Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 26
XXV — Can I handle the seasons of my life?




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“Eu peguei o meu amor e o destruí

Eu escalei uma montanha e voltei

E vi meu reflexo nas colinas cobertas de neve

Até que a avalanche me derrubou

Oh, espelho no céu, o que é o amor?

Será que a criança no meu coração pode se erguer?

Será que posso navegar pelas ondas mutáveis do oceano?

Será que posso lidar com as estações da minha vida?”

(Landslide — Fleetwood Mac)

 ★

Caminhar pelos corredores do supermercado fazia parte da rotina. O mesmo ziguezague quinzenal trazia produtos semelhantes, com exceção de um produto ou outro. Daquela vez, foi um cardigã, uma meia-calça fina - a outra havia rasgado nas coxas bem no meio do expediente. Para Frank, uma garrafa de vinho rosé e uma nova gravata, pois Valerie tinha sentido vontade de lhe fazer um agrado. 

Pasta de dentes. Sabonetes. Produtos para cabelo. Creme de barbear. Desodorante. Papel higiênico. Meia-volta naquele corredor, pois Valerie lembrou num estalo de que Frank tinha comentado por alto que precisava de um novo aparelho de barbear. Absorventes, só de garantia. 

Um pacote de macarrão. Molho. Milho, ervilha, grão-de-bico. Tomates, batatas, cenouras, cebolas, brócolis. Alho. Laranjas, limões, leite, óleo, manteiga, farinha de trigo, café, refrigerante. Hambúrgueres, bife e frango.

Produtos de limpeza e uma nova vassoura. Sempre no fundo. Foi com sorte que não ficaram para trás.

Antes de voltar para Little Havana, encher o tanque do carro. 

Nada anormal ou que justificasse o muxoxo saído dos lábios de Frank enquanto olhava o cheque. Contenção de gastos. 

— Tenho certeza de que o meu salário compensa os gastos extras — Valerie argumentou num murmúrio. — E eu sempre compro apenas coisas para a casa, Frankie. O que é que mais entrou de gastos neste mês? 

— Sei disso, querida. Mas, talvez, seja a hora de começar a pensar no futuro. Fazer poupanças.

Agora você quer começar a poupar? Pensar no futuro? O futuro é agora, Frank! 

Valerie não pode evitar o traço de ironia que escondeu-se em meio às palavras. A conta poderia muito bem estar no nome de Frank, individual, mas até onde ela se lembrava, era graças a ela que as contas dos produtos para casa se mantinham em ordem. Eletricidade, telefone, casa, carro, água e comida. Era parte de um todo. Não queria ser amarga, mas se dependesse de Frank, eles se sustentariam com charutos, bebidas e velas. 

Sentia falta de quando Frank tirava-a para dançar. De quando ele levava-a para a Calle Ocho, de quando dançavam até a sola do pé doer, do quando divertiam-se seja lá por quaisquer motivos que fossem. De quando Valerie não precisava sentir que precisava se esforçar para se divertir com ele. 

— Antes tarde do que nunca — ele retrucou, na defensiva.

— Essas coisas devem ser tratadas com antecedência. Colocadas na ponta do lápis, planejadas. Não dá pra fazer tudo assim, de última hora. Eu posso ver o extrato dos meses anteriores para comparar, pelo menos?

— Outro dia, prometo que reúno tudo. Não se preocupe com isso. Prometo que vamos nos sair bem.

Valerie assentiu com a cabeça, mudando o vinho para a sacola onde o cardigã se encontrava. Em silêncio, separou o aparelho de barbear, o creme e a gravata e deixou-a ao lado dele no sofá. Frank abriu um sorriso galante, e Valerie tentou reagir à altura. 

— Você é muito gentil — ele beijou-a nos lábios, tão delicado quanto um sopro de asa de beija-flor. — Muito obrigado por cuidar de tudo. Eu não mereço você, sabia?

— Tudo bem, Frank. Tudo bem. 

— Como assim, tudo bem

— Talvez você tenha razão. Talvez você não me mereça, mesmo. Ou talvez seja o contrário, eu sei lá.

Antes que pudesse ouvir a resposta dele, Valerie recolheu seu cardigã, rumou para o banheiro e abriu o vinho com um suspiro. Dispensando a taça, Valerie sorveu o líquido levemente ácido em goles atentos, em busca do que é que Frank encontrava de apaziguador ou indutor à felicidade que ela jamais seria capaz de proporcioná-lo.

Não tinha como saber se era por conta do vinho e nem se era felicidade, porém algo começava a borbulhar dentro de si. Valerie Bowman teve sua oportunidade de entrar em ebulição, agora só faltava essa oportunidade para Valerie Ortiz.

 

Há muito tempo, antes de se casar, quando ainda trabalhava como estenotipista, Valerie economizava dinheiro. Aquele tinha sido um hábito desenvolvido a partir do conselho de sua mãe: dinheiro não é tudo, meu bem, mas no mundo de hoje é necessário. O importante é não fazer com que sua vida gire em torno dele. Quando suas contas fecharem, se lhe sobrar um dólar, guarde-o como se fosse um milhão. Divirta-se, mas só um pouquinho. Depois do casamento, Valerie tinha mantido o costume. Jamais roubaria de Frank, então era claro que as economias dela eram bem mais modestas do que as que vinham do dinheiro que Frank presenteava-a de tempos em tempos. 

Havia o detalhe de que Valerie não tinha acesso à conta bancária. Também não fazia ideia de quanto Frank ganhava. Valerie não trabalhava e já era maior de idade quando seu pai morreu, então qual era o sentido de terem uma conta conjunta? Valerie pagava as despesas do supermercado com o talão de cheques, bem como as eventuais despesas com cuidados pessoais, com o carro ou com um esporádico programa de lazer. As contas chegavam pelo correio, se tornavam decorações da geladeira e dentro de alguns dias desapareciam de vista. 

Frank ganhava apenas o necessário para pagar as contas?

Se fosse no início de seu casamento, aquilo seria até plausível. Contudo, o emprego atual de Frank levava-o a viagens de negócios e estadias, pelo amor de Deus. Não era possível que um emprego assim providenciasse apenas o básico. 

E o salário dela? Tudo bem, não era grande coisa, mas já era suficiente para ao menos bancar o custo da gasolina e uma conta inteira, pelo menos.

Até aquele momento, aquele era um aspecto de sua vida que não era exatamente incômodo. Era como as coisas funcionam, e fim. Por que tinha se tornado incômodo?

— Às vezes, ele se meteu numa dívida ridícula — Veronica opinou, esticando as pernas na cama. Valerie acariciava seus cabelos, usando a constância dos movimentos como fator de relaxamento. — Tipo, se eu chegasse pra você e dissesse: Val, preciso fazer uma cirurgia de emergência. A conta do hospital vai ficar alta, mas eu não posso fazer nada, porque o meu salário é uma merda e tudo custa um absurdo.

— Essa é uma situação hipotética, né?

— Claro que é. Tonta. Eu tô bem. Enfim, uma outra situação completamente diferente seria se eu dissesse: “Val, eu me meti em jogatina. Joguei, joguei, joguei, fiquei sem grana e aí eu… Fiz besteira e deixei a estrutura da casa como garantia de pagamento”. 

— Ah, uau. 

— É, então. Ou se tem drogas envolvidas. Sei lá, acho que pro homem essa coisa do orgulho é bem mais complexa. Mesmo que vocês sejam próximos, se o Frank tivesse se enfiado nesse tipo de coisa seria vergonhoso dividir isso. Faria mais sentido ele falar com um estranho do que com você.

Valerie ponderou a questão, ponto a ponto. Era muito difícil não deixar os sentimentos falarem mais alto, mas com apenas sua intuição não resolveria muita coisa. Intuição era um pontapé, a racionalização era tatear no escuro, mas agir inteiramente com o coração era caminhar numa corda bamba de olhos fechados. 

— Ainda não acho que foi o caso, Ronrom — Valerie mordeu o lábio, interrompendo o afago. — Se fosse algo sério, como drogas ou jogos, não acho que faltaria nada em casa. Frank não iria se preocupar em deixar as contas pagas, nem em fazer a despesa. Querendo ou não, eu o conheço. Quando passa por situações estressantes, ele bebe e fuma muito. E, ultimamente, não tenho notado essas mudanças de comportamento. Acho que ainda não é o que procuro. 

Veronica franziu o nariz, assentindo com a cabeça. Levantando-se da cama, ela passou a caminhar em círculos pelo quarto. Duas cabeças funcionam melhor do que uma. Ainda mais duas tão divergentes.

— Como assim essas mudanças de comportamento? 

— Não sei bem como explicar. Frank está diferente, sim, mas… — Valerie se remexeu na cama, desconfortável. — É algo muito tênue. Você se lembra de quando eu te disse que ultimamente Frank tem sido um perfeito cavalheiro?

— Uhum… Será que ele está planejando alguma surpresa?

— Espero que não. Odeio surpresas. 

— Você costumava amar surpresas… 

— Não desde aquele dia — Valerie resmungou, atraindo o olhar da irmã para si. — Se a minha rotina não seguir um cronograma rígido, sinto que vou simplesmente pegar todos os meus pertences e atirá-los ao chão. 

— Não sei como ainda não teve um dia de fúria, Val. 

Valerie suspirou, observando as unhas que tinham sido pintadas de vermelho mais uma vez. Estava começando a apreciar a cor. 

Compras, limpeza, comida, trabalho, idas ao cemitério, tardes com Veronica… 

A vida não podia – não deveria – ser só aquilo. 

Valerie voltou o olhar para a última gaveta da cômoda, onde se encontravam seus pertences esquecidos que sempre associava a Alex: as fotografias e a camiseta. E suas economias, também. Daí, sussurrou:

— Talvez ele só tenha se perdido no meio do caminho. 

— Uau — Veronica assoviou. — Acho que tenho uma ideia para tentar descobrir o que está acontecendo.

— Sou toda ouvidos.


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