Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 24
XXIII — No one told you when to run




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“Cansado de ficar deitado sob a luz do Sol

De ficar em casa para observar a chuva

E você é jovem e a vida é longa

E hoje há tempo para gastar

E então, um dia, você percebe que

Dez anos ficaram para trás

Ninguém lhe disse quando correr

Você perdeu o tiro de largada”

(Time — Pink Floyd)

 ★

— Um emprego. Emprego?

Frank ecoou de uma maneira afetada, como se Valerie não tivesse dito em alto e bom som. O que era no mínimo estranho, pois a dicção dela não costumava falhar e ela tinha usado um tom de voz que não erguia dúvidas quanto a ser uma frase afirmativa. Aliás, se fosse ser completamente honesta com relação a esse tópico específico, Valerie até mesmo falou sobre o emprego como se estivesse se dirigindo a uma criança de cinco anos. E, veja bem, crianças de cinco anos são muito espertas. Bem mais sensível às coisas que a rodeiam do que a maioria dos adultos.

— Num escritório de Direito Civil — Valerie repetiu, talvez para igualar as coisas. — E hoje foi o meu primeiro dia.

— Sim, eu… Eu já entendi, você acabou de me dizer tudo isso. Não precisa repetir. Eu não sou burro.

— Ah.

Mais uma para as grandes réplicas de Valerie Ortiz. Ficava cada vez mais difícil defender aquela identidade. Pelo menos agora ela sabia que não era um problema de interpretação. 

— É só que… Puxa, isso foi muito repentino — Frank murmurou ao lado dela no balcão da cozinha. Valerie preparava o prato favorito dos apressados: macarrão ao molho sugo. Enquanto isso, Frank espremia laranjas para fazer um suco. Valerie tinha a impressão de que ele estava fazendo isso apenas para ter o que ocupar as mãos. — Quando… Aliás, como você ficou sabendo da vaga? 

— Nos classificados do jornal… Você deixou aberto e eu li antes de fazer as palavras cruzadas. Porque, você sabe, as duas colunas ficam uma do lado da outra. 

— Sim, sim… eu sei.

— Eu simplesmente fui até lá, deixei meu currículo, ligaram de volta para cá para marcar uma entrevista, eu fui até lá de volta e… 

— Acho que eu já entendi bem, Valerie. 

— Ah. Bem… 

Frank esperou pelo resto da resposta, deixando a laranja em sua mão de lado na pia. Valerie também aguardou por uma reação mais decente do marido do que apenas repetir o que ela dizia e afirmar que já sabia. Por alguns segundos, os dois ficaram apenas se encarando, estudando a fisionomia um do outro feito presa e predador. E o pior era que não era possível identificar quem era quem. 

— Bem? — Valerie retomou. Ela tinha aquela tendência irritante de insistir no erro, mesmo que já tivesse provado por a + b que aquilo era perda de tempo, paciência e saliva. Ser teimosa feito uma porta era um de seus maiores defeitos, quando Valerie não estava agindo do extremo oposto e abandonando qualquer causa que lhe exigisse muito esforço. — E o que você acha disso?

— Do emprego?

Valerie suspirou. 

Não, Frank, do macarrão. Óbvio que é sobre o emprego, você está cacarejando feito papagaio sobre isso há cinco minutos e quer que seja sobre qual outro assunto?

Uma estrelinha dourada para seu autodomínio.

— Sim. 

— Isso é… É bom, não é? Hum… Fico feliz por você — Frank voltou a se concentrar no suco, espremendo mais uma laranja e jogando o bagaço na pia. Valerie provou o molho e aproveitou para pegar emprestado o açúcar ao lado dele para tirar a acidez. Mais ácido do que o molho, só a parabenização a contragosto. — Só é um pouco questionável você ter escondido isso de mim como se fosse um segredo de estado. 

— Eu… Fiquei com medo de contar e estragar pela expectativa, sabe…? 

Frank negou com a cabeça, voltando o olhar para ela.

— O que quer dizer com isso?

— Sabe quando… Quando você faz um pedido? “Feche os olhos e faça um pedido”? — Valerie gesticulou com a cabeça, pontuando cada palavra. — É a mesma mecânica. Dizer as coisas que você deseja em voz alta antes de aquilo se realizar perde a magia. Faz com que as chances daquilo acontecer sejam menores. É algo incerto, se você sair por aí falando para as pessoas, faz com que elas criem expectativas… Entende aonde quero chegar?

— O problema é que um emprego não é um pedido, Valerie… Não pode agir como se tudo fosse uma grande brincadeira e me deixar de fora de assuntos importantes assim — ele grunhiu, pegando de volta o pote de açúcar. Os olhos dele estavam incandescentes. Eram castanhos e gentis em dias normais, porém o que ela via agora era uma nuvem de escuridão pairando sobre eles. — Eu sou seu marido, não seu vizinho ou algo do tipo. Será que você não entende o que é respeito?

Valerie abaixou o fogo, resistindo à vontade de fechar a cara. Nuvens de chuva anunciam sua chegada com antecedência, porém a chuva nunca é uma certeza. Olhando para Frank, Valerie se perguntava se era assim que ele se sentia com relação a ela também. Uma grande nuvem escura pairando sobre sua cabeça, acompanhando-o sem que tivesse outra opção além de sempre carregar consigo um guarda-chuva. 

— Não sabia como você iria reagir — Valerie baixou o tom da voz para um sussurro, na tentativa de apaziguar as coisas antes mesmo de elas estourarem. — E eu também não sabia muito como iria dizer. Pensei que…

Ela se interrompeu antes de escolher as palavras erradas. Não podia simplesmente falar o que queria sem consequências. Era por muito menos do que isso que se decretava uma guerra. E, por mais que seu casamento jamais fosse enquadrar-se como uma guerra, tampouco poderia ser considerado como um exemplo de paz.

— Pensou que eu fosse impedir você? — Frank zombou. — Que tipo de monstro você acha que eu sou? 

— Eu não disse isso! 

— Mas pensou. Admita.

— Eu acho muito pretensioso da sua parte achar que sabe em quê eu penso e agir conforme seu achismo — Valerie ralhou, sentindo-se logo depois como uma velha ranzinza. Céus, ela já teve dias melhores. — Eu posso ter errado em não contar, mas isso não te dá o direito de ser um completo… 

Frank ergueu uma sobrancelha. Valerie o imitou, optando por desligar o fogo logo de uma vez. Pelo andar das coisas, ela sequer teria apetite para jantar depois. 

— Vá em frente — Frank cruzou os braços, tranquilo. De certa forma, aquilo a irritou ainda mais. Era quase como se ela fosse um argumento contraditório e ele estivesse prestes a expô-la diante de um júri. — Diga. Um completo…? 

— Um completo idiota! Está agindo há tempos como um idiota, Franco Ortiz! E nem se dá conta disso!

O alívio veio como a chuva bem-vinda num dia de muito calor. Se prestasse atenção, Valerie poderia até mesmo ouvir o som do asfalto quente chiando. Entretanto, os chiados vinham apenas da panela de pressão. Ainda assim, ela seria capaz de gargalhar por ter finalmente dito o que ela estava entalado na garganta. 

— Eu estou farta de ser tratada com tamanha indiferença — Valerie continuou, não podendo evitar subir o tom da voz. Que se danasse o autodomínio. — Você faz o que bem entender, chega em casa fedendo a bebida e acha que pode consertar as coisas com vinho e palavras bonitas! Quem é você para pedir respeito quando em dez anos quem foi desrespeitada fui eu! 

— Você? — ele rebateu, rindo com ironia. — Eu jamais ergui a mão pra você, Valerie. Não seja tão dramática.

— E por isso acha que é um modelo a ser seguido? Ah, francamente. Você sequer está escutando o que está dizendo? Isso é um absurdo!

Frank caminhou para perto dela, ficando a apenas dois dedos de distância. Ela não quebrou o contato visual; pelo contrário, ergueu a cabeça para poder equiparar sua altura à dele. Se a intenção dele era parecer intimidador – e Valerie torcia para que ele não estivesse tentando –, não estava dando certo. 

— Por que é que você se casou comigo, hein, Frank? — Valerie sussurrou, sentindo as têmporas palpitar de nervosismo. — O real motivo. Não foi porque você me amava. Você nunca me amou. Nunca disse isso uma vez em todo esse tempo. Era porque eu era fácil? Porque eu estava magoada? Porque você estava magoado? Porque queria se sentir bem consigo mesmo? Eu não consigo enxergar outro motivo para você sempre ficar ofendido quando faço algo de bom e que sai dessa rotina. Eu não consigo entender, Frank.

Frank continuou olhando-a como se ela estivesse falando grego. De tão perto, Valerie enxergava todas as suas imperfeições. Todas as rugas, todas as linhas de expressão, todas as marcas em sua pele e em seu olhar. Frank era tão humano, tão palpável… Como alguém tão próximo de seu corpo podia estar tão distante de seu coração?

— Eu não entendo porque você sempre quer discutir coisas tão simples… — Valerie continuou, segurando as bochechas dele com cuidado. Ela conseguiu sentir o maxilar dele travando. O movimento fez com que o coração de Valerie apertasse mais um pouco. — Às vezes… Ah, Frank, às vezes parece que você precisa falar com alguém desse jeito. É por conta do trabalho? É porque você acha que estou abaixo de você? Por isso se acha no direito de falar assim comigo?

Frank pareceu confuso, porque balbuciou:

— Eu nunca quis te deixar brava, Valerie… 

— Mas você deixa. E o que mais me deixa chateada é que eu te digo isso, e você não escuta! 

Dessa vez, Valerie soltou-se dele e deu voltas na cozinha, tentando reunir pensamentos suficientes para conseguir formar um argumento linear. Agora que a adrenalina inicial havia passado, Valerie começava a se arrepender do que tinha falado. Por que é que tinha de cutucar Frank? Ele tinha razão, não tinha? Jamais tinha erguido a mão para ela. O que eram algumas palavras indelicadas e uma indiferença leve? 

Não. Não

Não era hora de voltar atrás. Sem. Arrependimentos. 

— Eu não escondo coisas de você, Frank. Compartilho tudo que posso. Tudo que me lembro. Mas também depende de você me dar a liberdade para que eu compartilhe coisas bobas. Coisas importantes. Não importa, enfim — Valerie suspirou, baixando o olhar para os próprios pés. — Você me dava mais liberdade para falar antes do casamento, quando não estávamos juntos… E isso me deixa tão, tão triste… Eu entendo que você quer retomar o antes, mas… Pense comigo… O antes nunca existiu. Não no nosso matrimônio.

Frank encarou-a com melancolia. Era o tipo de olhar pidão que os cachorros davam quando queriam a sua comida, apesar de já terem comido toda sua ração. Que conveniente para Valerie comparar-se a um petisco para cachorro. 

— Às vezes… Eu penso que seríamos melhores se tivéssemos permanecido amigos — Valerie sussurrou, com o coração quebrando em mil pedaços a cada palavra que pronunciava. — Não brigávamos tanto… 

— É o que você pensa…? Que não amo você e que machuco você de propósito?

Pela primeira vez, Frank pareceu magoado de verdade. Então, Valerie percebeu que talvez estivesse mesmo abaixo dele. Como poderia queixar-se de algo que ele fazia quando ela mesma poderia ser tão cruel quando bem entendia?

Contrariando os próprios pensamentos de apenas alguns minutos, Valerie voltou para perto dele e permitiu que ele fizesse o mesmo. Ainda que apenas os braços tocassem, era melhor do que gritar e discutir. Valerie não teve coragem de negar nada. Era o que ela pensava, mas de que adiantaria verbalizar aquilo? Estava tentando ajudá-lo, e não puxá-lo com ela para um abismo. Não queria arrastá-lo por todo aquele inferno apenas para não soltar sua mão. 

Os lábios dela tremeram. Não deveria pensar em jeitos de despedir-se do marido. O plano inicial era aproximar-se dele. Era o que Frank tinha tentado fazer antes, não era?

— Eu só… Me sinto tão exaustiva — Valerie admitiu, deixando os ombros caírem. O movimento fez o braço dele estremecer. Quase como uma sacudidela, mas sem a estática. — Desde… Desde tudo. Desde sempre. E sinto que tudo começou num ritmo desenfreado. Deveria ser uma caminhada, não uma corrida… 

Frank limitou-se a engolir em seco. Irônico que ela fosse a advogada da questão. Quase como se lesse seus pensamentos, Frank replicou em tom baixo:

— Nunca quis que você se sentisse assim… 

— Eu sei — Valerie esfregou os olhos, deixando as mãos repousadas nas bochechas. — Não foi isso que quis dizer. Só… Você se sente cansado de mim, Frank? Porque eu me sinto cansada de mim quase todos os dias… 

— Não — a resposta veio sem qualquer hesitação. Porém, antes que ela tivesse tempo para desconfiar, ele acrescentou: — E você? Se cansou de mim? Te faço sentir cansada também?

Valerie negou com a cabeça. Era possível cansar-se de alguém que não era exatamente presente?

— Eu posso mudar — Frank passou um braço ao redor dos ombros dela, puxando-a para mais perto. Valerie não recuou, daquela vez. — Eu vou mudar. Você vai ver, Valerie. Começando pelo emprego.

— Pelo emprego? — ela balbuciou, contra a pele dele. — Como assim? 

— Você tem razão, não tem sentido eu ficar bravo por conta de um emprego… Isso significa que vou ficar feliz por ele. Não é assim? 

Valerie ergueu a cabeça para poder olhar para ele. Toda a arquitetura da frase não fazia sentido. Se Frank não conseguia ficar genuinamente feliz por uma conquista dela, o que é que ele faria para se forçar a ficar feliz de uma hora para a outra? Aquilo cheirava a atuação, e das boas. Se Valerie não conseguia mascarar suas emoções por ser incapaz de mentir emocionalmente, como é que Frank conseguia?

— É só… Eu acho que não te vejo tão feliz assim desde… 

E então, ele franziu a testa. E o fantasma de sua vida voltou a assustá-la com apenas algumas reticências. 

— Desde a Clara — ele concluiu, mordendo o lábio inferior. — Em dez anos, é a primeira vez que vejo você… Voltar a agir como quando nos conhecemos. Não sei se é inveja o nome, mas… Estive aqui por tanto tempo e só agora você parece feliz, Valerie… Isso também chateia, sabia? Saber que só precisou de um emprego para conseguir o que eu venho tentando desde que a Clara se foi? 

Valerie mordeu o lábio, controlando o choro que ameaçava sair num soluço. Para quem estava com os nervos exaltados há pouco, Valerie chegou à conclusão de que uma grande dose de adrenalina resultava numa queda brusca. Talvez seu coração fosse comprovadamente uma montanha-russa hormonal. Se pudesse tomar as rédeas da situação, permaneceria eternamente com a mão no freio, sem ir para frente ou para trás.

— Podemos parar de brigar, por favor? — ela suplicou, em seu último resquício de pacificidade. — Só conversar? A partir de hoje? 

— Acho esse um acordo justo — Frank sorriu, beijando a testa dela. Uma onda de afeição repentinamente correu pelas veias dela, como se sempre tivesse estado ali, esperando por uma chance de aparecer. — Precisamos de um documento para formalizar? 

Valerie conseguiu rir fraco, por mais que não se sentisse bem por inteiro ainda. Faltava algo, por mais que ela não soubesse identificar o quê. Quase como a sensação de ter um fio de cabelo preso à roupa, mas não enxergá-lo porque é do mesmo tom da peça. Valerie poderia tatear o quanto quisesse, mas apenas se livraria do cabelo quando lavasse as roupas. E a sessão de roupas sujas, ao que tudo indicava, havia encerrado. Por ora. 

— Paramos de brigar e eu vou deixar de ser um completo idiota — ele garantiu, desligando o fogo da panela de pressão. Tinha se passado o tempo de cozimento da carne na panela? — E você vai me dividir coisas simples e importantes e eu vou ouvir com atenção. Não vou mais te deixar brava. O que você acha desses termos?

— Tudo bem… São bons… 

Frank abriu um sorriso enorme. Valerie ainda estava na defensiva, e as palavras dele ainda ecoavam nas paredes de seu subconsciente quando ele a puxou para um abraço. 

Eu já entendi, você acabou de me dizer tudo isso. Não precisa repetir. Eu não sou burro.

Será que você não entende o que é respeito?

Que tipo de monstro você acha que eu sou? 

Não seja tão dramática.

O pai de Valerie jamais havia falado daquele jeito com ela. 

Alex jamais teria falado daquele jeito com ela. 

Valerie permitiu ser envolvida pelos braços do marido. Não tinha mais idade para sonhar com os dias de menina. Ela havia ganhado o que merecia. Tinha feito uma escolha errada, mas não era possível voltar no tempo e apagar sua história. 

Porém, em momentos como aquele, Valerie desejava mais do que nunca trocar de lugar com o pai. 

Agora se lembrava do que estava faltando. Frank não fez menção alguma às bebidas ou às perguntas dela. 

Sempre esquivo. Porém, Valerie ainda tinha sua teimosia intacta. Era filha de John e Victoria Bowman, e se o coração herdado do pai a dizia para deixar o assunto quieto, a racionalidade da mãe gritava para que continuasse tentando arrancar algo de Frank Ortiz. Qualquer coisa que fosse. Não sabia o que estava procurando, só precisava de mais tempo. 


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