Fúria escrita por alegrrdrgs


Capítulo 7
Capítulo 6 - Marcos (2002)




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"Meeting you was like listening to a song

for the first time and knowing

it would be my favourite"

 

Marcos não era idiota, ele sabia que não tinha chances com Penélope.

Uma garota como ela jamais olharia para alguém como ele, especialmente quando ela tão obviamente desprezava tudo que a rodeava. Ele até entendia, se a garota tinha vindo do cenário de novela onde tinha ido com ela na semana anterior. Não conseguia parar de pensar no olhar irritado da garota, e até pensou em bater na porta dela, mas o que ele diria? Além disso, ela praticamente não saía de casa, e mesmo que saísse ele tinha outras coisas com o que se preocupar.

Seu pai ia voltar para casa em alguns dias, e Marcos sabia o que isso significava. O inferno que era para ele e para a sua mãe sempre que ele estava em casa... Ele ainda não queria ter que pensar naquilo. Talvez as coisas fossem mais tranquilas dessa vez, como às vezes eram. Especialmente agora que sua irmã tinha ido morar com a avó. Era tudo que ele podia esperar.

Ele estava dentro do carro, decidindo qual era a melhor rota. Marcos tinha 15 anos e tecnicamente não deveria estar dirigindo, mas com a mãe no trabalho o dia inteiro sempre sobrava para ele fazer as compras de casa e resolver problemas na rua. Com o carro ficava mais fácil.

A porta do passageiro se abriu tão rápido que ele pensou que fosse um assalto, mas era apenas Penélope se acomodando no banco como se fossem velhos amigos.

— Olá, vizinho. - ela estava sorridente naquele dia, um sorriso branco e perfeito que a deixava ainda mais parecida com uma modelo ou atriz de cinema.

— Você tá tentando me matar?

Ela riu, a risada dela preenchendo o carro.

— O que você tá fazendo?

— Preciso ir ao supermercado e então no posto de gasolina. Depois fazer o jantar.

Marcos gostava de como ela olhava nos seus olhos enquanto ele falava. Quem era essa garota? De onde ela tinha saído, e por que ela o deixava tão desconcertado?

— Eu vou com você. - Não foi um pedido ou uma pergunta, mas um aviso. - Também preciso comprar o jantar.

Eles se olharam por um momento, como se Marcos estivesse confirmando que ela iria. Ele tinha certeza que não era uma boa ideia investir nisso, eles não poderiam ser mais diferentes pelo que ele tinha visto até então. Mas Penélope sustentou seu olhar, e foi a primeira vez que ele notou o desafio nos olhos azuis dela.

— Tudo bem, então. Você está gostando do bairro?

Penélope riu, e ele teria considerado falta de educação se não tivesse achado tão adorável.

— Detestando. É tudo muito barulhento, muito apertado... - ela franze as sobrancelhas - É como estar dentro de um filme de terror.

— Ei, é da minha vida que você está falando. Eu deveria te jogar para fora do carro agora mesmo - mas o sorriso dele denunciava que não era verdade. Penélope riu novamente.

— Desculpa. Só é tudo muito diferente do que eu estou acostumada.

Eles ficaram em silêncio por alguns quarteirões, e Marcos olhava pelo canto do olho a maneira como ela olhava pela janela. A sua bolsa estava jogada no chão do carro e ela não estava interessada no celular que tocava com novas mensagens, parecia distraída.

— Você faz isso sempre?

— O que?

— Entrar no carro de desconhecidos sem avisar ninguém?

Marcos não conseguiu disfarçar o tom de preocupação na sua voz. Ele detestava como sempre acabava sendo o amigo chato, o que apontava os perigos e fazia todos recuarem, mas muitas vezes não conseguia evitar. Depois de quinze anos vivendo no seu lar caótico, ele gostava de ter certeza que as pessoas que amava estavam em segurança.

Isso lhe fez pensar em Marina.

— Não com essa frequência. - A voz de Penélope tinha um ar de graça, mas um pouco de nervosismo - Você pode se considerar importante.

Ele sabia que ela não tinha um bom relacionamento com a mãe. Nos dias que se passaram desde que elas tinham se mudado para o apartamento ao lado ele tinha ouvido gritos o suficiente entre as duas para saber disso. Ocasionalmente tinha o choro de um bebê. Ele não julgava, porque sabia que os barulhos da sua casa eram muito piores sempre que seu pai estava em casa.

— Então...

— Então...

Os dois riram, constrangidos. Marcos decidiu que gostava muito da risada dela. Na verdade ele precisava prestar mais atenção na rua e menos atenção nela, constatou depois de quase passar o sinal vermelho em um cruzamento e receber um coro de buzinas em protesto.

— Você não tem idade para dirigir - ela provocou.

Ele balançou a cabeça, um sorriso nos lábios.

— A carteira não significa nada. Eu dirijo desde os meus 12 anos.

— Por que? - Ele gostava de como ela parecia genuinamente interessada em tudo que ele dizia, não estava apenas puxando assunto.

— Meu pai me ensinou. Ele passa muito tempo fora de casa e a minha mãe não sabe, então eu acabo fazendo as coisas na rua.

— Que pesadelo. - Ele riu enquanto estacionava o carro. Ele até gostava, era uma desculpa para não ficar em casa.

— Pode me emprestar o seu celular?

Penélope entregou o celular na sua mão, curiosa. Marcos torceu para ela não ter notado o quanto o toque da mão dela mexeu com ele. Aquilo era ridículo, por que uma garota que ele nem conhecia mexia tanto com ele? Especialmente uma garota tão rica, tão invasiva, tão bonita, tão...

Ele se concentrou no celular, discando o número da avó. Marina não tinha celular, então ele ligou para o telefone da casa. Ele não podia agir como um bobo agora, tinha coisas para fazer. E ele sabia que qualquer pouco encantamento que Penélope pudesse vir a sentir por ele ia desaparecer assim que ela conhecesse a realidade da sua família.

— Alô? - sua irmã tinha uma voz grogue, como se estivesse dormindo. Ele olhou no relógio de pulso, ela deveria estar na escola naquele horário.

— Oi, sou eu. Por que você está em casa? - Ele tinha plena consciência que agia mais como um pai que como um irmão mais velho, mesmo que Marina fosse apenas dois anos mais nova que ele.

Penélope se virou totalmente para ele no banco, sem disfarçar que prestava atenção na conversa.

— Hoje não teve aula... - mas ele podia ouvir a mentira na sua voz.

— Não começa. Eu não quero saber de reclamações. Você foi pra aula ontem?

— Fui! Juro que eu fui! Pode perguntar pra vovó.

Marcos respirou fundo por um momento. Ele sabia como a adaptação estava sendo um desafio para a irmã, especialmente depois de tudo que tinha acontecido no ano anterior. Quando falou novamente, sua voz estava mais carinhosa. Ele evitou o olhar de Penélope, querendo privacidade naquele momento.

— Olha, eu sei que às vezes eu sou um pouco... Você sabe. Mas é porque eu me preocupo. Se eu não me importasse, então eu não reclamaria. Eu quero te ver bem.

— Eu sei - Marina tinha a voz um pouco embargada. - Eu sei, Marcos.

— Eu tô no supermercado. Você quer alguma coisa?

— Não, a vovó fez as compras ontem. Tudo sob controle por aqui.

— Tudo bem. Só liguei pra saber se tá tudo bem... Eu vou te ver no sábado.

— Se cuida.

— Você também, chatona. Tchau.

Quando ele entregou o celular para Penélope, agradecendo, podia jurar que tinha visto ciúmes no seu olhar. Mas, se fosse, então ela logo escondeu muito bem.

— Namorada?

— Minha irmã. - Saíram do carro e Marcos esperou que ela também pegasse uma cesta, mas ela não o fez. Eles entraram juntos no mercado - Ela está morando com a minha avó.

— No interior - Penélope completou, e ele não esperava que ela se lembrasse que a avó dele morava no interior. Logo o tom dela ficou defensivo - O que? A minha memória é boa.

— Eu não falei nada - mas ele não conseguiu evitar um sorriso.

Eles se separaram e se reencontraram novamente na fila para pagar. Penélope não era apenas bonita, ela se comportava de um jeito tão confiante que todos olhavam quando ela passava. Havia algo luxuoso na maneira como ela andava de cabeça erguida, como sempre encarava os outros nos olhos. Marcos tinha certeza que ela era muito mais do que parecia.

Quem estava no caixa era Sofia, sobrinha do dono. Eles se conheciam porque estudavam juntos e porque Marcos sempre ia naquele mercado, onde as coisas eram mais baratas e também por ser perto de casa. Ele devia prestar atenção nela, mas só conseguia enxergar Penélope, que desfilava de volta para perto dele.

— Você está me ouvindo? - ela ficou na sua frente, tampando a visão de sua nova vizinha. Marcos se sentiu mal e sorriu para ela.

— Claro. Na quinta, às 20h.

— Na sexta, às 21h - corrigiu. Mas estava sorrindo para ele de maneira sugestiva. - Sabe, meus pais vão viajar esse final de semana. Se você quiser ficar depois da festa...

— Não achei o que eu queria - Penélope interrompeu, se colocando na frente da garota. Ficando tão perto que centímetros os separavam. Marcos não sabia se ela fazia aquilo de propósito ou se simplesmente não percebia as pessoas ao seu redor. - Vamos?

— Com licença? Não percebeu que a gente tá conversando?

Marcos ia pedir desculpas, mas Penélope riu antes que ele falasse alguma coisa, se virando para a garota. Não era em nada como a risada que ela tinha dado no carro: era fria, debochada.

— Eu vi você se atirando e ele tentando desviar. A gente pode ir agora? - ela se virou novamente para Marcos, sustentando o seu olhar com bom humor.

Marcos deveria ter ficado com raiva. Quem ela pensava que era, se intrometendo na sua conversa e lendo tão perfeitamente a situação? Mas ele não ficou. Ao contrário, ficou ainda mais curioso, ainda mais encantado. "Quem é essa garota? Quem é essa garota decidida, confiante, que chega como um tornado e hipnotiza tudo ao seu redor?". Ele queria descobrir.

— Eu falo com você mais tarde, Sofia. Agora a gente precisa mesmo ir, muito obrigada.

Ela não pareceu feliz com a resposta, especialmente quando Marcos acompanhou Penélope para fora do mercado, mas a verdade era que ele não se importava.

— Então você entra no carro de desconhecidos e arruma briga com desconhecidos... Como sobreviveu até agora?

— Quer que eu volte e peça desculpas para a sua namoradinha? - devolveu, bem humorada.

— Não precisa, eu não queria mesmo ir.

Eles entraram novamente no carro, as sacolas de compras jogadas no banco de trás. Penélope se virou novamente para ele, como se quisesse dizer alguma coisa e então mudou de ideia. Se sentou virada para a frente, arrumando o cabelo no espelho retrovisor.

— O que foi?

— Nada - ela hesitou, e então balançou a cabeça. - Esquece, é besteira. Pra onde você quer ir agora?

Marcos olhou nos olhos dela, que estavam claramente chateados apesar do sorriso que ela usava para disfarçar. Ele apertou a sua mão com carinho, esperando que ela não achasse estranho.

— Fala. Eu quero saber.

Penélope olhou para as suas mãos juntas e então para a frente. Quando ela dirigiu o olhar novamente à ele, Marcos identificou um medo conhecido nos seus olhos. Medo de rejeição.

— As vezes eu sou um pouco demais. Todo mundo fala, mas eu não me importo o suficiente para mudar. Minha mãe diz que eu nasci achando que sou o sol. E as vezes... Enfim, às vezes eu sou mesmo, às vezes eu acho. Então se eu for demais, eu preciso que você me diga e eu tento parar. Não garanto que eu vou conseguir - ela deu uma risada baixa - Mas eu posso tentar.

— Pode tentar parar de ser o sol?

— Foi um exemplo meio idiota, mas sim.

Marcos riu e pôde ver ela relaxando, rindo de volta para ele e devolvendo o aperto na sua mão.

— Eu acho que você não conseguiria parar de ser o sol nem se tentasse. Agora, o que você quer fazer antes do jantar?

*

Ela disse que não tinha nada em mente, então ele dirigiu de volta ao prédio e pediu que ela não entrasse ainda. Era final da tarde, o sol estava alaranjado do jeito que Marcos amava. Eles deram a volta no prédio por um corredor lateral. Estava sujo, o chão com muito limo, mas não era longo. O prédio era pequeno, tinha apenas três andares, e na parte de trás tinha o que deveria ser uma pequena área comum, mas que estava abandonada já há alguns anos.

A parte de concreto estava suja com limo, e o que deveriam ser canteiros estavam com mato invadindo a calçada. Ervas daninhas cobriam as paredes, mas Marcos gostava do lugar apesar de parecer mais um cativeiro que uma área comum. De lá dava pra ter uma visão ótima do céu. Marcos e Marina tinham colocado uma mesa e duas cadeiras de praia ali quando eram crianças.

A única janela que dava para aquele espaço era a do quarto dos pais de Marcos, no terceiro andar. Rafael tinha aberto aquela janela para ficar de olho nos filhos, que gostavam de se sentar ali. Foi exatamente aquilo que os fez parar de ir até lá quando o pai estava em casa. Mas Rafael ainda ia demorar alguns dias para chegar, então Marcos não viu problema.

— Isso é um sequestro?

Marcos riu quando a olhou. Na verdade, ele não conseguia tirar os olhos dela desde o dia em que se esbarraram na portaria.

— Hoje não. Eu ficava bastante aqui com a minha irmã, antes dela se mudar. Ninguém vem aqui. - Marcos se virou para ela, e percebeu que ela já estava lhe olhando. - Você tem um irmão ou uma irmã?

Penélope não mudou nada na sua expressão. Os olhos azuis dela refletiam o céu laranja, seu cabelo escuro espalhado na cadeira, e ela encarava Marcos diretamente. Mas ele percebeu que algo estava errado.

— Eu sou filha única.

— O bebê que passa o dia todo chorando na sua casa é uma boneca? - brincou.

— Tá - ela revirou os olhos. Tinha um pouco de rancor na sua voz quando ela falou: - Eu tenho um irmão. Mas ele é o motivo de toda essa confusão. Eu não quero falar sobre isso.

Marcos assentiu, e eles ficaram calados. Ele ficou curioso, é claro. Existiam milhões de coisas que ele queria perguntar, mas tinha medo que se insistisse ela iria embora. Além disso, ele sabia como era não querer compartilhar dramas familiares com outras pessoas. Era bom poder fingir que não tinha família às vezes, e se ela também queria fingir então por ele tudo bem.

O sol quase já tinha se posto completamente quando ela falou novamente.

— Então você vai para a festa da sua namoradinha na sexta?

— Não pretendia - ele lhe olhou de canto de olho, esperando uma reação. - Por que? Você quer ir?

Penélope resmungou uma ofensa que ele não entendeu, mas que o fez sorrir e então se levantar. Já estava anoitecendo e não tinha luz naquela parte do prédio. Ele não se importaria nem um pouco de ficar ali com ela no escuro, mas imaginou que ela poderia se importar.

— Vamos? - estendeu a mão, torcendo para que ela aceitasse.

Eles ainda estavam de mãos dadas quando ela o colocou contra a parede, as mãos nos seus ombros. Seus olhos estavam abertos, desafiadores, as bochechas vermelhas, e ele poderia ter lhe beijado ali mesmo.

— Por que você ainda não me beijou? A gente passou quase o dia todo juntos, qualquer outro já teria me beijado.

— Eu tava esperando... - ele aproximou seu rosto do dela. Tímido, inseguro, mas adorou a maneira como ela inclinou o rosto, esperando um beijo. Aquilo estava mesmo acontecendo? - Permissão. Um sinal. Não sei.

— Isso é sinal o suficiente?

A boca dela tinha gosto de cereja. Talvez fosse o batom, ou talvez ela simplesmente fosse assim. Ele não ficaria nem um pouco surpreso, na verdade. Talvez fosse a maneira como ela o puxava para si, como o rosto dela se encaixava perfeitamente nas suas mãos, ou como ela sorria contra a sua boca, como se não conseguisse evitar, mas ele só conseguia pensar que nada nunca tinha sido como aquilo.

Quando eles se separaram foi por falta de ar. Penélope estava ofegante, mas deu uma risada, escondendo o rosto no pescoço dele. Marcos ergueu seu rosto para olhar para ela, suas mãos em volta do seu pescoço. Ele passou o dedo nos lábios dela, não conseguindo evitar um sorriso. Estava escuro agora, mas ainda claro o suficiente para que ele pudesse enxergar o sorriso nos lábios dela e a maneira como os seus olhos brilhavam.

— É sinal o suficiente, sim.

*

Marcos gostava de como eles tinham estabelecido uma rotina. Às vezes ele chegava na área comum e Penélope já estava lá, esperando por ele. Outras vezes ele ficava sentado, olhando para cima enquanto esperava por ela. O humor dela variava, mesmo que inevitavelmente os encontros acabassem com beijos contra a parede. Ela não gostava de falar da família, mas Marcos também evitava o tópico.

Ele estava ficando distraído, preocupado em como seria quando o seu pai chegasse. Todos os vizinhos sabiam como as coisas eram, mas Penélope e sua mãe eram novas no prédio e ainda não tinham presenciado nada. Talvez ela o evitasse depois disso. Não teriam mais encontros furtivos nas escadas ou na área comum, sem mais passeios de carro sempre que ele precisava fazer alguma coisa na rua. Ela provavelmente teria medo dele, pensando que ele poderia ser tão violento quanto o pai.

— O que você vai fazer amanhã? - a voz dela o tirou de seus pensamentos. Penélope estava aninhada ao seu lado na cadeira, o rosto escondido em seu pescoço.

— Preciso visitar minha irmã. Você pode vir comigo, se quiser - Marcos tentava ir todos os finais de semana, mas normalmente conseguia ir só uma ou duas vezes por mês.

— Visitar sua irmã? - a voz dela estava desconfiada.

— Você pode vir comigo, se quiser - repetiu. - O que você queria fazer?

Penélope se aconchegou mais à ele, suas unhas longas fazendo carinho no seu couro cabeludo. Ela tinha lhe arranhado por acidente alguns dias atrás, e desde então tinha cuidado quando tocava nele. Marcos adorava como ela conseguia ser gentil, uma quebra em toda a sua postura exterior distante.

— Eu deveria passar o final de semana com papai, mas ele viajou com a esposa. Nós podíamos ir para a minha casa...

A promessa de um final de semana inteiro sozinho com Penélope fez o coração dele disparar. Teria sido o melhor final de semana de todos, e ele realmente cogitou ir, dividido. Marcos grunhiu, exasperado, e isso fez Penélope rir.

— Não posso. Eu realmente, realmente queria ir... Mas preciso ver Marina e ficar em casa nesse final de semana. É difícil de explicar, mas a minha mãe não pode ficar sozinha.

O sorriso dela desapareceu, e Marcos sabia que ela tinha ficado irritada. Ela se levantou da cadeira, saindo de seus braços, e colocou a mão na cintura. Estava com raiva, e era a coisa mais bonita que ele já tinha visto.

— Que tipo de desculpa é essa? Se você não quer ir é só falar, não precisa inventar nada.

— Não é desculpa, eu queria muito ir, mas não posso.

Por um momento ela ficou parada ali, lhe encarando magoada, e Marcos pensou que ela gritaria com ele. Mas ela se virou e começou a ir embora, sem explicação.

— Faz o que você quiser.

Ele correu até ela, pensando no que poderia dizer, em como poderia explicar. Mas Penélope caminhou rápido, empurrando a Sra. Glória, que morava no segundo andar, quando passou pela portaria, subindo as escadas com força e batendo a porta do seu apartamento.

— Qual é, Penélope. Abre a porta, vamos conversar.

Penélope não abriu, e Marcos disse a si mesmo que provavelmente era melhor assim. Isso iria acontecer uma hora ou outra, era melhor que fosse antes de se tornar uma mágoa para um dos dois. Ela definitivamente não era o tipo de garota que ficaria com ele por muito tempo. Provavelmente só estava irritando os pais ou entediada.

*

Seu pai estava gritando de novo.

Marcos podia ouvir os choramingos de sua mãe na sala. Rafael estava bêbado, reclamando da vida e gritando. Reclamando dos filhos, reclamando da esposa, reclamando de tudo, como se ele não fosse a grande causa dos problemas familiares, ele e os seus vícios.

A luz do quarto estava apagada, mesmo que ele não estivesse dormindo. Alguns anos atrás, talvez até meses, ele teria se envolvido. Teria brigado com ele, apanhado, chamado a polícia, feito tudo que sempre ouviu que precisava fazer. Mas não adiantava, ninguém nunca fez nada e a sua mãe nunca tinha estado tão cega de amor, tão disposta a fingir que estava tudo bem. Especialmente depois de toda a situação com Marina, ele evitava se envolver a menos que fosse muito necessário. Ainda não tinha perdoado nenhum dos dois: o pai pela violência e a mãe pela omissão. Tinha raiva dela, e se sentia mal por isso. Era a coisa mais difícil do mundo querer fazer alguma coisa e saber que ela sempre seria contra.

Seu pai trabalhava com frete, e às vezes passava semanas sem aparecer em casa. Sempre que ele ia, Marcos torcia para que ele nunca voltasse. Ele pensou em Penélope ouvindo tudo do outro lado do corredor, e ficou morto de vergonha. Não conseguiria olhar para ela no outro dia, se é que ela iria querer falar com ele.

Rafael gritou menos, abaixando o tom de voz até ficar tudo em silêncio, mas Marcos não conseguiu relaxar. Ele quase nunca conseguia relaxar em casa. O seu celular vibrou, o nome de Penélope aparecendo na tela, mas eu não queria responder suas mensagens. Ele finalmente se deitou, fechando os olhos.

Ele mal fechou os olhos e o desgraçado entrou no seu quarto, batendo a porta com força contra a parede e o fazendo pular.

— O que você está fazendo acordado? Quer dizer que eu me mato de trabalhar pra sustentar um vagabundo que quer virar a noite acordado?

— E como eu vou conseguir dormir com toda essa gritaria? - Isso chamou a atenção dele.

Marcos sabia que o pai nunca tinha gostado dele, nem tentado disfarçar isso. Gostava menos ainda desde que ele tinha crescido e podia bater de frente com ele. Ele gostava mais quando o filho era uma criança magricela que não podia fazer nada além de chorar enquanto apanhava.

— Você tá me respondendo, seu moleque?

— Sim, eu estou.

— Marcos - Sua mãe choramingou, e isso lhe deixou mais irritado.

Se Rafael estava com raiva, então Marcos também estava. Estava com raiva porque sua mãe estava chorando. Estava com raiva porque sua irmã precisou sair de casa para ficar fora do radar do pai. Estava com raiva porque estava cansado daquela vida. Porque estava com vergonha de Penélope. Porque amanhã os vizinhos estariam comentando. Com raiva porque ele deveria ser o seu pai, mas era só um homem violento e estranho.

— Eu vou te ensinar a me respeitar, seu bostinha.

Ele deu o primeiro soco, que fez Marcos cair no chão. Sua mãe gritou, entrando no quarto. Ele estava em cima do filho, o acertando novamente, mas Marcos era mais novo e mais ágil, e conseguiu se levantar. Deu um soco com toda a sua força e Rafael caiu no chão, bêbado. O pai resmungou e agarrou a perna de Marcos quando ele desceu da cama para tentar sair do quarto.

— Não faz isso, para com isso! Marcos - sua mãe chorava, o repreendendo quando ele tentou acertar o pai novamente - Marcos, para com isso agora!

Rafael agarrou a blusa do filho, o puxando para mais perto. Ele errou o primeiro soco, caindo no chão ao se desequilibrar. Marcos conseguiu se levantar e o chutou. Marcos odiava isso, odiava quando se rebaixar ao nível do pai mesmo quando estava apenas se defendendo. Ele limpou a boca, sentindo o gosto de sangue.

Ele olha para eles mais uma vez antes de sair. O pai ainda resmungou e gritou, bêbado e infeliz, enquanto Sônea tentava ajudá-lo a levantar. Ele saiu do quarto antes de Rafael se levantar, sem saber exatamente para onde ir. Poderia ir até a casa da avó, mas não queria lhe acordar de madrugada. Ela ficaria assustada, e então ele teria que explicar tudo e ela ficaria triste... Ele preferia evitar, se possível.

Alguém batia na porta da frente com força, e Marcos até torceu para que fosse a polícia novamente, mesmo sabendo que isso nunca tinha levado a nada. Ele abriu a porta ansioso, ciente que seu rosto estava sangrando.

Era Penélope na porta. Ela estava de pijama, descabelada e aflita. Marcos não queria que ela lhe visse assim. Eles se olharam por um momento, nenhum dos dois sem saber o que dizer. Ela estava assustada, preocupada, com um olhar indignado. Mas Marcos podia ouvir o pai se levantando, então sem pensar muito sobre isso segurou a mão de Penélope e a puxou de volta para o seu apartamento, fechando a porta atrás de si e passando a tranca alguns segundos antes do pai aparecer no corredor. Eles ouviram os pés pesados de Rafael até a escada, e então ele voltou resmungando para dentro do apartamento e fechou a porta.

Penélope o abraçou apertado no meio da sala, e Marcos lhe abraçou de volta sentindo meu coração acelerar. Toda a adrenalina deixou sua respiração acelerada, seu coração batia forte. O abraço dela era bom, ela era boa nisso. Fazia a raiva diminuir, ou pelo menos ele conseguia se concentrar em outra coisa.

— Por que você não me respondeu?! Caralho, Marcos, eu fiquei preocupada. Eu achei que...

Quando ela se afastou para olhar o sangue em seu nariz, a área que começava a ficar arroxeada ao redor do olho,Marcos pôde ver a raiva e seu olhar. Marcos quase não conseguiu sustentar seu olhar. Ele ficou envergonhado de uma forma nova, de uma forma que ainda não conhecia. Não conseguiu pensar no que dizer, apenas a puxou de volta para um abraço.

Ele sabia que o pai tinha dormido, que sua mãe estava em segurança por enquanto. Mas isso não apagava a preocupação que ele sentia, mesmo que não quisesse sentir. Ele se afastou de Penélope, envergonhado.

— Eu preciso ir... Voltar para casa.

— Mas nem fodendo que você vai voltar. - Havia uma ferocidade que ele nunca tinha ouvido na sua voz. - Eu não vou te deixar voltar.

Ele se jogou no sofá, o rosto dolorido e ainda sangrando, e só então percebeu o bebê-conforto no chão. Dentro dele o irmão de Penélope dormia. Ele se assustou por um segundo, achando que era um boneco ou um gato sem pêlo, talvez o problema fossem as sombras que entravam pela janela... mas logo percebeu que era mesmo um bebê quando ele ressonou, respirando fundo. Marcos nunca o tinha visto antes e ele era... diferente. Não se parecia com ela ou com a mãe, não tinha nada da beleza da irmã.

— O bebê está dormindo, se ele acordar... - Penélope lhe encarou na defensiva, esperando pela sua reação. - Não sei o que fazer, pra ser sincera. É a primeira vez que eu fico cuidando dele.

Marcos estendeu a mão e Penélope a pegou, se sentando ao seu lado no sofá. Eles ficaram em silêncio por um momento, Marcos estava tão envergonhado que não sabia o que dizer. Não falou sobre o seu irmão, porque não tinha nada a dizer e porque não era o momento de fazer perguntas. A sua mente não podia estar mais distante daquilo. E também porque o que quer que ele tivesse não era da minha conta, e seria grosseiro perguntar, especialmente após ela lhe dar abrigo.

— Foi o seu pai? – ela perguntou. Ele concordo com a cabeça – Não foi a primeira vez, né?

— Nem vai ser a última, Penélope.

Penélope segurou seu rosto entre as mãos, analisando o estrago. A luz da sala era fraca, mas ele sabia que ela conseguia ver muito claramente. Tocou no seu rosto com as pontas dos dedos, como se tivesse medo de lhe machucar ainda mais, mas ele logo segurou suas mãos entre as dele. Tentou sorrir para ela quando notou seus olhos prestes a transbordarem.

— Não chora. Tá tudo bem.

— Por que ele fez isso?

Marcos deu ombros. Sua boca abriu uma, duas vezes, enquanto ele pensava em uma explicação. Quando finalmente falo, sua voz sai em um sussurro.

— Ele é simplesmente uma pessoa ruim.

— Vocês nunca denunciaram?

Ele fechou os olhos, cansado, e Penélope lhe puxou para um abraço. Algumas lágrimas raivosas rolaram pelos seus olhos. Não estava com raiva dela, é claro, mas com raiva da situação como um todo.

— Eu já perdi a conta de quantas vezes liguei pra polícia, ou pedi pra minha mãe denunciar. Ela... Ela insiste que ele vai mudar. Ela nunca vai denunciar ele, eu nem espero mais isso. Eu... – precisou se esforçar para segurar as lágrimas – Eu realmente preferia que você tivesse ido pra casa do seu pai, assim não ia ver isso.

Ela o abraçou mais apertado, resmungando alguma coisa que Marcos não entendeu. Ficaram abraçados por tempo demais, nenhum de nós se solta. Era algo sério. Mais sério que a maneira como ele ficava bobo sempre que ela se aproximava, ou a maneira como ela sorria toda vez que nós cruzamos nosso olhar. Como ele dormia e acordava pensando nela, ou sorria quando ela lhe mandava uma mensagem, autoconsciente da ponta dos pés à raiz dos cabelos sempre que ela estava ao seu lado.

— Eu posso falar com o papai. Ele pode fazer alguma coisa.

— Não, Penélope. Não envolve seu pai nisso.

— Mas eu quero te ajudar. - ela ergueu o rosto, olhando nos seus olhos. Marcos podia ver um universo inteiro dentro deles, e em nenhum desses universos uma garota como ela deveria estar ali com um cara como ele.

— Esquece, já passou.

— Como eu poderia esquecer? Ele machucou você – ela aproximou os dedos do meu rosto, mas os afastou antes de tocá-lo. Sua voz estava irritada, com raiva. Com tanta raiva que ela poderia se levantar e atravessar o corredor para enfrentá-lo. Marcos entrelaçou seus dedos nos dela só pra garantir que ela não sairia de lá.

— Eu odeio ele. Meu Deus, eu... Eu odeio ele. Queria que ele morresse. E aí eu me odeio por me sentir assim. Eu odeio como ele conseguiu me encher de ódio, como ele conseguiu me corromper desse jeito. Ele é uma pessoa terrível, e eu fico pensando que se eu não conseguir controlar essa raiva toda que eu sinto eu vou ser igual a ele.

— Você nunca vai ser igual a ele! - ela realmente ficou indignada, e isso o trouxe um pouquinho de volta a terra. Penélope estava realmente furiosa - Caramba, Marcos, você é, tipo, a melhor pessoa que eu já conheci. Eu conheço tantas pessoas que são terríveis, você definitivamente seria o último dessa lista.

— Eu não sou tão bom assim

— É, sim - insistiu, procurando o seu olhar - Você é educado, é gentil, é inteligente, é... um monte de outras coisas. Eu conheço tantas pessoas que não se importam com nada, e você se importa.

Marcos não acreditava realmente nos elogios. Mesmo que ele gostasse dela, tudo que ele conseguia pensar naquele momento era a situação terrível.

Ele deixou que Penélope o puxasse para que deitasse a cabeça em seu colo, sua pele tão macia na dele. Ela ficou silenciosa demais, e Marcos se perguntou o que se passava pela sua cabeça. Ele não tinha coragem de abrir os olhos para lhe encarar, com medo do que poderia ver.

— Eu não vou simplesmente deixar pra lá, Marcos. - ela está irritada, indignada, com raiva - Você não deveria passar por isso.

Ele abriu os olhos apenas para encarar seu rosto. Aquela garota linda, irritada, sempre com raiva de alguma coisa. Mas sempre lhe dizendo a coisa certa, especialmente agora.

*

Penélope não o deixou voltar para casa mesmo depois que seu pai saiu, e eles dormiram abraçados no sofá apertado. Marcos acordou dolorido por ter dormido de mal jeito. Ficou confuso por um segundo, sem saber onde estava, mas logo se lembrou.

Foi o choramingo do bebê que o acordou. Penélope nem se moveu, e ele penso em lhe provocar por ser a pior babá do mundo, mas deixou ela dormir mais um pouco. Afinal, tinha sido por sua causa que ela ficou acordada até tarde.

— Bom dia - Rodrigo não lhe respondeu, é claro. Marcos observou o rosto do bebê por um momento tentando entendê-lo. Era como se ele tivesse sobrevivido a um incêndio, a pele vermelha e enrugada de uma forma que parecia dolorosa. Ficou com medo de tirar ele do bebê-conforto porque não sabia exatamente qual a sua condição - Você se incomodou com a visita?

— Ele não tem direito de fala - Penélope resmungou, o rosto inchado e o cabelo bagunçado. Mas estava sorrindo, e isso o faz sorrir também - É um bebê sem graça nem opinião.

— Que absurdo.

Ela se levantou, se espreguiçando. Marcos percebeu que ela não gostava muito das manhãs. Mas se sentou no chão, de frente para o bebê, e fez uma careta que o fez rir e tentar se jogar na sua direção. Eles não tinham absolutamente nada em comum, exceto pelos olhos azuis. Marcos queria lhe perguntar sobre Rodrigo, mas ficou com vergonha de puxar esse assunto.

— Eu não sei o que ele come. Ele já come comida de verdade?

Rodrigo olhou de um para o outro, parecendo curioso, e enfiou as mãos na boca.

— Eu não faço ideia. Mas a minha mãe vai chegar daqui a pouco.

— Você é uma péssima babá.

Ela sorriu e entrelaçou as mãos no seu pescoço, o puxando para um beijo que lhe fez esquecer do bebê, da noite anterior, e de quase tudo.

— Eu tenho que ir agora. Ele foi embora. O caminhão não está mais aqui. Eu preciso ver minha mãe - ainda estava envergonhado, chateado, mas sorriu para ela porque ela estava preocupada - Obrigado por ontem. Eu não costumo falar sobre isso com ninguém... e é bom poder falar.

— Você pode me falar sobre o que quiser, sempre. Eu vou te ver mais tarde. No nosso lugar de sempre - não era uma pergunta, era um aviso.

— É claro que vai.


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Notas finais do capítulo

Gente o POV do Marcos no passado foi um grande desafio pra mim, sendo bem sincera. Me digam o que vocês acharam e o que eu poderia melhorar, é a primeira vez que eu escrevo sobre violência doméstica ♥

Espero ter conseguido expressar bem que a Penélope se importa muito com ele, mesmo nessa época. "He fell first but she fell harder"



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