Nebulosa escrita por Camélia Bardon


Capítulo 14
XIII — August sipped away like a bottle of wine


Notas iniciais do capítulo

Duplamente de luto por esse capítulo, pois minhas férias acabaram ontem :')
Agora que já descansei bastante e vou voltar para a minha rotina, vou colocar as respostas dos comentários de vocês em dia e programar mais capítulos para saírem nos dias certos de postagem ♥ obrigada pela paciência durante esse mês!



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“Mas eu consigo nos ver perdidos nas memórias

Agosto se transformou em um instante no tempo

Porque nunca foi meu

E eu consigo nos ver enrolados em lençóis

Agosto foi degustado como uma garrafa de vinho

Porque você nunca foi meu”

(august — Taylor Swift)

 ★

Miami, Flórida — agosto de 1969

Enquanto dirigia para longe de Fort Lauderdale, Valerie fez diversas pausas para enxugar o choro. A cada semáforo, Valerie respirava fundo. Pela primeira vez, ela fazia aquela viagem em silêncio. Todas as suas músicas iriam fazer com que se lembrasse dele. Dava-se início a uma longa temporada de silêncios.

Veronica foi a única que conseguiu consolá-la. A irmã permitiu que Valerie deitasse em seu colo, e permaneceu ali até que ela adormecesse de exaustão. Aquele domingo passou como um borrão. Valerie teve a impressão de ter ouvido vozes, lembranças mais antigas.

A primeira semana foi a mais intragável. Teve de encarar a irmã com seu olhar de pena e fingir que estava tudo bem. Teve de mentir para a mãe dizendo que provavelmente eram apenas os seus hormônios falando mais alto. Teve também de vestir uma máscara social no trabalho, uma vez que, se seu desempenho caísse apenas um pouco, receberia uma advertência. Advertências, na Corte, não compõem um bom currículo. Currículos ruins levam ao desemprego. Desemprego, pobreza, falência. Fome. Morte.

Na sexta-feira da primeira semana, Valerie não resistiu a esperar um pouco mais em frente ao carro. Parte dela queria acreditar que Alex teria mudado de ideia, lutado contra o que quer que fosse que o impedia de ficar, que ele voltaria correndo pela avenida, dizendo que também a amava e que não era capaz de viver sem ela. Se fechasse os olhos, poderia escutá-lo dizendo que daria um jeito de estabelecer o próprio escritório. Valerie não se importaria em ter de ouvir uma máquina de escrever trabalhando pelo resto da vida. Até imaginava-se dando broncas nele por franzir tanto a testa enquanto se concentrava em suas tarefas. Iria flertar com ele, dizendo que amava mais a máquina de escrever do que ela – e, conhecendo-o como conhecia, Alex provavelmente riria e diria que ela não estava errada. Ela riria de volta, e então… 

Mas a avenida continuou como sempre. Movimentada. Os guardas de trânsito apitavam para liberar as faixas uma por vez, o sol continuava escaldante, seu coque ainda era muito apertado e o suor fazia com que os sapatos de salto escorregassem de seus pés.

Alex não voltou. Não ligou para ela, nem em sua residência e nem no trabalho. 

Sentiria a falta dele todos os dias.

Deixando os ombros caírem, ela buscou as chaves do carro na bolsa. Quanto poderia beber e dirigir em segurança? 

— Valerie? — uma voz familiar despertou-a do torpor. Valerie sentiu uma espécie de dejá-vù. Na última vez em que isso aconteceu, ela estava esperando por Alex para o seu primeiro encontro. Que ironia. — Chamei você umas três vezes… Está tudo bem? 

Frank era como um respiro em meio a todo aquele caos. Não importava o quanto as coisas tinham saído dos eixos, Frank continuava ostentando seu sorriso doce e uma voz melodiosa. Naquele dia, no entanto, Valerie gostaria de inclinar os lábios dele para baixo. 

— Oi, Frank — Valerie sorriu de lado. — Tudo, sim. Me desculpe. Acho que é o cansaço da sexta-feira.

— Ah, nem me fale. Estou doido para me esparramar no meu sofá. E tomar um daqueles refrigerantes bem gelados.

Valerie riu fraco, não movendo mais do que o necessário. Frank, por sua vez, franziu a testa levemente, avizinhando-se a ela nos degraus do prédio. 

— Tem certeza de que está tudo bem? Você quer uma carona até em casa…? 

Valerie respirou fundo, olhando para o próprio carro. Seria bom economizar um pouco de gasolina depois de tantas idas até Lauderdale. Ainda assim, algo a perturbava no convite.

— Acho que a minha casa não é caminho para a sua, Frankie… 

— Não tem problema. Vamos, estacione o seu carro debaixo daquela árvore ali para não esquentar o motor e você vem comigo. Na segunda-feira, ele vai estar aqui esperando por você, não se preocupe.

— Ah, ninguém vai querer roubar essa tralha. Não é com o carro que me preocupo.

Frank riu com gosto, acompanhando-a até a tralha. Valerie fez o que ele havia pedido e escolheu outra vaga, longe do tráfego e de uma possível multa. Sentia vertigens, como se a qualquer momento o céu fosse desabar sobre sua cabeça se não mantivesse o foco. Ao sair do carro, agarrou-se ao braço dele com firmeza.

— Definitivamente, você não está nada bem — com as costas de sua mão, Frank mediu a temperatura dela primeiro na testa e depois no pescoço. — Nossa, que gelo… Eu ia chamá-la para tomar um drinque, mas acho melhor nós comprarmos para você uma garrafa d’água. 

— Está muito calor para o final de agosto… — Valerie murmurou, piscando mais forte para retomar o autocontrole. — Água seria bom… 

Frank assentiu, conduzindo-a até o próprio carro. Valerie notou que, assim como ela, Frank também era do time dos calhambeques. Enquanto o dela era um singelo Pontiac 1950, o dele parecia ser um Chevy 1952. Valerie se lembrava de olhar os catálogos e anúncios quando era criança, os olhos brilhando por imaginar-se disputando corridas e ter toda a glória de medalhas. Após descobrir que mulheres não faziam isso, Valerie contentou-se com seus sonhos de princesa, mas a sensação de segurar seu velho Pontiac com firmeza reacendeu a chama de infância. Quer dizer, o Pontiac e Se meu Fusca Falasse.

— Desculpe a bagunça — Frank tirou os papéis que estavam no banco da frente, enfiando-os de qualquer jeito no porta-luvas. Valerie riu fraco de seu gesto, porque era bem o tipo de coisa que ela também faria. — Não estou acostumado a ter outras pessoas além de mim no meu carro… Quer dizer, pelo menos eu acho. Se há alguma pessoa sentada no banco do carona, eu peço desculpas.

Valerie riu, não conseguindo se conter. Como era possível descobrir ações inusitadas vindas das pessoas fora do ambiente de trabalho!

— Tranquilo, Frank. Eu te mostro o caminho. Obrigada pela carona. 

— Não tem de quê — ele sorriu. — Você está diferente, esses dias. Tenho notado. 

Valerie corou, não sabendo exatamente o porquê. Seria pelo fato de não conseguir passar despercebida ou não ter uma desculpa para aquilo? 

— Bem, eu… Não foram dias muito bons, para ser sincera — Valerie admitiu, hesitante. — Não estou conseguindo lidar com tudo. Às vezes… Ah, eu nem sei. 

— Não tem nada de errado em não saber o que fazer em dias ruins — ele replicou num tom gentil. — Quer me contar o que há de errado?

Valerie mordeu o lábio, pensativa. Respeitando o espaço dela, Frank deu a partida no carro, dirigindo lentamente. Valerie olhou pela janela as palmeiras que ornavam praticamente toda a cidade. Quando era mais nova, ela gostava de vê-las quando se aproximava a chuva. Na primavera, os ventos sempre eram mais fortes, porém na maioria dos casos as palmeiras mantinham-se bem firmes ao chão. Valerie gostava de acreditar que algum dia seria firme como uma palmeira. 

— Alguém que amo precisou ir embora. Me sinto sozinha. Ainda não me acostumei com a ausência dele. 

Frank aquiesceu cuidadosamente. Ele era um bom ouvinte. Também, como advogado, Valerie não esperava diferente. Ainda assim… Era muita gentileza dele ouvir os dramas de uma estenotipista qualquer.

Contudo, era tudo o que diria. Alex a tinha dito para falar o que viesse à cabeça, porém… 

Ele não era Alex, era?

— Entendo. É difícil quando a gente se apega a uma pessoa. Quando ela vai embora, é… Como se sobrasse apenas um vazio. Não há nada que o preencha. 

— É… — Valerie olhou para ele de soslaio. — É um tipo de luto, mas a pessoa continua viva. Quase como se a incerteza impedisse que você prosseguisse. 

— E por mais que você diga adeus para a pessoa, ainda fica a sensação de que você perdeu um futuro.

Valerie concordou, surpresa. Era exatamente o que ela pensava. Se tivesse talento com palavras, era exatamente o que diria. 

— Puxa, Frank… Acho que eu não conhecia esse lado seu — ela riu fraco, envergonhada.

— Eu faço bem o perfil do engravatado — Frank rebateu com bom humor. — Assim como você, eu prefiro deixar as coisas de casa em casa e as do trabalho no trabalho. Quer dizer, não que eu tenha alguém para compartilhar meus dramas de advogado, mas… 

— Você não fala muito com os seus parentes? Em Cuba? 

Frank deu de ombros, em sua rodada de constrangimento. 

— Uma vez por mês, só. É melhor a comunicação por cartas. Primeiro, é muito cara uma ligação internacional. Segundo, acho que minha mãe quebrou o telefone. Ela é… Bem… — ele franziu a testa, procurando uma palavra adequada. — Cheia de animosidades. Da última vez que eu liguei, ela me xingou pelo tempo todo da ligação. 

— Ah, meu Deus, por quê?

As palavras saíram espontaneamente. Não tinha a intenção de ser intrometida, mas é que a conversa com Frank Ortiz tinha se mostrado tão fácil que Valerie sentia-se acolhida o suficiente para fazer perguntas pessoais. Dividir o passado com alguém era uma via de mão dupla, como já havia dito. 

— Ela acha que eu fiz errado em terminar com a minha noiva para vir para a América. 

— Cuba faz parte da América — Valerie fez uma careta, confusa. — Enfim… Você tinha uma noiva? 

— Tinha. O nome dela era Maristela. Ela era uma boa pessoa. Só… Tinha os horizontes muito pequenos. Não tinha ambições. Nós… Nós não combinamos, se olhar de todos os parâmetros. Pertencemos a mundos diferentes. Minha mãe diz que um relacionamento é para a vida, mas… Bem, imprevistos acontecem.

Valerie assentiu com a cabeça, ruminando aquelas informações. Será que aquela era a resposta mais adequada? Ela e Alex eram de mundos diferentes? Ou que imprevistos acontecem? 

Ela preferia a segunda opção. 

— No meu caso… — Valerie respirou fundo. — Foi um amor de verão. Eu sabia que ele iria, porém… Eu disse que o amava, e ele não disse de volta. Acho que eu… Enxerguei mais do que era, de fato. Me doei de coração, porque essa é a única maneira que conheço de me relacionar. 

Frank parou num sinal vermelho, olhando para ela. Ele era gentil e cortês. E também mostrava-se divertido e compreensivo. Com o adicional de que já o conhecia há mais de um ano, Valerie pensou que talvez teria sido mais cômodo se tivesse se apaixonado por ele ao invés de por Alex.

Entretanto, ela não tinha mentido quando disse que não tinha arrependimentos por tê-lo amado. Ele nunca seria seu, porém recusava-se a deixá-lo se perder nas memórias. Valerie sentiu-se amada, por mais que as palavras não tivessem sido pronunciadas. Isso era o que importava. 

Não era?

Naquele verão, ela teve a oportunidade de ser apenas Valerie, uma mulher digna do amor passageiro de um homem. Nada de irmã mais velha, a filha perfeita ou a profissional exemplar. Apenas Valerie. E seria grata a Alex para sempre por tê-la proporcionado isso.

Com um suspiro, ela concluiu:

— Eu tentei não ser tão emocionada, mas é impossível. Vai expressamente contra quem eu sou.

— E nem seria bom para você fingir ser alguém que não é, Valerie. Eu não vejo nada de errado em escutar o seu coração. Quantas pessoas hoje em dia não fazem isso? Eu mesmo gostaria de não ser tão racional, mas… 

— Faz parte de quem você é — Valerie completou, obtendo um aceno de cabeça positivo como resposta. — Sabe, Frank, você é um cara muito legal. Acho que a gente deveria tomar aquela bebida uma hora ou outra. 

Frank sorriu, tamborilando os dedos no volante. Era muito parecido com ela. Chegava a ser assustador. Será que Frank Ortiz era a sua versão masculina e racional? 

Colocando assim perdia toda a graça. Amava ser uma mulher. 

Frank deu uma volta com ela pela cidade, saindo da zona comercial e passando pela praia. Era um caminho diferente do que Valerie costumava fazer ao ir para casa, mas vendo como tudo ficava belo iluminado pelas cores do pôr do sol, registrou aquela rota como uma opção para os dias não tão bons.

— Você quer água fresca ou gelada? — ele indagou assim que estacionaram o carro. 

— Fresca, por favor. 

— É pra já, madame. 

Valerie riu baixinho, permanecendo no carro. Estava mesmo com sede, salivando sob o sol quente. Bocejando, Valerie aguardou até que ele voltasse de olhos fechados. Ela não sabia se tinha sido uma semana cansativa ou se era apenas aquele pseudo-luto tomando conta de seu corpo, entretanto acreditava que podia se dar uma folga só por aquele dia. 

Com cuidado, Frank avisou que tinha voltado primeiro com uma batidinha no vidro da janela. Valerie aprumou-se, esfregando os olhos. Quando ele entrou de volta no carro, a primeira coisa que fez foi baixar o visor dos dois bancos, tampando um pouco do sol que brilhava sem timidez. Valerie aceitou a garrafa de água com um sorriso, tomando goles pequenos pouco a pouco. A sensação refrescante foi mínima, mas suficiente para estabilizá-la novamente. 

— Melhor? 

— Melhor. Obrigada, Frank. 

— Não tem de quê. A gente dá um dez e depois eu te deixo em casa. Se você quiser, eu passo lá na segunda-feira de manhã e te dou uma carona pra você não ter que vir de ônibus.

Ela concordou, segurando com força a garrafa. Algumas gotas rolaram por seus dedos, arrepiando-a dos pés à cabeça. Com aqueles calafrios, só podia ser uma insolação. Seu corpo deveria estar protestando após tantas idas à praia com Alex. Sua pele era sensível, e até mesmo novas sardas haviam nascido em seu rosto. Ela as detestava — não eram lineares e nem numa quantidade balanceada. Aliás, tudo em seu rosto era desbalanceado. Seu corpo conseguia ser cheio por completo, mas o rosto parecia não ter decidido e sorteado cada setor à sua própria forma.. 

— O seu namorado… Você acha que ele foi embora porque tinha outra mulher? — Frank indagou, de repente. — Sem querer ser indelicado. 

— Não — Valerie ocupou-se de olhar uma gota d’água descendo pela embalagem. — Não acho. Mas não importa muito o que eu penso, agora.

Ele meneou a cabeça levemente, vigiando-a com a água. Valerie provavelmente bebeu apenas um terço do líquido, mas permitiu que ele verificasse a temperatura dela mais uma vez. Com uma expressão satisfeita, o advogado afivelou o cinto de segurança e resgatou um óculos escuro do porta-luvas. Por instinto, Valerie pegou as folhas que ele tinha jogado lá e pôs-se a arrumá-las seguindo uma ordem dedutiva.

— Pra ser sincera, estou um pouco preocupada com ele. Ele parecia estar bastante… Como eu posso dizer…? — Valerie massageou uma têmpora, sentindo-a pulsar de estresse. — Distraído, eu acho. Com a cabeça em outro lugar, sabe? 

— Sei… — ele replicou, cético. 

— Ele não é uma má pessoa. Só gostaria que tivesse ficado por mais tempo. 

Gostaria que tivesse ficado. Sem acréscimos.

— Bem, eu… Obrigada por ouvir — Valerie sorriu de lado, um tanto arrependida por ter falado tanto. —Foi bom… Colocar um pouco para fora. E obrigada por se preocupar.

— Não tem de quê, Val. Fico feliz por ter me contado. E por finalmente ter parado de me chamar de doutor Ortiz. 

Valerie riu para dentro, olhando para ele. Quando Frank sorria, mostrava que suas maçãs do rosto tinham pequenas covinhas. Era algo bem sutil, mas que tornava seu rosto ainda mais amigável. 

Amigável ou não, Alex ainda seria seu segredo. Por mais confiável que Frank aparentasse ser, Valerie jamais baixaria a guarda novamente. Voltaria a ser a irmã mais velha, a filha perfeita e a profissional exemplar. Sua temporada de silêncios tinha chegado para ficar.


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Notas finais do capítulo

Pelo visto, Frank vai ser um personagem mais presente por aqui. Algum palpite?
Um beijo e até o próximo!



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