Aves de inverno cantam Segredos escrita por Shalashaska


Capítulo 3
A carta


Notas iniciais do capítulo

Prometo responder comentários (e deixar comentários nas outras histórias do desafio) em breve!



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Amelia não se sentia culpada por não sentir saudades de ninguém. Na gaveta de seus aposentos no belo casarão, já havia guardado três pagamentos desde que começara a trabalhar, totalizando um mês e quinze dias tão distante de sua cidade natal. A única pessoa que ela pensou em enviar uma carta — pois não tinham telefone no casarão e dificilmente existiria um telefone público no vilarejo mais próximo — era a senhora Clemonte, a única funcionária daquela biblioteca pequena e sem verbas do município.

A senhora Clemonte tinha, pelo menos, setenta anos e o que lhe faltava em vigor físico, sobrava em espírito. O som de seus passos acompanhados com a bengala eram característicos dentro da biblioteca, sempre organizando tudo e quase onipresente para quem frequentasse o lugar. Crianças desacompanhadas? A senhora Clemonte sabia que nem sempre os lares eram os lugares mais seguros para elas. Mães saiam para trabalhar, pais voltavam com muito álcool nas veias. Adolescentes sem muito rumo? Lá eles podiam conversar e arriscar caminhos entre os livros. Idosos como ela? Às vezes, traziam comida e acabavam conversando com o restante de frequentadores. 

Quando Amelia começou a ir até lá, era só para ler mais os clássicos ou tentar entender algo de Direito que pudesse ajudar no trabalho — pois perguntar para alguém e se passar por burra ou incompetente estava fora de cogitação. Mas gostava mais de pegar as edições bonitas que não conseguiria comprar e imitava os estilos de seus autores favoritos no seu caderno de anotações. 

Ela não sabia dizer quando a senhora Clemonte passou a prestar atenção nela e nem quando ela própria se sentira muito à vontade com a idosa. O fato é que a bibliotecária sabia de tudo. De cada detalhe terrível até sua partida de trem quarenta e cinco dias atrás. Parecia justo deixá-la a par dos desdobramentos de sua história, afinal, tinha sido ela que encontrou o anúncio e insistido para Amelia se candidatar. Mas só agora, depois de tantos dias, que pensava nela.

Estivera muito ocupada trabalhando e descobrindo coisas novas sobre seus novos colegas. Alfonso, o jardineiro, era surdo e comunicava-se por sinais. Seu sobrinho era um bom intérprete, mas Amelia estava se esforçando para não depender de terceiros para se comunicar com ele — até porque todos pareciam se comunicar naturalmente muito bem. Para isso, acabava pedindo ajuda daquele mesmo sobrinho, Albert, e agora sabia que o rapazote tinha um conhecimento avançado de plantas. Desenhava-as também em um caderno de bolso, com riqueza de detalhes em tinta preta e verde. E ela também não deixava de sentir que ele parecia ser bem tranquilo e maduro para a pouca idade.

Certa vez, Amelia questionou:

— Não sente falta de mais pessoas da sua idade? Ou de mais coisas para fazer na cidade grande?

Mas Albert só mexeu os ombros. Os dois estavam no escritório, pois Amelia tinha pedido uma opinião sobre a melhor forma de organizar uma pequena coleção de botânica. Melhor por autor, ordem alfabética ou assunto, como todo o resto? Mas se fosse por assunto, alguns livros literários com temas de plantas podiam ficar espalhados.

— Senti só no começo. Faz alguns anos, antes da guerra. Quem eu conhecia, não voltou do mesmo jeito.

— Mas você não parece ter mais que vinte anos, Albert.

Ele riu fraco e desconversou.

— O tempo passa diferente aqui. 

E por fim, ele a ajudou a organizar uma seção separada sobre botânica, com uma ordem que não afetava as demais obras. Não voltou a mencionar o assunto, nem Amelia comentou o estranho ocorrido com ninguém. Sentiu vontade de falar com Lenora, mas achou que seria muita ousadia presumir tamanha intimidade. Embora os quatro — Alfonso, Albert, Maria e Amelia — compartilhassem as refeições e outras interações ao longo do dia, Lenora nem sempre os acompanhava.

Suas ausências não eram comentadas.

Então agora finalizava uma carta para a senhora Clemonte. Primeiro, falou das roupas um tanto antiquadas da patroa e dos outros funcionários. A despeito do trabalho e do calor na cozinha, Maria sempre parecia elegante em comparação a Amelia e suas roupas menos acinturadas. Sentia-se usando um saco de batatas — mesmo quando escolhia seu melhor saco de batatas, pensava Amelia com um pouco de humor. Mas talvez fosse um costume local, certo? Aproveitar roupas de qualidade, independente da idade delas. Um bom costume, imaginava. A senhora Clemonte saberia dizer. Depois, demorou-se mais para transmitir tranquilidade para a bibliotecária. Estava mais calma. Tudo corria bem. Não pensava tanto nos antigos colegas de trabalho e só sonhava de vez em quando com o sorriso doce e vil de um nome que preferia esquecer. Por fim, narrou sobre esse curioso episódio com Albert. Era possível que ele estivesse se referindo a alguma outra coisa quando disse guerra.

O problema foi que seus devaneios roubaram sua atenção. Já era fim da tarde e em poucas horas o clima sopraria mais frio, trazendo a noite. Alfonso, que pelo menos uma vez na semana descia morro para comprar certos suprimentos na vila, já tinha saído e Amelia esqueceu-se de pegar carona na charrete. Mas caso se movesse depressa, poderia encontrá-lo no meio do caminho e aproveitar para postar a carta. Para não deixar a oportunidade passar, ela pegou o chapéu, um casaco e a carteira, correndo escadaria abaixo e depois aventurando-se do lado de fora.

Apesar do esforço físico, era melhor do que correr para bater ponto no antigo emprego.

Depois de alguns minutos, desacelerou. Suor salpicava suas têmporas e ela ainda não enxergava a charrete de Alfonso. Mas, mesmo que estivesse logo adiante, gritar não adiantaria nada. Ela estreitou o olhar para tentar ver mais adiante, porém sua atenção foi captada pela movimentação nos arbustos. 

Eram duas crianças, um menino e uma menina. Pareciam gêmeos e vestiam também roupas parecidas e comuns, mas o traço que mais fisgou Amelia foi a expressão de conluio entre os dois, cochichando e rindo. 

Ela não era dada a intervir nas brincadeiras de crianças, já que poucas vezes isso lhe dizia respeito ou realmente incomodava. Mas algo a trouxe mais para perto, talvez pelo receio de que fosse uma brincadeira séria ou por pura curiosidade. Os dois não a viram até que estivesse muito perto e pudesse também enxergar o que faziam: as crianças aguardavam um passarinho preto se enrolar na armadilha de laço adiante, entre as árvores.

O passarinho, entretanto, foi mais esperto e partiu, pegando a isca de fruta mais rápido que o movimento da corda para fechar em torno de seu corpo. Voou rápido, o movimento das asas cintilando em um fraco tom azulado por cima do preto, e sumiu. Podia ser um melro, mas ela não tinha certeza, 

As crianças reclamaram, Amelia soltou um suspiro aliviado. Só não sabia até que ponto seria bom ou não ficar feliz pela escapatória do bicho e tudo aconteceu tão rápido que ela logo achou melhor interagir com os dois. Mas não imaginava bem o que dizer.

— Vocês estão com fome, crianças?

Elas deram um pulo. Eram ainda mais estranhas de perto. Mas, por fim, pareciam dispostas a conversar. 

— Não. Mamãe nos proibiu de ter gatos ou cachorros.

— Mas não disse nada de passarinhos.

— Oh, sim. — Amelia riu. — São difíceis de pegar. Mais sorte da próxima vez, crianças.

Ela sorriu com falsidade. Embora fosse hipocrisia querer que o passarinho não fosse parar numa panela ou gaiola — já que ela comia carne, incluindo frango — não queria pensar no bichinho caçado por duas crianças. Deu a conversa por encerrada e voltou a caminhar, mas não escapou do falatório dos dois irmãos, que a seguiram. Um de cada lado, ambos completando as frases do outro, começaram a questionar.

— Você veio do casarão da colina? Onde um rico uma vez calou os pássaros?

— Não, tonto. — A menina interrompeu. — Ele roubou.

Amelia franziu a expressão.

— Acho que não entendi.

— Ela não deve ser daqui. — O menino cochichou alto demais para a irmã, depois voltou-se para Amelia. — Nunca percebeu? Na colina, os pássaros não cantam. 

— Nem na primavera.

— E que o tal rico tem com isso?

— Há muito tempo, um homem herdou o casarão. Ele era tudo o que desejam que um homem seja, menos bom. E ele roubou as virtudes dos pássaros da colina.

— Não, ele já era músico. — O menino corrigiu. — Mas era ganancioso. E disseram que os pássaros deram de tudo de bom grado.

Independente das versões, a conclusão era a mesma e os dois falaram ao mesmo tempo:

— E desde então, a colina não canta.

— E quem contou isso tudo para vocês?

O menino mexeu os ombros, resoluto.

— Todos sabem disso. 

— Os pássaros aqui embaixo sabem.

Amelia riu com uma dose de deboche. Não podia dar tanta atenção assim a conversas estranhas de crianças. Parecia uma lógica impossível de vencer.

— Os pássaros não parecem ter muita certeza da versão dos fatos, não?

Mas elas não comentaram esse ponto.

— E você faz o que? O jardineiro vem de vez em quando e já desceu, a lavadeira não vem há tempos.

— Eu conto as coisas. Organizo coisas. Escrevo coisas. E quero entregar essa carta.

De novo, as crianças trocaram um olhar de conluio e sorriram, de tal modo que Amelia temeu não perceber uma corda de armadilha no próprio pescoço. Adiante, enfim viu a charrete de Alfonso e se despediu logo dos dois, com a desculpa de que tinha que se apressar. Esperava ser tão rápida e esperta quanto o melro. Afinal, era simplesmente mau gosto ou hipocrisia tanta comoção por uma lenda local sobre a ausência de aves na colina quando as duas crianças não pareciam sentir nada ao tentar capturar justamente um passarinho. Paciência, pensou ela, sem paciência alguma. 

Mas, mesmo apertando o passo e segurando o chapéu para se afastar depressa, ela ouviu as últimas palavras da menina.

— Quem sabe você ainda receba uma resposta.

A estranheza daquela frase acompanhou-a no vilarejo, enquanto esperava Alfonso resolver os próprios assuntos. Amelia repetia a voz da menina de novo e de novo na cabeça, lembrando-se de que não deveria levar tamanha asneira a sério, mas sem ser capaz de tirar a frase dos pensamentos. Reparou também que existiam mais sons entre o barulho da multidão, pios e cantos de aves nas árvores das praças. Quis entender o que os pássaros confidenciavam entre si, quis entender a história do homem rico e de canções roubadas. No caminho de volta, só silêncio.


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