Pétalas no poço & Desejo escrita por Shalashaska


Capítulo 9
Desejo




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A leve embriaguez no corpo de Carmina desfez-se em um segundo. Levantou-se da grama, colocou a garrafa de gin atrás do corpo e esperava a voz dele exaltar-se. Mas ele só fumava. Era provável que tivesse vindo ali pelo ar puro, já que os outros homens fumavam na sala e o cheiro era terrível. O fato é que Mina aguardou o que ele tinha para dizer. Odiava aquela etapa, odiava mais ainda que as pessoas geralmente não vissem com gravidade o comportamento de seu pai apenas porque ele não usava de violência física. O resto era permitido: ofensas, farpas, ameaças e sua mera presença nauseante. 

Um dia, enquanto ele viajava, Carmina vasculhou as correspondências do escritório dele em busca de alguma justificativa para a contínua falta de dinheiro em casa. Seu pai teria uma outra família? Sustentava amantes? Dívidas de jogo? Não. Só não parava em casa e gastava os fundos. A resposta era sua ganância e incompetência.

Naquele instante, era a calma dele que a enervava. Calma não era natural ao seu pai.

"Se é tão amiga daquele animal, poderá quitar as dívidas dela com os gastos com a louça e as frutas esmagadas. Sua mãe ficou triste pela porcelana, sabia? Era presente de casamento," Uma pausa, uma nova baforada, "E é claro, terá que repor as galinhas e o galo."

"O que recebi hoje é o suficiente."

Ele não gostou do tom. Sua expressão, porém, era de zombaria.

"Sabe, nunca percebi o quanto era gananciosa. Eu deveria ter notado cedo que deixou de amar seu velho pai a partir do momento que ficou pobre. Mas, pudera! Nem sua mãe escapa do seu desprezo."

Carmina deixou de esconder a garrafa de gin nas costas. Tremia na vontade de quebra-la na cabeça dele. Decidiu que sua língua deixaria um talho mais fundo no orgulho dele.

"Deve ter sido esse seu pensamento torpe que te levou à falência."

"Escute aqui, sua rata. Pensa que eu não sei? Que eu não vi seu pequeno e patético laboratório na cozinha? Eu preferia que você tentasse envenenar eu e sua mãe do que me apunhalar pelas costas em uma proposta de negócios. Você quer vender o chá das pétalas do festival."

"Se todos os meus ganhos são seus, não seria ruim."

Ele gargalhou de algo que a criada não sabia.

"Eu terminei seu trabalho, querida. Vou só provar algumas variações de chá hoje a noite. Amanhã pela manhã, vou apresentá-lo. Quem sabe eu adicione frutinhas para torná-lo mais especial. E então, o contrato será feito no meu nome."

Mas ele não parou por aí. Deu um passo à frente, enfim o brilho de violência aceso em seus olhos.

"E hoje eu não quero te ver. Se gosta tanto assim da raposa, durma aqui fora feito ela. Serei ainda generoso em te deixar fazer uma mala antes de partir.”

Carmina cuspiu na grama perto dos sapatos dele. Aceitou a proposta de expulsão, a qual mais parecia um estranho contrato de liberdade.

“Não preciso mais do que uma bolsa. Não quero nada daqui. E se eu pudesse me dividir ao meio para devolver tudo o que eu sou para você e sua esposa, eu faria isso.”

Carmina entrou na casa, subiu as escadas. De fato, em uma bolsa colocou uma modesta muda de roupa, itens de higiene e… seu medalhão novo em folha, presente de Vivian. Poderia viajar até a cidade mais próxima, onde certamente poderia penhorá-lo ou vendê-lo. Só precisava sumir antes. E se tudo ainda fosse muito ruim, sentia que Lena e Anna não recusariam abrigo. Se existisse sorte no mundo, madame Vivian Benito acolheria ela.

Primeiro, ela tinha que passar a noite a céu aberto.

Não estava quente ainda para a Primavera, mas o coração de Carmina ardia em chamas. Ela não conseguia parar de caminhar sem muito rumo definido, com uma bolsa transpassada no corpo, uma lamparina na mão e a garrafa de gin na outra. Embrenhou-se entre arbustos, contornou raízes e teve a sensação de ser observada não como uma presa e sim como uma aparição humana incandescente de ódio. Chorava o tempo todo, sem querer chorar. Grunhia de ira. E então, quando estava exausta, encontrou o poço.

Era um poço igual a qualquer poço que alguém imaginaria ao falar de um: feito de pedra, com um pouco de limo. Antigo. Carmina apoiou-se nele, considerando suas opções.

Quis se jogar nele, pois parecia profundo. Talvez trocasse de lugar com a suposta entidade que concedia desejos. Mas não queria ser também chamada de vil e caprichosa, ainda que pudesse ser chamada disso em vida e sem fazer nada hediondo. Não tinha balde para tomar a água e, quem sabe, ter seu pedido realizado. Duvidava que a entidade lhe concedesse algo pelo último gole de gin. Ébria e fora de si pela raiva, Carmina deu grito enquanto o vento espalhava pétalas vermelhas. Jogou o seu medalhão no poço e ajoelhou-se.

Orou. Pediu. Ardeu. Clamou pelo seu maior desejo. Depois, exaurida pelo seu fervor, viu-se desnorteada. Apoiou-se nas pedras, vendo nada acontecer no meio da noite.

Até que ventou de novo. Ela ouviu um barulho grave, distante.  Começou devagar e espaçado, tanto que ela imaginou ter ouvido e não deu a devida atenção. Depois, ouviu sons de garras arranhando pedra. Vinha da terra, das profundezas. E o que saiu do poço era vermelho, de um tom tão fulgurante que a luz da lamparina tornava-se desnecessária. Andava sobre duas patas e arqueou-se para encarar bem a figura da criada, diminuída e temerosa, no chão. Piscou devagar seus imensos olhos dourados.

E devolveu seu medalhão.

O coração de Carmina relaxou, aceitando a realidade crua de seu pedido e quem o atenderia. Não precisava se preocupar em ser mal interpretada por uma entidade má ou traiçoeira.

Não havia nada de bom em seu desejo mesmo.

Ela observou a criatura. O ar dançava com pétalas ao seu redor e, aos olhos incertos de Carmina, parecia uma coreografia ensaiada. Aos poucos, a visão vermelha apagou-se.

E Mina também.


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