Aves de inverno cantam Segredos escrita por Shalashaska


Capítulo 6
A canção e o segredo


Notas iniciais do capítulo

Friends, tô entregando nos 45 do segundo tempo aaa



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Começou na noite seguinte. 

Qualquer pessoa em circunstâncias normais acharia no mínimo curioso o fato de Lenora praticar música após o entardecer, mas Amelia já tinha feito as pazes com a conclusão de que, mesmo sendo uma pessoa qualquer, aquela não era uma circunstância normal. Na agitação do dia, Maria tentou justificar a patroa:

— Faz muito tempo. Ela prefere não mostrar seu talento, não ainda. Tem medo de estar enferrujada, mas não acho que seja verdade. Tudo isso traz memórias que ela prefere lembrar de noite, sozinha.

Amelia sabia que a cozinheira não estava mentindo, ainda que tivesse plena certeza de que aquilo não era a versão completa dos fatos. Albert e Alfonso pareciam menos ansiosos, mas permaneciam em alerta. E depois do jantar, com poucas velas acesas e toda a louça já limpa e guardada, uma canção se fez ouvir pelo casarão.

Primeiro, acordes de piano hesitantes. Os sons progrediram, harmoniosos — ainda que abafados pela distância e grossura das paredes. Vinham do quarto de Lenora, evocando a imagem do piano de cauda enfim descoberto do tecido branco e afinado para complementar o timbre treinado da mulher. Amelia não amava barulho — viver no apartamento que morava antes ensinou-a a ser leniente por necessidade. No entanto, aquilo era diferente. Diferente até mesmo de quando algum vizinho deixava a vitrola ligada. E quando a voz de Lenora ecoou, Amelia entendeu afinal porque era uma pena não escutar os pássaros na colina. Era um som do qual se podia dormir. Era um som do qual se podia sonhar acordado.

Amelia despertou  no dia seguinte sem saber que tinha caído no sono tão fácil. Nem havia se mexido durante a noite, apenas despencando na inconsciência.

O clima de expectativa durou alguns dias. Maria, Alfonso, Albert e Amelia não comentavam diretamente entre si, por mais que aguardassem alguma mudança. Algo peculiar, mesmo no mais peculiar dos lugares. Afinal, Lenora sorria mais e se fazia presente mais vezes ao dia, como se renovada. Até que a música tornou-se melancólica.

Lenora chegava para tomar café da manhã com os olhos inchados nos dias seguintes, a pele pálida. Não apenas parecia ter dormido pouco ou mal, como também causava forte impressão de ter chorado até a sonolência vencê-la. À noite, sua voz continuava linda.

Noites seguiram-se sem mudanças. Amelia esperava o sol descer e o fim do jantar para ouvir mais uma parte da longa composição há tanto esquecida no fundo falso da gaveta. Não havia muito o que fazer durante o dia, já que seu serviço estava encerrado. Seus colegas não precisavam de ajuda constante e, honestamente, Amelia tinha a sensação de que cada um deles carregava um peso no coração pela tristeza de Lenora, preferindo também o silêncio. Portanto, Amelia tentou ocupar-se no escritório, passando os olhos nos títulos dos livros, na tentativa de fisgar algo para ler. A distração não era tanta. Seu interesse real era menor. Então ela se viu sentada à escrivaninha, folheando um antigo livro de conto de fadas. Não prestava atenção, só via algumas figuras bonitas. Estava na página salpicada de desenhos de aves pretas.

Perguntou-se quão antiga Lenora era. Pelas roupas, deveria estar viva e jovem ao fim do século anterior e quem sabe tivesse testemunhado a inauguração da Torre Eiffel de fato. Mas podia ser mais. Os outros, Amelia já não tinha ideia. Albert mencionou a Grande Guerra. O que a senhora Clemonte diria de tudo isso? Com um suspiro, ela começou a brincar com a superfície da caixinha de música que havia deixado ali, girando-a. O sol começava a descer e o humor da jovem decaía. Sem cerimônias, como uma criança mexendo com um brinquedo ruim, ela deu corda na caixinha e abriu-a.

Qual não foi sua surpresa ao escutar a mesma canção de Lenora. Qual não foi seu choque ao notar um anel no centro, com quatro pedras formando um trevo. A imagem de Lenora mexendo nos dedos nus voltou de súbito em sua memória, uma visão que deixava Amelia intrigada. E agora, a peça faltante estava a sua frente.

O casarão escurecia e Amelia correu com o anel em mãos. Aquilo tinha que significar algo, as menores coisas significavam. E após muito procurar, encontrou Lenora nos jardins, gritando com o vento. 

Não havia mais ninguém a vista. Só Lenora, a noite e sua dor.

— Já era pra existir alguma mudança. Algo real. O que ele fez comigo? O que eu deixei ele fazer comigo? 

Mas o vento só riu.

— Lenora?

— Amelia, não. Por favor, não venha até aqui.

— O que houve, Lenora?

Ela sorriu tristemente, derrotada. Ajoelhou-se na grama para a confissão de seus segredos, enquanto o vento balançava seus cabelos com força. Sua voz esganiçou-se pela tristeza. Ela estava cansada.

— O mesmo que aconteceu contigo. Amor. Já faz muito tempo… E ele era tudo o que desejam que um homem seja, menos bom. Eu nem era humana. Mas ainda assim, estava apaixonada. Você entende?

Sim, Amelia pensou. Lembrava-se da lenda que as crianças contaram. Lembrava-se de quando ela própria amava alguém contra toda a razão. E isso se repetia mesmo agora, contra a lógica e qualquer resquício de bom senso. Um amor impossível a sua frente.

— Eu já fui a canção mais bela da noite. — Ela afrouxou a tensão nos ombros, como se incomodada com a posição dos próprios ossos. — Um tipo de pássaro que evocava simpatia até em espíritos. Talvez por isso alguém tão frio conseguiu se fascinar comigo, com meu canto. E eu cometi a tolice de achar que havia derretido um coração tão gélido.

Amelia esperou mais um pouco. Ainda de pé, tocou o ombro dela com carinho, aguardando a respiração de Lenora se acalmar, mesmo que ela parecesse a beira de um colapso. Em uma conferida rápida, ela olhou para dentro do casarão e viu luzes de velas acesas atrás do vidro. Maria e Albert observavam a distância, sem interferir. Talvez estivesse esperando algo assim, talvez por isso soavam um pouco mais agitados do que Amelia inicialmente reparou. Era receio por Lenora, por sua dor antiga e há anos sem solução.

— Barganhei com o vento. Pedi para me tornar mulher. Pensei que poderíamos... ser felizes. E o vento me avisou que o amor dele seria volátil, mas meu pedido não. 

Explicou, chorosa: O vento concedeu a chave da transformação de Lenora nas mãos do homem. Se ele a amasse de verdade, devolveria. Mas, mesmo depois de anos juntos e a ajuda dela na música, em sua carreira tão próspera, ele não devolveu. Partiu. E mesmo agora, com a composição em mão, ela continuava igual, com braços e pernas e a total figura de uma mulher bela. Suas lágrimas pareciam cristais igual a joia que Amelia encontrara.

Ajoelhou-se ao lado dela e pegou sua mão. Lenora podia não ser humana, mas essa história era comum: o fascínio de um homem por algo brilhante. A exploração e as correntes em torno desse tesouro. E por fim, o descarte. Era uma história sobre ganância, mas podia ser comparada a história de uma estranha fome: uma sensação universal de consumir o que estava a disposição, uma necessidade de exaurir algo até sua última gota.

Amelia segurou a face dela com ternura. Não podia remendar o coração dela, pois nem mesmo curou o seu. Mas seu ímpeto de ajudar era verdadeiro. Seus olhos enxergavam mais do que existia e Amelia acreditava ter compreendido o suficiente para encontrar um ponto que Lenora havia interpretado errado.

— Não era a música. Era o anel

Colocou-o no dedo de Lenora. Parecia um gesto sagrado, ainda que amargo. Se ela era uma criatura antes, voltaria a ser agora. Mas Amelia amava-a mais do que seu ego de mantê-la engaiolada e deixaria-a livre. Encarou os olhos em brasa de Lenora, sem antecipar o beijo grato que recebeu dela. E após um instante eterno, um momento que simultaneamente lhe pareceu muito efêmero, Lenora retirou seus lábios macios dos de Amelia. As duas respiraram o ar uma da outra, narizes ainda se relando. Até que Lenora sorriu e mirou o anel. 

— Uma pedra para cada estação. Eu ainda me lembro bem…

Sem dificuldades, ela arrancou duas pedras e jogou para o vento, renunciando parte da barganha antiga. Amelia compreendia que testemunhava o fim de um pacto ali, uma sequência de eventos que poucos olhos mortais poderiam ver e sequer compreender. Depois, Lenora devolveu-lhe o anel prateado, deslizando-a sobre o dedo anelar da mão esquerda de Amelia.

Um breve e espontâneo matrimônio.

— Mas, Lenora…

Os brilhantes da joia formavam um trevo. Segundo Lenora, uma pedra para cada estação. Abdicar de duas seria abdicar de metade do pacto? Metade do tempo que a mulher-criatura há tanto ansiava por ter de volta? Parte de Amelia compreendeu de imediato significado daquele sacrifício. Lenora amava-a de volta. 

— Eu vou voltar para você. Logo. E se quiser partir comigo… — Indicou a joia. — Você tem como barganhar com vento. 

O que eram braços, tornaram-se asas. A mulher que Amelia amava transformou-se em uma ave de penas negras com sutil reflexo azulado, e levantou voo com rapidez. Seu gorjeio elegante ecoou longe, quase como o som de um sonho. Já as roupas antiquadas permaneceram ancoradas na grama enquanto o pássaro sumia na escuridão da colina.

O vento foi a última companhia de Amelia e seu humor era duvidoso. Ainda gargalhava.


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