com uma briga que durava anos como tinha com Sabrina, deveria ter mais respeito envolvido.

Mas antes disso elas foram amigas bem íntimas. Confidentes, companheiras, inabaláveis, quase irmãs. Próximas o suficiente para Paloma confiar para ela assuntos bem delicados e que não mereciam ser zombados daquela maneira. Não numa carta, numa brincadeira boba.

Já estava voltando para a sala quando se deu conta de que precisava se livrar do papel para evitar que a mãe acabasse lendo. Apesar de distraída, a mulher era um pouco enxerida. Paloma não duvidava que ela realmente revisasse os lixos da casa em busca de algumas intimidades, mesmo a filha sendo bem aberta com ela e não tendo tanto a esconder. A não ser o assunto da carta.

— Vadia - Paloma xingou Sabrina mais uma vez quando lembrou da escrita. Pegou o papel e pensou em cortá-lo todo, mas daí acabaria deixando vestígios. Acendeu a chama da maior boca do fogão e viu a folha preta se incendiar lentamente. O verniz do papel derretia de leve, embebendo o pé da chama com pequenas bolhas que consumiam letra a letra, dissolvendo-as como se fosse ácido. Quando alcançaram a última palavra, Paloma sentiu até uma certa satisfação de ver as cinco últimas letras carbonizadas. "Papai".

Um cheiro ruim subiu e invadiu a cozinha inteira. Abriu a torneira para deixar as cinzas levarem o que restou da crueldade de Sabrina ralo abaixo e abriu a janela para o ar circular. Um vento frio entrou e cortou o rosto pálido da garota. Olhou para fora e notou que a luz mais distante da parte dos fundos do quintal estava piscando. Alcançou o interruptor perto da porta para apagar e acender de novo imaginando que a lâmpada voltaria ao normal, mas não deu certo. Irritada com os cliques de luz, preferiu apagar todas as luzes do lado de fora da casa.

Agora sim podia voltar para o plano original da noite. Jogou-se no sofá novamente e tateou o assento em busca do controle remoto da TV. No mesmo instante que ligou-a, um barulho na rua chamou sua atenção de repente. Parecia alguém pedindo socorro.

Sua curiosidade a convenceu a conferir. Não conseguia ver nada ali do andar debaixo porque a fachada da casa era toda coberta pelo muro e o portão. Subiu as escadas correndo e foi até a sacada do seu quarto, que dava para a rua.

Não viu nada demais. Até se perguntou se o som que ouvira havia vindo da TV e sua cabeça tinha se confundindo com o espaço de onde veio. Mesmo assim, ficou olhando para fora. Estava tudo mais calmo que o normal. Nem mesmo a vizinha da frente, que tinha a casa sempre movimentada e cheia de visitas, estava quieta. As luzes nem acesas estavam, talvez não estivesse por lá.

Virou-se para o cômodo e pensou em pegar o celular. Tinha prometido não olhá-lo pelo resto da noite, mas não resistiu. Olhou para a escrivaninha e não o encontrou. Sabia que havia deixado ali. Quando pensou em ver o filme, não o levou de propósito para baixo. Não ia resistir em ver o que Marcos tinha respondido sobre seu último ataque de ciúmes. Mas o canalha nem sempre tinha saldo pra SMS.

E, pra ser sincera, nem estava com tanto ciúmes assim. Só mandou aquele textão todo porque queria ver como o namorado reagiria. Sabia que a prima que estava hospedada na casa dele naquele final de semana não era bonita o suficiente para ele tentar algo.

Realmente não achou o aparelho e julgou melhor assim. Voltou para sala sem procurá-lo mais. E quando finalmente jogou-se no sofá de novo, o telefone da casa tocou. Levou mais um susto. Parecia que o som ecoava pela casa toda como se não tivesse móveis para abafar sua reverberação.

Sentou na cadeira ao lado da mesa de canto para atender o telefone sem fio.

— Alô - cumprimentou um pouco sem vontade. Naquela hora, só podia ser trote ou algum telemarketing safado.

Não teve resposta de imediato. Pensou em desligar, mas notou que na outra linha havia uma respiração funda e pesada que quase não dava para ouvir. Tapou a orelha oposta para se concentrar mais no som. E era aquilo mesmo. Alguém arfando de um jeito nojento.

— Quem é? - ela perguntou um pouco irritada.

A resposta demorou e veio seca. Num tom metálico esquisito. Demorou para notar que não era uma voz comum. Era modificada com algum tipo de aparelho.

— Achei que não ia ler a minha carta.

Também demorou para processar o que havia ouvido. Estava esperando um "alô", "boa noite" ou "já conhece os serviços da nossa operadora?".

— O quê? - instintivamente perguntou.

— A minha carta. A preta - respondeu a voz do outro lado. Parecia masculina.

— Como você sabe? - engoliu em seco. Ainda não estava entendendo a ligação. Chegou a duvidar um pouco da sua lucidez, já que o sono havia pincelado seu corpo havia alguns minutos.

— Podia dizer que eu estava escondido dentro do seu armário quando abriu e leu - havia maldade naquela voz. Mesmo atrás do modificador, dava para sentir a má intenção. Mas Paloma deu um sorriso no canto da boca.

— Eu não estava no quarto quando li a carta - ela respondeu despojada.

— Agora você me pegou - a voz misteriosa cedeu. Não havia mais a malícia da fala anterior. Tinha desmontado, desistido do flerte. - Só joguei um verde.

— Quem é? - Paloma perguntou mais uma vez. Talvez ela já soubesse a resposta. As possibilidades eram bem poucas.

— O remetente da carta, ué. Quem mais seria?

Paloma não respondeu. Ficou pensando. Então a voz interveio:

— É só uma brincadeira, relaxa.

— Não acho graça. É você, Sabrina? - fechou o tom da sua voz para ficar mais séria. Estava ficando tão sem paciência que até levantou-se num supetão.

— Não achou graça? Eu gostei. E, na real, pelo jeito, você também. Quando botou fogo na carta pareceu gostar.

Um frio subiu pela espinha de Paloma. Não de medo, pois as chances daquilo ser verdadeiro eram praticamente nulas. Podia ser mais um verde da voz, mesmo que um acerto bem dos escuros. O arrepio veio pela certeza na voz. O tom mal havia voltado e aumentava a cada palavra que dizia.

Imaginou-se sendo observada enquanto queimava a carta na cozinha. Então foi até o cômodo para analisá-lo. Nada além de armários, pia, louça suja, cadeiras, mesa... e a janela aberta. Quando olhou para ela e depois para o quintal agora completamente escuro, arrepiou-se de novo. Dessa vez mais forte.

Apoiou o telefone em seu ombro para usar as duas mãos e fechar a janela o mais rápido que pôde enquanto respondia:

— Pra quê ficar fazendo esse tipo de gracinha, desgraçada filha de uma prostituta? Eu vou te quebrar inteira quando ver a sua cara na minha frente, Sabrina.

— Ah. Não se preocupe. - Agora a voz era calma, serena e sedosa. Como se estivesse no controle de toda a situação. Percebeu que conseguiu o que queria, assustar a garota. - A Sabrina também já recebeu minha carta. Pode deixar que eu mesmo brinco com ela. Mas agora é a sua vez.

Paloma não respondeu novamente. Ficou parada no meio da cozinha sem saber muito bem o que fazer.

— O que foi? Não tá gostando da brincadeira? - A serenidade cínica continuava na voz. Ela aos poucos ficou mais grave no modificador. Mais seca, rouca e estalante. - Quer que eu pare?

— Por que tá fazendo isso, sua nojenta? - perguntou irritada.

— Já disse que eu não sou a puta da Sabrina. - Foi mais incisiva, também irritada. Depois, voltou para o cinismo: - Mas se você tá com tanto medo, posso parar. É só me falar o que eu quero saber e te deixo em paz.

— O que? - Paloma hesitou. Agora imaginou o portador da voz lá no fundo do quintal enquanto queimava a carta. Espreitando atrás do arbusto logo abaixo da luz que piscava. O medo a tomou por completo. Sentiu sua mão livre tremer e as pernas vacilarem.

— É só me confirmar o que tinha na carta e me dizer o que o seu pai fazia com você quando era pequena.

Silencioso, vazio e escuro. Esse era o mundo de Paloma naquele momento.

— Vai - a voz insistiu com maldade. - Fala, Paloma. O que ele fazia quando sua mãe saía de casa pra dar pra o vizinho? Só não se fazer de peituda burrinha. Eu sei quando você mente.

O medo da garota foi instantaneamente substituído por uma adrenalina misturada com uma raiva fulminante.

— Você tá gravando isso, né? - A garota perguntou elevando a voz. Pensou em sua mãe descobrindo tudo aquilo. Sua decepção, choque.

— É claro que estou. Eu preciso sair no lucro. Ou te mato, ou te humilho pra cidade toda. Ainda tem sorte de eu deixar escolher. É só me confessar e te deixo em paz.

Paloma agiu rápido. Poucos segundos antes já tinha planejado o que fazer.

Puxou a primeira gaveta e alcançou a maior faca que conseguiu. Girou o corpo e voltou para a sala.

— Então por que não liga pra ele? Por que não ameaça ele? - Questionou subindo as escadas. - Por que não faz essa sua brincadeira de merda com o pedófilo estuprador?

Entrou no quarto. Ainda deu uma olhada rápida ao redor todo para ver se encontrava seu celular por cima da cama, escrivaninha, roupas jogadas no chão, armário, penteadeira, computador, mas nada.

— Porque com você é mais divertido - respondeu sem muito titubear.

Desistiu de encontrar o celular mesmo ele sendo importante.

— Prefere zoar uma garota que foi abusada do que o abusador? Entendi, seu incel do caralho - ela provocou ainda mais irritada.

Fechou a porta do quarto, trancou com a chave e guardou-a no bolso. Fechou também a sacada.

— É que você se encaixa melhor nos meus planos.

Olhou para o computador e pensou em usá-lo no lugar do celular: precisava chamar a emergência de alguma maneira, mas demoraria muito.

— Então enfia o seu plano no cu - Paloma respondeu e imediatamente desligou o telefone para digitar os números da emergência. Enquanto isso, já estava dentro do seu banheiro, com a porta trancada e mais uma chave no bolso.

Levou o aparelho de volta ao ouvido para pedir por socorro, mas nenhum som saía dele. Estava cortado.

— Merda - retrucou.

Isso poderia significar que a voz estava na sala, mexendo na base do aparelho para tirá-lo da linha. Então ela tinha tempo.

Jogou no chão o secador e a prancha de cabelo para para livrar a pequena banqueta e colocá-la abaixo da janela dentro do box. Subiu e conseguiu alcançar a saída. Com um pouco de dificuldade por causa do tamanho da abertura, alçou o corpo para fora e caiu sobre o telhado fazendo mais barulho do que queria e precisava.

Ficou de pé e tentou se equilibrar bem sobre as telhas instáveis e o telhado íngreme do alpendre. O vento era forte e muito gelado. Olhou por cima para a casa vizinha e notou uma luz acesa na edícula ao fundo. Era longe, mas o suficiente.

— Socorro! Me ajuda! - gritou com toda a força dos pulmões na direção da luz. E foi olhando para ela que percebeu, no canto da visão direita, um vulto no limite do telhado. Quando olhou por completo, gelou e paralisou.

Um ser esvoaçante e imponente.

A luz da lua iluminava apenas metade de seu rosto coberto pelo gorro alto, mas era o suficiente para visualizar parte da máscara. Tinha apenas as aberturas dos olhos. A parte de boca era larga, mas fechada em preto; o maxilar era caído e projetado para frente, lembrando um pouco máscaras de samurai. Era toda revestida por recortes de jornais rasgados e colados aos montes uns sobre os outros, formando uma textura que dava a impressão de ser uma pele muito envelhecida, enrugada, seca e volumosa.

Parecia um demônio. Seu corpo era todo coberto por uma capa preta com vários tecidos escorridos que tapavam toda a sua silhueta.

No mesmo instante que aquele ser fez o primeiro movimento, Paloma saiu de seu transe e pulou para o telhado vizinho.

Não era tão perto. Ainda tinha a distância de recuo do terreno de sua casa e da outra. A corrida até a beirada foi difícil. O sereno havia molhado as telhas. Paloma mal tinha firmeza nos pés para dar um grande salto. Por isso esbarrou primeiro na cerca elétrica, que logo tratou de ejetar no seu antebraço um choque agudo e trépido, depois ralou toda a parte de cima de seu corpo na textura áspera do muro. Tateou-o em busca de suporte, mas o choque ainda deixava seus músculos frouxos e sem resposta de movimento. Girou no ar antes de cair com o ombro direito direto no chão frio e duro. O estalo do osso se rompendo ecoou pelo quintal.

A garota soltou um grito abafado. A dor era tanta que sua visão girava e sua mente estalava. Quase não conseguiu ouvir a pessoa mascarada descer do telhado e caminhar lentamente até ela. Ele se abaixou ao seu lado e colocou a mão direita, revestida por uma luva cirúrgica escura, sobre seu pescoço e apertou-o para impedi-la de grunhir ou pedir por ajuda. Bardou na sua frente uma faca de caça com a lâmina preta e fosca, igual ao papel da carta.

Ele a soltou e tirou sua mão dela. Paloma pensou em tentar gritar uma última vez, mas foi vencida.

— Era só ter dito a verdade com todas as palavras - a voz soou metálica igual no telefone. Mas presencialmente era ainda mais horripilante. Paloma arregalou os olhos e sentiu um fio agudo passar pelo seu pescoço. Depois percebeu a umidade escorrer por ele. A dor demorou um pouco para vir. Sentiu que, atrás da máscara, os olhos de seu algoz assistiam com prazer o sangue espesso brotar de sua pele. Mas era impaciente. Então perfurou a faca pela ponta três vezes seguidas abaixo do seu seio esquerdo.

A dor era forte, mas não teve tempo de senti-la por completo. Paloma deixou o corpo todo relaxar e a cabeça tombar para o lado. O assassino ainda buscou por algo dentro de suas vestes e repousou o objeto sobre a barriga da garota morta. Era uma carta exatamente igual a que ela havia lido minutos antes e com as mesmas escritas:

"Vamos brincar de filhinha e papai?".

 


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