Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 4
III — Your eyes, they shine so bright


Notas iniciais do capítulo

Um capítulo do nosso solzinho ☀



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“Seus olhos, eles brilham tanto

Quero guardar esta luz

Não consigo fugir disso agora

A menos que você me mostre como”

(Demons — Imagine Dragons)

 ★

Na próxima vez.

Que grande imbecil. Desde quando era tão pretensioso?

Num primeiro momento, Alex cogitou usar o magnetismo a seu favor uma vez mais. Já o havia utilizado na primeira conversa, então o que o impedia de fazê-lo nas demais? Seria mais fácil, não seria? Era a velha tática das dioneias: manter-se atraente, criar a distração perfeita, conquistar confiança e… 

Não era preciso terminar a frase. Todos conhecem as dioneias. São plantas clichês.

Alex sentia-se feliz. E isso era um problema.

Quando deixou o Refúgio, explorar o mundo externo era natural. Os tempos eram outros, os humanos eram outros. Desde as Grandes Guerras, no entanto, seu instinto de sobrevivência falava mais alto. Há décadas não reconhecia atos de gentileza. Como poderia abandonar alguém que fazia com que se sentisse feliz?

Ele e Levi não iriam precisar viver em modo furtivo se o próprio pai não fosse responsável pela Debandada. As Estrelas conviviam pacificamente com os humanos. Ninguém jamais tinha colocado a questão da tomada de poder em pauta até a Debandada. 

Alex agora vivia um dia após o outro no piloto automático. Não desenvolvia laços. Ia embora, abaixava a cabeça, não olhava para os lados. Tudo fazia parte de uma rotina imposta. Com Valerie, entretanto, havia aberto sua dioneia e tropeçado nela antes que Valerie pudesse ser exposta à distração. Alex não passava de uma mosca.

Uma mosca imortal, a ironia ecoava.

Valerie era verdadeiramente cativante. Os tempos eram outros, e os humanos continuavam cegos. Simplesmente não conseguiam ver que diferenças eram dádivas. Até a página dois, é claro. Deuses e humanos nunca foram inteiramente bons ou ruins. Mas… 

Ela fazia com que se sentisse bem-vindo. Pela primeira vez em muito tempo, alguém o encarava nos olhos, e não desviava-os para a cicatriz em seu rosto. Sempre que Valerie voltava os doces olhos escuros para ele, sentia que o coração estava prestes a explodir em agradecimento. 

Que imortal mais patético, ele era. Deixando-se levar por um olhar doce. Por músicas, sorvete… Qual era a relevância daquilo para uma vida que nunca se encerrava? Precisamente, nenhuma.

Após um suspiro, Alex encostou-se à porta do carro. Valerie olhou-o de esguelha.

— Não gostou dessa? — ela indagou, num tom inseguro. — Se for o caso, ela já está acabando… 

— Hum? Estou! Digo... Gostei. Quem são?

— The Doors. Os caras tem um estilo único. Escuta só esse teclado! O instrumental é longo, mas é muito maneiro. É uma das minhas bandas favoritas.

Alex escutou. E ela tinha razão. Aquela década não parecia ter nada de positivo, com exceção das músicas.

— Esse vocalista é muito louco — Valerie continuou. — Na vez que tocaram isso aqui no Ed Sullivan, a produção mandou mudar a letra, você ficou sabendo?

— Ah, é? Por quê?

— “Alusão a drogas”. A letra está mais para... Hum... Um advérbio de intensidade. Mas você sabe como as coisas funcionam na televisão.

— Sei. Típico programa de família.

Valerie concordou com a cabeça, virando uma esquina. Alex aproveitou a ocasião para olhá-la de canto. Era fato que ela era uma mulher muito bonita. Com os cabelos cacheados e acobreados e os olhos cinza escuros, como uma tempestade no horizonte, não era exatamente uma beleza óbvia como a de sua irmã mais nova. Veronica era magra, baixa, olhos claros, padronizada. Valerie era quase tão alta quanto ele, o físico não era esguio – era uma mulher real, desproporcional. Apesar de parecer fazer um esforço enorme para se esconder e não se permitir ser vista, ele a tinha achado muito atraente.

Alex estava pensando muito sobre isso. Francamente…

— Qual letra queriam que eles mudassem?

Valerie sorriu, mesmo que fosse um sorriso que viesse junto a um franzir de lábios.

— O verso “girl, we couldn’t get much higher”. O problema foi o higher.*

— E mudaram?

— Não, não mudaram. Os caras se apresentaram com a letra original.

— Uau — ele riu, imaginando a cena. — Nunca mais foram chamados pro show, eu suponho.

— É. Foi bem rock’n’roll.

— Com todo o respeito, Valerie, mas você não tem cara de ser rock’n’roll — Alex ousou brincar, recebendo um olhar curioso em resposta. — É verdade! Você tem cara de quem está começando a ir para o movimento hippie, mas ainda não se decidiu. Lembrei da expressão: parece estar em cima do muro.

Rock’n’roll é paz também, irmão — Valerie abriu um sorriso molenga, arrancando-lhe um riso genuíno. — Amor também. E o rock acolhe a todos, sem distinção. 

Ele ergueu as mãos em defensiva. De supetão, Valerie mudou o rumo da conversa:

— Por falar em paz... Você não recebeu a carta de alistamento ou tem inaptidão?

Um tempo na terra humana exigia que algumas respostas estivessem na ponta da língua. Não era um cidadão americano propriamente dito, não havia possibilidade de receber uma carta de convocação. Teoricamente, ele sequer existia.

— Inaptidão. Meu exame médico provou que o meu coração está podre feito uma esponja. Além disso, eu não sou nem um pouco patriota.

— Ah... Sinto muito por isso, mas... Que bom…

Alex observou-a com atenção.

— Seu padrasto está lá? Lembro que você mencionou isso, quando a gente conversou.

— Está sim. Mas eu tenho grandes esperanças de que ele volte em breve. A casa tem estado sempre aos nervos à flor da pele desde a convocação. Esses protestos... Espero que sirvam... Sinto falta dele, sabe...?

Ela mal conseguia articular tais palavras, como se apenas o fato de pronunciá-las em voz alta fosse doloroso. Alex desejou ter o poder de apagar aquela dor. Infelizmente, seu dom era bastante limitado. 

— Enfim... — ela se recompôs, retirando a fita e rebobinando-a com destreza. Quando é que tinham estacionado? — Tudo bem. A vida da gente não para. Não vou ajudar ninguém perdendo as estribeiras…

— Sabe… Colocar os sentimentos para fora, às vezes, pode ser benéfico… 

Valerie desviou o olhar. Enquanto desligava o carro, murmurou:

— É. Acho que… Isso é o que mais me intimida em você. Não sei se é porque acabamos de nos conhecer ou se é porque parece que já nos conhecemos antes, mas, normalmente, eu não falo tanto. Pode me dizer se eu estiver sendo muito expositiva. Se… Ficar entediado, e tudo o mais.

— Não estou nem um pouco entediado — Alex sorriu, mesmo que ela não pudesse ver. — Sabe que eu percebi uma coisa engraçada? É você quem está me levando para sair. 

— Ah, meu Deus… É mesmo — ela arregalou os olhos, provocando uma onda de riso nele. — Meu Deus, que desastre… 

— Eu não acho. Estava mesmo tentando encontrar uma forma de te dizer que eu não sabia qual sorveteria era boa ou não, é a minha primeira vez em Miami… 

— Ah! Ai, menos mal. Poxa, vê se não me assusta desse jeito!

Alex deu de ombros, sorrindo. Então, ofereceu a mão para que ela a segurasse. Quando Valerie aceitou a mão, um pouco de tranquilidade instaurou-se sobre eles. Se não podia dirigir, ao menos poderia conduzi-la por algum terreno seguro.

Com os ânimos recobrados, ambos desceram do carro e caminharam até a sorveteria beira-mar. Apesar de o verão só se iniciar dali algum tempo, os banhistas não pareciam se importar, porquanto que a areia estava apinhada de pessoas em pleno anoitecer.

— Não está com calor? — Valerie indagou, olhando de cima a baixo para as roupas escuras de Alex. — Que inveja desses banhistas... Eu tenho que trabalhar de terninho! A gente não tem sexta-feira informal por aqui.

Alex afastou os pensamentos de Valerie vestida de qualquer outra forma que não fosse um terninho. Mesmo assim, seu corpo inflamou-se em combustão, refletindo nas bochechas. Ele foi obrigado a pigarrear. 

— Só um pouco... Agora é primavera…

Ela riu de sua teimosia. Novamente, aquilo significava perigo.

— É verdade. Bom, e como é que vai você depois do bolo? A gente não se falou desde então, o que tem a me dizer que acha que vale a pena? Você sabe mais de mim do que eu de você, se a gente colocar numa balança.

Alex ponderou todos os modos de conduzir aquela conversa. Claro que sim. Olá! Eu sou um ser que, em tese, não morre. O bolo que eu levei foi do meu amigo que... Ah! Por sinal, também não morre. Nos encontramos de quatro em quatro anos e, por uma grande ironia do destino, justo no nosso encontro nos conhecemos. Ele vai ficar uma fera e me culpar por trair nosso plano. Que sequer se deu início. O mundo não é mesmo um lugar pequeno? Por que não marcamos um churrasco para o 4 de julho? 

A ironia não lhe cabia bem. Com um muxoxo, Alex começou:

— Nada demais... Trabalhei durante a semana, assim como você, eu suponho... Minha vida não é exatamente empolgante ou agitada.

Um dia, já foi. Burrice humana em usar o ócio das Estrelas para guerrear. Nós aqui, ansiando por uma velhice a ser desfrutada, e eles roubando o futuro de seus jovens.

— Ah, é mesmo? Com o que você trabalha?

— Eu sou tradutor — aquilo não era mentira. Alex conhecia muitas línguas e era um trabalho honesto. Quase indetectável. Agora ele era Alexander Konstantin Weber, para fins judiciais. — E você?

— Sou estenotipista! Nós dois gostamos de letras, então?

Merda, ele simplesmente não sabia o que era isso. E como diabos isso poderia estar relacionado com o tribunal? E com letras? 

— Eu transcrevo as declarações dos réus num aparelho — Valerie riu baixo, entrando na fila para o sorvete. — Assim, se for necessário consultar alguma informação, os estenotipistas têm o registro. Cada uma tem um código próprio, porque também não dá para escrever tudo que é ditado.

— Ah! Eu não sabia que essa profissão tinha esse nome — Alex trocou o peso dos pés. — Maneiro. Desculpe a pergunta, se for violação de privacidade, mas... 

Valerie gargalhou, cruzando os braços na frente do corpo. Alex temia estar perdido para todo o sempre, apenas com aquele riso. Seria assombrado por ele, pela eternidade.

— Está me perguntando se eu registrei algum crime ou história tenebrosa para dividir?

Alex ergueu uma sobrancelha. Apesar de tentar parecer descontraído, ele ligou o alerta e manteve-o brilhando em tons de vermelho vivo.

— Tem certeza de que não lê mentes?

— Ah, para! Esse negócio de mutação fica só nos quadrinhos, morô? Eu sou normal. Normal ao ponto de ser chato. 

— Eu discordo — Alex retrucou com gentileza.

Valerie abriu um sorriso constrangido. Alex jamais a culparia por isso. Farejava pessoas que não conseguiam receber elogios. Sem perder a compostura, Alex apertou a mão dela com cuidado. Ainda com um resquício do sorriso nascendo no canto de seus lábios, ela indagou:

— Que sabor vai querer o sorvete? Vou pedir chocolate com menta.

— Baunilha, por favor.

— Ok. E você, lê mentes? — ela ergueu uma sobrancelha e jogou os cachos para trás, e o aroma de creme de cabelo de coco fez com que ele sorrisse. Alex resistiu à tentação de fechar os olhos e pedir um minuto para inspirar o cheiro. — Seria legal ter poderes.

— Hm-hm. Mas... Eu faço outras coisas tão legais quanto.

— Ah, é? O que você me oferece, Alexander?

— Digamos que eu... Tenha certa persuasão. Mas uso só para coisas boas, prometo.

Era a oportunidade perfeita para que Valerie lesse as entrelinhas de sua declaração. Estava sendo literal, implorando para que ela de alguma forma soubesse do que ele estava falando e fugisse. Mas é claro que não havia nenhuma possibilidade disso acontecer. Era mais uma das coisas que aprendera com a experiência.

— Não duvido — ela riu, entregando o sorvete a Alex empilhado em duas bolas numa casquinha. Foi inevitável não levá-lo à boca com medo de cair. — Você parece ser do tipo que as pessoas simplesmente não conseguem dizer não. Eu, pelo menos, não conseguiria, mas se alguém afirmar que eu disse isso em voz alta vou jurar que é mentira.

Deixe estar, Alex lamentou enquanto ria junto a ela. Não podia fazer nada se haviam atribuído ao seu dom o nome de magnetismo. Poderia muito bem ser persuasão, como preferia. Não era lá muito atraente atribuir “carisma” como um poder. Alex sequer podia considerar aquilo como um poder. Ela realmente não tinha escutado a História? Seu povo havia desaparecido do mapa tão fácil?

— Eu posso ser bem convincente quando quero — Alex voltou a insistir, dessa vez num tom cômico. — É muito perigoso.

— Maneiro. Vou me lembrar disso quando surgir a oportunidade.

Alex gargalhou, observando-a enquanto ela equilibrava o sorvete. Foi uma pequena conquista. 

— Não me faça rir, eu vou derrubar! Vem, vamos sentar, tem uma mesinha ali. Georgia Jones diz que a mesa é dela, mas o que os olhos não veem o coração não sente, não é?

— Não faço ideia de quem é Georgia Jones, mas concordo.

— Ah, é... — sentando-se na mesinha, Valerie fez um gesto indiferente com a mão. — É que parece que eu te conheço há anos. Eu já disse isso, né? Enfim, Georgia Jones é basicamente o pavor de toda garota de beleza mediana em Miami Beach. A aparência dela é humilhante, mas o que ela tem de bonita tem de cruel. A diversão da vida dela é rebaixar os outros. Ronnie vive dando-lhe respostas insolentes. 

Alex sorriu de lado. Se fosse com ele, essas picuinhas seriam resolvidas na base da pancadaria. E ele não podia ignorar uma vez mais o comentário de Valerie sobre parecer conhecê-lo há anos. Gostaria de ignorar aquela conexão, porém a cada minuto aquilo se provava ser um esforço vão.

— E você?

— Eu? Bom, eu fico quieta. Minha saliva vale mais. Um sorvete. Um refri… 

Então, Alex gargalhou. Foi um evento e tanto. A casquinha deu uma volta completa e as duas bolas não caíram por milagre. Daí, Valerie riu junto a ele, atraindo os olhares de todos na sorveteria. Alex sentiu a nova sensação socando-a bem na boca do estômago. Ah, merda.

No manual de identificação de sentimentos, “borboletas no estômago” significava “desconforto” ou “atração”. Porém, quando significavam ambos, nunca havia uma resposta completa sobre como agir. E Alex não era exatamente o tipo que tinha completo controle sobre seus sentimentos. 

— E então, vai me contar algum caso?

Valerie ergueu uma sobrancelha, divertida. Após mais um pouco de sorvete, ela se ajeitou no banco de Georgia Jones.

— Em junho de 67...


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Notas finais do capítulo

Confirmações verbais: o Alex é uma Estrela!

*nos bastidores do programa Ed Sullivan Show, de setembro de 1967, 15 minutos antes do começo do programa, um produtor do show entrou no camarim do The Doors. Ele disse ao grupo que eles precisavam mudar uma linha da música, “Light My Fire”, especificamente a letra, “Garota, não poderíamos chegar muito mais alto”. Ele explicou que a palavra “alto” era inadequada para um programa familiar na televisão nacional devido à sua associação com o uso de drogas ilegais. Embora Jim Morrison, o vocalista, estivesse furioso e inflexível em não mudar a música, o grupo cedeu e disse ao executivo que alterariam a letra conforme solicitado. Porém, assim que o produtor saiu da sala, Morrison declarou: “Não vamos mudar uma palavra”.
Quando chegou a hora da frase “Garota, não poderíamos chegar muito mais alto”, Morrison, o poeta inflexível e artista intransigente, cantou-a exatamente como havia sido escrita. Ao terminar a agora infame letra, a câmera capturou o guitarrista Robby Krieger com um sorriso rápido, mas revelador. Mas o produtor de Sullivan e os executivos da CBS não sorriram.
Após a apresentação do The Doors, Sullivan pode ser visto batendo palmas e murmurando as palavras: “Isso foi maravilhoso. Simplesmente ótimo!” para a banda. Mas em vez de apertar a mão do grupo, ele foi direto para um comercial da Purina Dog Chow.

Momentos da história da música que amo xD para quem quiser conferir a torta de climão: https://youtu.be/igGSmii2KV0?si=OGznYW4XeJT608px



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