O Rei Negro escrita por Oráculo Contador de Histórias


Capítulo 15
A melodia




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Quatro guardas reais elfos trajados com uma armadura em tonalidade azul similar as folhas das árvores que agora brilhavam esplendorosamente, estavam atrás da rainha Erilla Luyah. Esta usava um vestido branco de várias camadas finas que harmonizavam respeitosamente ao seu corpo ereto, numa postura imponente. Porém, naquele momento o que mais chamava a atenção era a expressão severa que dominava seu rosto.

—Por que fez isso? – perguntou Sael confuso.

Ela, entretanto, não respondeu. A passos calmos, ganhou proximidade do mercador que estava no chão, contido pelos soldados. Este a encarou com raiva.

—Soltem-no. – ordenou sem elevar a voz e eles obedeceram sem pestanejar – Diga-me quem é você, humano.

—Argh! – resmungou quando os elfos o soltaram, ficando de pé e batendo nas próprias vestes – Nicolas Araghio, mercador.

Em seguida, ela caminhou até Ada e dessa vez não foi preciso pedir que a soltassem. A esta, Erilla sorriu de maneira breve, mas sincera. A emberlana, por sua vez, só a observou sem necessariamente olhá-la nos olhos. Por fim, a rainha estendeu a mão à Heler, gesto que a garota demorou para entender.

—Confie em mim. – pediu gentilmente.

Embora receosa, a garota acabou atendendo e segurou a mão delicada da elfa, tão logo ficando de pé.

—Meu nome é Erilla Luyah, rainha de Aurora. Primeiramente, quero deixar claro que não é do nosso costume condenar sem julgar.

—Essa humana e sua família feriram uma emberlana! E ela a trouxe de escrava para o nosso reino. – protestou Sael.

—Não foi assim que aconteceu! – replicou o mercador em tom firme de voz – Heler nem sequer mora com o irmão e só descobriu o que estava acontecendo quando chegamos em Calendria. Além do mais, Ada não é uma escrava agora que está com a gente.

—Vocês são calendrinos! – bradou o príncipe.

—E daí? – retrucou Nicolas – Eu não me lembro de ter escolhido o reino onde iria nascer. Você se lembra?

—Que insolência!

—Príncipe Sael! – chamou a rainha com rigidez – Estava para executar alguém sem antes me consultar. Quem te deu essa autoridade?

—Eu... – pensou em como se justificar, mas acabou cedendo a voz da razão e apenas abaixou a cabeça – Desculpe, majestade.

Erilla assentiu satisfeita, mas sem esboçar qualquer sorriso.

—Ainda que estejam com uma emberlana, vocês calendrinos devem saber que não estão em um território aliado. O que vieram procurar em nossas terras?

—Nosso amigo, majestade. – respondeu Heler, sendo mais rápida do que Nicolas que já fazia menção de falar – O nome dele é Gabriel. Acreditamos que ele possa ter vindo para cá.

A rainha não esboçou qualquer reação e era impossível tentar adivinhar no que estava pensando.

—E por que acredita que seu amigo esteja aqui?

—Uma tal de Lady Yashi nos disse.

—Yeshi. – corrigiu o mercador.

—Isso! Yeshi. Desculpa, eu sou do interior, não conheço essa gente importante. – riu a garota, tentando aliviar a tensão que estava sentindo – Só queremos vê-lo e saber se está bem. Depois disso, prometo que iremos embora.

Erilla manteve-se a fitar Heler por mais que alguns poucos segundos. Nicolas olhava de uma para a outra, apreensivo sobre a reação da rainha elfa e desejando que na pior das hipóteses, pudessem sair daquele lugar em segurança. Sael permanecia cabisbaixo, numa mistura de frustração e raiva; era como se estivesse alheio a conversa, preso em seu próprio mundo.

—Se a lady da casa Yeshi de Calendria vos enviou, então não temos motivos para duvidar de vocês.

O mercador estranhou na hora aquela fala. Como justo alguém tão influente de um reino hostil poderia ser bem visto pela realeza élfica?

—Gabriel está conosco. Meu marido, o rei Yliel, bem como a princesa Leeta estão com ele. Todavia, acredito que já estejam retornando depois de toda essa confusão que provocou o chamado da floresta Lazúli.

Heler abraçou a rainha e todos ficaram perplexos. Os soldados fizeram menção de intervir, porém Erilla os impediu com um aceno sutil.

—Ele está vivo! Obrigada! – ao se dar conta do que estava fazendo, a garota deu um pulo para trás, juntou as mãos e curvou a cabeça – Me desculpa! Eu exagerei...

—Não se preocupe, Heler. – disse a rainha gentilmente – Isso afasta qualquer suspeita sobre a amizade de vocês. Me acompanhem.

Os soldados entraram em formação para escoltar a todos. Sael, que até então estava absorto em pensamentos, sentiu uma mão em seu ombro e imediatamente olhou para a pessoa ao seu lado.

—Eles são pessoas boas. – afirmou Ada, que embora fraca, conseguia sorrir – Ainda assim, é bom saber que nós ainda protegemos uns aos outros. Emberlyn sempre se lembra.

O príncipe apenas assentiu com a cabeça e não disse nada, mantendo-se isolado.

Pela manhã, quando o sol já raiava no céu limpo, o coche de tom perolado com contornos dourados cruzou o caminho adornado por vegetação que levava ao palácio real. Quando Gabriel, que desembarcou por último, olhou na direção onde deveria estar Julith, viu que além dela estavam mais dois cavalos. E do outro lado, tinha uma carroça que ele reconheceu na hora. Sem conseguir assimilar muito bem, seguiu o rei e a princesa, cruzando as portas vigiadas por dois guardas de armaduras azuis.

No hall de entrada, onde estava a exuberante árvore de folhas azuis, ele pôde ver uma elfa de cabelos dourados e facilmente a reconheceu como sendo Sylie. Esta parecia realmente compromissada a fazer tranças em alguém, talvez Aelin? “Não importa, preciso saber se o Nicolas está aqui.” Pensou impaciente, porém com um olhar mais atento, viu que os cabelos sendo trançados eram pretos e longos. Embora aquela pessoa estivesse usando roupas élficas, sua voz era bem familiar e não tinha a elegância dos elfos.

—E pensar que eu quase morri há algumas horas. Cara, tudo isso é loucura! – riu a garota.

—Parece bem animada para alguém que quase morreu. Não sei dizer se isso é bom ou preocupante. – comentou Sylie.

—Heler?

A garota olhou para trás e seu rosto se encheu de uma genuína felicidade. Seus olhos castanhos brilhavam como se fossem transbordar a qualquer instante e ela correu em direção ao rapaz, se chocando num forte abraço. Sylie não escondeu a satisfação em rever os três que acabavam de chegar. Yliel estava confuso a respeito de tudo aquilo, assim como Leeta que sentiu uma fisgada incômoda na barriga ao se dar conta de que outra garota estava abraçando o rapaz.

—Seu idiota! Eu disse que odeio quando meus amigos somem! Por que fez isso? – dizia enquanto batia nos braços dele, mas sem soltá-lo do abraço.

—Eu não tive tempo de escrever, me desculpe. – ele sorriu – Muitas coisas aconteceram, pentelha.

—Usurpador idiota! – murmurou e então se afastou dele, dando um forte tapa em seu ombro e rindo – Ou melhor, Gabriel!

—Nossa! – disse em tom de surpresa – É a primeira vez que você me chama pelo nome. Será que eu acordei em outro mundo de novo?

Ambos começaram a rir, até a garota se dar conta de Yliel e Leeta. Não demorou para ligar os pontos, se lembrando do que a rainha tinha dito e para logo saber quem eram eles. Diante disso, os cumprimentou com todo o respeito que sabia; e isso se resumia a curvar um pouquinho a cabeça.

—Majestade! Alteza! Muito prazer, sou Heler Hallas, da Vila dos Farrapos.

—Encantada, senhorita Hallas. – respondeu Leeta gentilmente.

—Igualmente, senhorita Hallas. Espero que a amiga de Gabriel esteja sendo bem tratada em nosso reino. – disse Yliel.

—Ah, sim, com certeza! – respondeu ela sorrindo com certo nervosismo.

Enquanto todos conversavam no hall, Nicolas e Ada chegaram. O mercador usava roupas élficas na coloração cinza, que devido ao seu corpo robusto, tinham ficado ligeiramente apertadas. Já a emberlana estava dentro de um bonito vestido de tecido fino azul celeste, não suficiente para cobrir os tornozelos e deixar evidente que ambos estavam muito bem enfaixados. Seus cabelos já não estavam bagunçados e toda a sua pele estava limpa, porém o mais importante de tudo, ela estava com uma expressão tranquila em seu rosto.

Ao colocar os olhos em Nicolas, Gabriel desatou a gargalhar, ao passo em que o mercador se aproximou calmamente, fez uma meia reverência para Leeta e Yliel, então deu um mata-leão no rapaz.

—O que é tão engraçado, hein, filho da mãe? – rosnou para Gabriel, rapidamente encarando o rei e a princesa – Me desculpem, majestade, alteza, não vou mata-lo. Até porque isso não adianta mesmo. – debochou.

—Espera! Tempo! Tempo! – disse o rapaz rouco e logo foi largado – Desculpa, senhor Nicolas, mas nunca te imaginei usando essas roupas.

—Eu disse que não queria! Eles insistiram que eu estava muito sujo e que precisava ficar apresentável. – replicou indignado.

Ao ver que o rapaz parecia à vontade na presença dos demais humanos, tanto Yliel quanto Leeta deixaram de se preocupar. O rei, no entanto, notou algo de diferente em alguém no recinto. Ada olhava fixamente para Gabriel numa mistura de perplexidade e confusão. Passo após passo, ela foi se aproximando e reparando nas expressões dele, em seus olhos de um raro tom de verde e na maneira como falava. Em algum momento, ele percebeu que estava sendo intensamente analisado e se voltou para a emberlana, agora inexpressível. Aos poucos o ambiente foi ficando silencioso e todos se puseram a assistir a cena; Heler, Nicolas e Sylie entendiam muito bem o peso daquele encontro. Esta última se apressou a cochichar nos ouvidos de Yliel e Leeta, os deixando cientes e agora, várias vezes mais interessados no que estava acontecendo.

—Por que vocês ficaram quietos de repente? – indagou o rapaz, tão logo voltando-se para Ada – Posso fazer algo por você?

—Majestade...?

—O que? – meneou a cabeça confuso – Escuta, o rei é o senhor Yliel. Está tudo bem com você? – perguntou preocupado.

Quando ele deu um passo para segurá-la e oferecer auxílio, esta se prostrou aos seus pés e começou a chorar.

—Meu rei... Meu rei...

Desnorteado, Gabriel olhou para todos, especialmente para Heler e Nicolas. Enquanto a primeira sorria, este último tinha nos olhos um olhar de absoluta preocupação. Para o mercador, era cada vez mais palpável aceitar que ali, diante dele, se encontrava o Rei Negro na forma de um rapaz ingênuo e inexperiente. Isso o estava dividindo.

—Moça! Ei, moça! – chamou já se abaixando para ajuda-la a se levantar – Pare com isso. Vem... Isso, vem... Não precisa fazer essas coisas pra mim, eu não sou rei.

—Sim, o senhor é! Todos achávamos que tinha morrido, mas seu povo nunca se esqueceu do senhor!

Foi aí que ele finalmente entendeu e isso lhe deu um forte calafrio na espinha. Estava para se desculpar com ela pelas vestes sujas de terra graças aos treinos nas cordilheiras, contudo sua mente foi tomada por uma multidão de pensamentos. Não sabia como agir, nem o que dizer, estava tremendo.

—Você é... de Emberlyn, certo?

Ada assentiu com a cabeça.

—Sim, senhor. Me chamo Ada.

—Desculpe, Ada... Mas eu não sou o rei que estão esperando.

Ele desviou o olhar e sem dizer uma única palavra, seguiu para o grande corredor que levava ao quarto onde estava hospedado. Leeta fez menção de ir atrás, mas Yliel repousou a mão em seu ombro e disse:

—Deixe-o. Ele precisa descansar.

Enquanto estava quase que completamente submerso na banheira de cor preta e pés dourados, via a si mesmo no reflexo da água onde a espuma não alcançava. Como num loop infinito, ficava revivendo as palavras e o comportamento da emberlana que por si só já colocavam em seus ombros uma carga até então desconhecida. Tinha visto sofrimento nos olhos dela, aliás, muito sofrimento e sabia que isso fora causado pelo seu outro eu. “Estão esperando por você, Gabriel Eichen. Não por mim. É incapaz de entender as aflições do seu próprio povo?”

O rapaz notou que seu reflexo tinha mudado e ficou intrigado a respeito disso. Não conseguia ver seus olhos, por mais que tentasse limpar a espuma repetidas vezes. Em determinado momento, enxergou aquela armadura e seu coração disparou no mesmo instante, fazendo ele se recolher ao máximo na borda da banheira.

—Você fala demais.

A mesma voz sombria, grossa, quase gutural... Sentia ela vindo de todas as direções e ecoando como se ainda estivesse nas Cordilheiras do Oeste. Todavia, ao perceber que ele finalmente tinha se pronunciado, reuniu coragem e o confrontou:

—Não viu como ela se comportou? Não viu nos olhos dela toda a dor de Emberlyn? Do seu povo!

—E o que quer que eu faça, garoto...? Está me oferecendo o controle deste corpo? — perguntou e riu em um tom realmente diabólico – Eu não recusarei, mas é melhor que saiba... Se isso acontecer, um mar de sangue e desespero inundará Eastgreen...

Os olhos avermelhados finalmente surgiram pela abertura do elmo negro e queimavam como um poço repleto de lava. Nesse instante, o garoto sentiu uma presença esmagadora que aos poucos ia distorcendo seus sentidos. Várias vozes sussurravam, uma escuridão sem fim tinha tomado conta do teto e agora parecia estar cercado por um mar de águas sombrias.

In... Vi... In... Vi... In... Vi...

Vozes de mulheres e crianças repetiam várias vezes essas sílabas. Quando falavam, pareciam estar dentro da sua cabeça, ecoando com mais intensidade do que a voz do Rei Negro.

—Eichen! – gritou o procurando no reflexo, mas já não o encontrava.

As vozes ficaram distorcidas e medonhas, como cânticos macabros que pareciam vir de todas as direções, uma melodia solitária, odiosa e inegavelmente assustadora como jamais poderia ter imaginado que existiria. Por alguma razão desconhecida, a cada vez que repetiam aquilo, calafrios intensos percorriam seu corpo, era como estar perdido na mais sombria noite de lua nova, cercado de...

...De...

.....................Ele................................

....................................está...........................

Aqui........................

—AAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAAH!!!!!!!!!

In... Vi... In... Vi... In... Vi... In... Vi... In... Vi... Vi... In... Vi... Vi... In... Vi... Vi... In... Vi...

—Alguém me tira daqui... Alguém...

—Olha pra mim... — pediu uma voz tão distante... Quem era? Nunca tinha escutado antes.

In... Vi... In... Vi...

In... Vi...

—Precisa olhar para mim, Gabriel...

—Eu quero morr... — o garoto mexeu os lábios, mas deles saíram as mesmas vozes horríveis.

—Esse não é você...

Toda a perturbação começou a cessar como a neblina que se dissipa. Aos poucos, viu a silhueta de uma criança que lhe estendia a mão. Nesse momento, não sentiu medo, ao contrário, desejou segurá-la e esticou o braço ao máximo, porém continuava tão distante...

Ao abrir os olhos, se viu dentro da banheira e estava tremendo. Aquilo que tinha visto... Como poderia existir? Não, não poderia, algo tão macabro certamente não seria realidade. Aliás, tudo tinha voltado ao normal. Apressado, tratou de se enxugar e conferir se mais alguém estava no quarto. Notando que permanecia só, vasculhou no guarda-roupas a procura de vestes limpas. Quando encontrou trajes na cor roxa, os achou feios e preferiu os de tons esverdeados, que por sinal se pareciam muito com os seus olhos. Não queria pensar em tudo o que tinha acabado de acontecer, era assustador demais, um pesadelo que precisava ser esquecido antes do anoitecer. Porém, agora mais do que nunca, estava decidido a não tentar depender dele.


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