Uma pequena intervenção divina escrita por Clarisse Hugh


Capítulo 1
Uma (pequena) intervenção divina


Notas iniciais do capítulo

Não imagino que a 3ª temporada será assim (atentem-se ao tempo verbal usado, estou manifestando!!!), mas não podia deixar de tentar buscar um pouquinho de conforto depois de rever umas 10 vezes a última temporada.
Escrevi tudo hoje, numa sentada só, depois de não escrever uma palavra só em 2023 inteiro. Me sinto renovada.
Espero que gostem!



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No princípio do fim – Ou do início. Levando em conta as altas possibilidades de talvez tratar-se do meio – era um belo dia.

Alguns poderiam, inclusive, argumentar que, sob os olhos de Deus, todos os dias são belos.

Eu, que não gosto de me fazer de rogada, posso muito bem confirmar tal empreitada. Mais de seis mil anos em andamento e quase todo novo amanhecer é digno de nota em algum sentido. A beleza das coisas é mesmo muito peculiar...

Oh, mas vejam só, eu digresso... Onde estava mesmo? Ah, sim. Um belo dia. Ou melhor, na sequência de acontecimentos que eventualmente tornariam aquele odioso amanhecer num belo dia.

Nem adianta buscar previsões do tempo e alertas de frentes frias. Os fatores que tornavam aquela data um momento ruim nada tinham a ver com o clima, assim como os desenrolares que lhe devolveriam a beleza igualmente poderiam ser considerados mera serendipidade. Uma simples casualidade, de fato. Afinal, ficaria muito ruim para alguém em minha posição assumir ter favoritos, não é mesmo?

Bem, exercendo minha função de observadora profissional, eu estava aleatoriamente acompanhando os desenrolares das vidas de um certo anjo do portão leste e seu companheiro demônio de cabelos vermelhos. Mal pude crer quando (depois de milênios!) uma declaração parecia estar acontecendo só para ser – metaforicamente – atingida no coração na sequência. Por que esses dois teimam tanto em tornar as coisas complicadas?! Ai, esse livre-arbítrio é mesmo coisa terrível. Quisera eu poder fazê-los agir conforme minha vontade, já estaria tudo resolvido há séculos!

(Se bem que... essa dança deles é tão gostosa de ver!)

A questão é que dessa vez a coisa parecia realmente séria. Aziraphale, mesmo sentindo ter errado, estava consumido por hesitação, pela culpa, pelo trauma e o inesperado senso de não saber como salvar o mundo e sua relação com Crowley também.

Questionamentos sobre o significado de tudo, seu senso de propósito e – há! – a vontade divina circulavam por sua mente durante todo o trajeto do elevador em direção ao Céu. A única parte boa dessa situação foi que nem sequer uma palavra proferida por aquele odioso homenzinho que proclamava ser representante da minha voz foi absorvida pelo anjo de olhos claros.

O antigo livreiro foi conduzido até onde seria sua mesa e então, deixado em sua própria companhia, sentou forçosamente naquela cadeira desconfortável localizada em um ambiente mais estéril, frio e duro ainda.

Com a cabeça apoiada nas mãos, uma lágrima solitária escorreu pelo seu olho esquerdo e ele murmurou baixinho, como que para si mesmo:

— Meu Deus, o que eu devo fazer?

Tendo esperado por uma oportunidade como aquela por muito, muito tempo, adotei o comportamento mais sensato e plausível que uma entidade celestial conhecida por seu Plano Inefável poderia tomar.

Eu respondi.

— Ora, Aziraphale, você realmente não sabe?

Em retrospecto, sou obrigada a concordar que aparecer sem aviso, em resposta a uma pergunta retórica feita sem o uso de um círculo de comunicação talvez não tenha sido a abordagem mais inteligente, mas qualquer um que já tenha vivido a experiência de ser fã de um casal vai me perdoar.

Após um gritinho assustado, uma mão estrategicamente posicionada sob o peito disparado e uma leve blasfêmia totalmente compreensível infringindo o terceiro mandamento, o anjo ruborizado fez uma meia cortesia em sinal de respeito.

— Deus, vossa santidade, como posso ajudá-la?

— Ao que parece, Aziraphale, é você quem solicitou minha ajuda, não?

— Sim, mas... – ele acrescentou num fio de voz – não imaginei que fosse responder.

— Bem, não é exatamente possível responder a todos os chamados que recebo, mas estou sempre ouvindo.

— Oh. De fato, eu deveria ter me atentado. Mil perdões e...

Era tão gracioso (e preocupante, honestamente) o quão pronto aquele ser de luz estava para assumir responsabilidade por erros que nem sequer haviam sido cometidos.

— Não, meu querido... Você me entendeu mal. Inclusive, receio ter havido uma série de mal-entendidos com relação aos meus desígnios. Preciso agendar com o RH urgentemente um workshop para melhorar a comunicação interna, mas a questão é que não há nada a ser desculpado. Nada além do fato de que na placa na porta de sua livraria está indicando o funcionamento até as 15h00 e você não está lá. Não é de bom tom praticar da inverdade com os humanos, eles são criaturas bastante temperamentais.

O cenho franzido do Senhor Fell foi a primeira resposta que obtive, seguida rapidamente por duas das emoções que mais me fascinam até hoje: a confusão e a dúvida.

— Mas... Mas o Metatron me disse que havia uma missão para mim e... Bom, eu certamente não desejo destruir a vida na Terra, então pensei que estando por aqui eu poderia fazer o Bem e...

— Não se preocupe com isso, Aziraphale. A vida na Terra não será extinta tão cedo. Não no que depender de mim, pelo menos.

— Mas ele disse que há planos, chegou inclusive a insinuar que se tratava do Grande Plano, e eu pensei que...

— Meu querido, não é possível que em todo seu tempo na Terra você não tenha notado que... Ora, que nem anjos nem demônios são particularmente competentes em suas “funções”... Além do mais, os habitantes daquele planetinha azul e verde são bastante criativos e resistentes. A humanidade é capaz de se salvar sozinha.

Era como se uma nova galáxia se formasse diante de seus olhos. Possibilidades infinitas e novas dúvidas tilintando em sua mente à velocidade da luz. Num suspiro, como se só então fosse capaz de se convencer não possuir as convicções erradas, ele proferiu:

— Oh, isso é mesmo um alívio! Que maravilha! Graças a... Bom, graças a você! Mas, se não há uma tarefa aqui para mim, o que... o que eu devo fazer?

— Aziraphale, a única missão que eu te dei foi amar...

Oh.

(Sim. Em itálico mesmo. É uma entonação totalmente diferente e o momento pelo qual todos nós esperávamos.)

Decidindo ser melhor não deixar as coisas em meias-palavras, dei uma forcinha para nosso anjo favorito, evocando uma série de memórias dele e do demônio Crowley ao longo dos tempos, sempre um ao lado do outro, ainda que todo o resto mudasse.

Com novas lágrimas nos olhos e um peso tirado dos ombros, ele apenas me encarou, desacreditado e esperançoso. Indiquei, então, para que ele retornasse ao elevador.

— Vá. Lá é seu lugar. As coisas não acontecem por acaso, sabe? Alguns até diriam que é... inefável.

Mais que depressa, sua personalidade animada e, acima de tudo, sua fé – no mundo, em mim e em si mesmo – iam reestabelecendo-se, enquanto o morador do Soho descia em direção do seu destino.

(Ou seria Destino?)

Lindo, não? Você deve concordar então que eu estava certa no começo, quando disse que era um belo dia. O céu estava cinza, é verdade, mas não é essa uma cor adorável?

Ousando arriscar passos novos para a dança de milênios deles, Aziraphale não se dirigiu em direção a sua livraria.

Não.

O anjo ajeitou sua postura e sua resolução e foi tocar a campainha de um apartamento onde só estivera uma única vez, logo após o não-fim do mundo.

Por um milagre, um demônio que não era muito fã de atender a porta resolveu abri-la, justo nesse dia.

(O que posso dizer, pura coincidência!)

— Anjo?

Sua voz estava rouca. Os olhos, escondidos pelos óculos escuros, seguiam permanentemente marejados. Aziraphale, do outro lado do batente, havia ficado apenas algumas horas sem ouvir o vocativo, mas era como se seu coração apertado quebrasse em um milhão de pedaços sob a perspectiva de não ser chamado assim novamente.

— Crowley... Oh, Crowley...

Sem saber bem o que dizer – como expressar um cair de amores durante seis mil anos em palavras? – Aziraphale tomou a liberdade de entrar. Delicadamente, então, repousou suas mãos trêmulas nas hastes dos óculos e os removeu, sendo agraciado por aqueles olhos amarelos que protagonizavam todos seus mais lindos sonhos.

Num suspiro, quase como se o tempo parasse para os dois, tomou o maxilar de seu amado entre suas palmas e o beijou como quisera fazer desde... bom, provavelmente desde sempre.

Dessa vez, foi frágil.

Suave. Deliberado. Romântico.

Todos os adjetivos que lhes foram roubados da primeira vez, pelo medo.

Quando enfim se separaram, o anjo loiro encostou sua testa na da Crowley e, desejando que seus olhos azuis transparecessem toda a promessa de uma eternidade compartilhada, falou, com a voz embargada:

— Só espero que eu não esteja muito atrasado.

Se permitindo sorrir genuinamente pela primeira vez em muito tempo, o antigo representante do Inferno lhe respondeu:

— No tempo certinho, anjo. No nosso tempo.

Se um anjo e um demônio foram capazes de me fazer chorar? Bom, isso não é da conta de ninguém.

“E depois?”. Você se pergunta, tão ávido por mais desse romance apaixonante quanto eu.

Acredito que há certos detalhes que talvez só caibam aos dois envolvidos, mas posso dizer que essa história termina como começou: num jardim.

Havia mágica e romance no ar. Talvez um estômago satisfeito depois de um jantar no Ritz. Dois celestiais dançando de rosto colado, dando início a um novo capítulo de seu “para sempre”. E, claro, um rouxinol cantando ao lado de um pequeno chalé em South Downs.

(Eu sei, porque eu estava lá).


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Notas finais do capítulo

Que saudades eu estava disso aqui... ♥

Mil beijinhos ♥



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