Café & Morango escrita por Roxeley Rox


Capítulo 3
A Exceção




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Beatriz era detalhista. Ela costumava ficar cismada com detalhes, fazer as coisas prestando atenção aos detalhes, e é por isso que seu trabalho, embora nem sempre eficiente, era muito eficaz.

Ela não sabia fazer trabalhos jurídicos – até sabia redigir algumas peças, mas não tinha o juridiquês –, mas se dava bem com trabalhos de escritório. Arrumar pastas, organizar pastas... Manuela percebeu isso.

No primeiro mês, ela fora bem restritiva com Beatriz. “Mexa apenas nisso”. No segundo mês, ela começou a aceitar o jeito da garota fazer o trabalho. “Está bom desse jeito, pode continuar”. No terceiro mês, ela já confiava em Beatriz com coisas mais além do escritório. “Ligue para Fulano, desmarque com Beltrano, cuide da minha agenda...”. A agenda. Foi no quarto mês que o trabalho de assistente pessoal realmente se tornou de assistente pessoal.

No quarto mês, a agenda até então privada de Manuela se tornou pública para Beatriz. Ela organizava os horários dos compromissos, marcava e remarcava, e, o mais importante, sempre mantinha Manuela a par do que tinha para fazer. Nenhuma data, nenhum compromisso, passava batido.

Beatriz era boa em trabalho de escritório, e ainda mais sendo assistente pessoal. Por isso, no quinto mês, ela teve a sua “promoção”.

— Bom dia, Beatriz. — Manuela a cumprimentou com um bom humor além do normal.

— Bom dia, doutora. — Beatriz respondeu de onde estava sentada, atrás de sua mesa, recebendo um olhar repreensivo de Manuela que já se acomodava em sua cadeira.

— Um dia eu vou fazer você parar de me chamar de “doutora”.

Beatriz sorriu, sabendo que seria difícil perder esse hábito. Ela pegou a agenda de Manuela de sobre sua mesa e começou a listar os compromissos.

— Hoje a senhora tem a reunião com Marcos às 10h. Ontem confirmei com seu irmão Danilo o almoço de hoje. Às 14h a senho...

— Desmarque todos os meus compromissos. — Manuela a interrompeu.

Beatriz a olhou, apenas para conferir se havia ouvido direito. Manuela nunca desmarcava compromissos no dia, sempre o fazia com antecedência.

— Desmarcar?

— Sim.

— Todos?

— Isso, todos.

Ela queria perguntar por que, apenas por curiosidade, mas resistiu.

— Inclusive o almo...

— O almoço com Danilo também. — Manuela levantou seu olhar de sua mesa para Beatriz, pegando a garota a olhando como se tentasse ler seus pensamentos, o que de fato ela estava fazendo. — Eu tenho que estudar um caso importante e preciso de total concentração.

— Certo. — Ela disse, agora entendeu do que se tratava.

Voltou a olhar para a agenda, já vendo para quantas pessoas teria que ligar.

— Beatriz, será que você pode ficar até mais tarde hoje? — Manuela perguntou, fazendo-a olhá-la novamente. Ela pareceu ponderar um pouco. — Se não puder, tudo bem.

— Não, não, eu posso. — Apressou-se em responder. — Só estava pensando se eu tinha algum compromisso.

— Se tiver compromissos...

— Não, não tenho. — Ela sorriu para enfatizar sua concordância.

— Ótimo. Preciso da sua ajuda hoje.

A "promoção" ao "trabalho jurídico". Beatriz não sabia juridiquês, mas era detalhista, e olhar para os detalhes ela sabia fazer. E Manuela precisava disso hoje.

...

Dois volumes. Dois! Eram dois volumes de um processo e elas estavam... mais pro fim do que pro começo, felizmente. E só eram 20h...

Manuela largou o celular sobre a mesa e massageou as pálpebras com as pontas dos dedos, depois afastou a cadeira da mesa e esticou os músculos do pescoço.

— Meu Deus. — Ela proferiu. — Isso nunca acaba.

Beatriz a olhou com um sorriso fraco, cansado. Se para uma advogada que é acostumada com esse tipo de coisa já estava cansativo, imaginava para alguém que “não é a minha área”.

— Pelo menos estamos acabando.

— Acabando, não. Acabamos. Por hoje.

Beatriz nem questionou, apenas suspirou e afastou a própria cadeira da mesa, finalmente relaxando um pouco os músculos tensionados.

— A senhora quer que eu remarque os compromissos de amanhã também?

Manuela suspirou, pensativa, antes de levantar de sua cadeira.

— Amanhã eu decido. Vem, vamos embora.

Obediente, Beatriz acompanhou Manuela para fora do escritório. O prédio inteiro estava silencioso, algumas partes dos corredores estavam escuras, salas abandonadas no final do expediente... era quase como em um filme de terror, Beatriz diria.

Elas esperavam pacientemente o elevador chegar ao andar, e Beatriz rezava para que nada de sobrenatural pulasse de lá de dentro.

— Você gosta de comida japonesa? — Manuela perguntou de repente.

— Sim. — Beatriz respondeu sem dar muita importância para a pergunta aleatória.

— Ótimo. Conheço um restaurante japonês muito bom, você vai gostar.

A expressão de Beatriz se tornou rapidamente confusa.

— Como?

Manuela a olhou com naturalidade.

— Eu te prendi até agora no escritório, nada mais justo que te recompensar.

— Ah... não, não precisa...

— Bem, se você não for, eu terei que beber sozinha, o que é deprimente de se fazer em um bar de restaurante japonês. — Ela argumentou, sua firmeza nas palavras calmas tornava difícil de Beatriz achar algum motivo para recusar. — Além disso, um dos filhos dos donos acha que só porque eu estou sozinha eu quero companhia e eu não quero, ao menos não a dele. Se você for, terei como despachá-lo mais rápido.

Beatriz pensou, queria recusar, mas gostava de sushi, não gostava de beber e nem queria beber com sua chefe, mas não queria deixá-la sozinha com o filho do dono do restaurante. Ela estava com fome, com sono, com fome, razoável sono e muita fome.

— Tá bom. — Disse, por fim, com um sorriso, ganhando outro em troca.

...

— Essa é a única vez. — Beatriz reafirmou, pela terceira vez, com a taça de vinho na mão.

Elas estavam sentadas em uma mesa, uma garrafa de vinho e duas taças pela metade.

Ela disse que não bebia, mas Manuela pediu uma única exceção com aquela voz firme e calma... Pronto, foi convencida.

Agora ela repetia que era a única vez que beberia. Ao menos é vinho, faz bem para a saúde, né?

— Esse é suave, achei que você ia preferir. — Manuela disse, levando sua própria taça aos lábios, bebeu um gole e a pôs de volta sobre a mesa. — E é uma ótima safra.

— Eu não entendo de vinhos. Tipo... nada. Nem sei o que é vinho seco nem suave nem nada.

Manuela deu uma pequena risada abafada.

— Vinho seco é o contrário de suave, basicamente. O suave é mais doce, o seco é mais amargo.

— Ah, nossa. Simples.

Manuela riu mais uma vez. Por algum motivo que ainda desconhecia, o jeito simples da garota de cabelos castanhos lhe fazia ficar mais confortável. Não era como conversar com seus irmãos ou amigas advogadas ou outras bem-sucedidas em suas vidas. Beatriz era simples, sequer sabia o que era vinho suave. Fofa. No bom sentido.

Seu sorriso desvaneceu quando fixou seu olhar em um homem do outro lado do restaurante, que se aproximava devagar com um sorriso e olhar presos nela.

— Não... — Ela murmurou, mais alto do que pretendia.

— O que foi? — Beatriz perguntou imediatamente.

— O filho do dono. — Ela sussurrou discretamente. — Está vindo para cá.

Ao contrário do que Manuela esperava, de que Beatriz não seria tão discreta e olharia para trás descaradamente, ela não o fez. Ela apenas a olhou por alguns segundos, séria, antes de falar.

— Você quer que eu cuide disso? — Ela questionou com um tom sério que Manuela nunca vira antes.

A advogada hesitou por um momento, pensando o que significava “cuidar”. Ela estava cansada, cansada dele, cansada de dizer “não” a ele e ser ignorada. Se a comida não fosse a melhor da cidade, ela nunca mais voltaria ali. Ela queria os rolinhos primavera que vinham de brinde apenas para aqueles que comiam no local. Mas ela não queria os rolinhos extras que ele insistia em dar a ela todas as vezes. Nem queria que ele se sentasse ao seu lado, como fazia todas as vezes.

Ele estava chegando perto e ela estava desconfortável. Desconfortável de ter trazido Beatriz para cá. Desconfortável por estar respondendo afirmativamente com a cabeça mesmo sua mente dizendo “Não, tudo bem, eu aguento mais algumas cantadas fajutas e olhares nada discretos”.

— Vou considerar isso como um sim. — Beatriz disse, notando o fraco balançar de cabeça da doutora.

Abruptamente, porém de um modo muito natural, Beatriz levantou de sua cadeira e deu a volta na mesa, levando consigo a cadeira, pondo-a ao lado de Manuela. Sentou-se e puxou sua taça para mais perto. Manuela a olhou confusa.

— O que...

— Boa noite, senhoritas. — Disse o filho do dono, um sorriso simpático cheio de segundas intenções.

— Boa noite. — Beatriz tomou a frente e respondeu, sem rodeios, sem muita abertura.

— Está tudo bem por aqui?

— Sim. — Novamente, sem abertura.

— Fazia tempo que não te via por aqui. — Ele se direcionou para Manuela, que mantinha um pequeno sorriso grudado no rosto. Um sorriso falso, do tipo que se mantém apenas para apaziguar a situação.

— Estivemos ocupadas. — Beatriz tomou a frente mais uma vez.

Manuela olhou para o filho do dono, ambos surpresos com a resposta, embora ela não deixasse transparecer. Foi uma resposta que soara...

— Certo... e desejam mais alguma coisa? — Ele perguntou, tentando contornar o assunto. Contornar ou sondar...

— Vai querer alguma coisa, amor?

Pronto. Manuela tremeu na base. Amor? Brilhante! Incorreto, mas brilhante. Uma jogada brilhante de Beatriz. E mais! Totalmente cinematográfica. O rosto do filho do dono era impagável, seus olhos pareciam acompanhar uma partida de ping pong, olhando entre elas duas.

— Não. — Manuela achou sua voz para responder com naturalidade. Era advogada, sabia fingir saber das coisas até quando não sabia.

Beatriz voltou a olhar para o homem.

— Já fizemos nossos pedidos, vamos só aguardar.

Ele balançou a cabeça de maneira exagerada e se enrolou para se despedir, afastando-se rapidamente em seguida.

Manuela tentou ao máximo não rir, porém não conseguiu evitar, dando uma risadinha contida e olhando para Beatriz.

— Isso foi hilário. — Ela disse, tentando controlar a vontade de olhar para o homem e rir descontroladamente.

— Achei que essas coisas não aconteciam na vida real, mas eu fiz acontecer e me sinto muito numa comédia romântica agora. — Beatriz proferiu com um sorriso.

Sua mente paralisou brevemente enquanto encarava os olhos azuis de Manuela, tão bonitos que se sentiu envergonhada e desviou o olhar para sua taça, pegando-a e levando-a aos seus lábios.

— Eu pagaria para saber como essa comédia romântica acaba.

As palavras de Manuela soaram... diferentes. Com um segundo tom. Quase como um... flerte?

Nah! Era apenas o vinho fazendo efeito. Em ambas.


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