Os Irmãos Park escrita por André Tornado


Capítulo 34
Novidades, fins e recomeços




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No fim daquele primeiro dia de aulas do segundo semestre, os três irmãos Park foram até à cafetaria Music and Chips. Pelo caminho, que fizeram numa algazarra alegre, a falarem um pouco alto, excitados e inconvenientes, debateram as ofertas da ementa que podiam, finalmente, provar, degustar, comer e beber. O almoço daquele dia tinha sido uma experiência muito satisfatória. Enquanto os outros alunos se queixavam da qualidade da refeição, deixavam sobras e faziam caretas a engolir a sopa que achavam insonsa e desnecessária, os irmãos Park elogiavam tudo o que metiam à boca, como se aquele fosse o manjar dos deuses. O Elliot estranhou-lhes o apetite. Avisou-os de que não queria competição, o glutão do Instituto era ele, mas Brad sossegou-o dizendo-lhe, de boca cheia, que eles não almejavam tal distinção. Bastava-lhes comer. Mike e Rob acenaram positivamente com a cabeça, também de boca cheia. Elliot achou que as férias lhes tinham feito muito mal.

— Vocês estão diferentes… – atirou, num tom impreciso, porque não conseguia definir exatamente o que tinha mudado. Era só um prurido, uma comichão ligeira.

— Impressão tua – divergiu Brad.

— Sim. É mesmo impressão tua. Até estou mais magro – completou Mike, a mastigar as pequenas porções que levava solenemente à boca com a ajuda do garfo.

— Deve ser isso. Estão mais magros – concordou Elliot. Ele não queria manter aquela conversa que achava completamente desinteressante. Entre rapazes não se comentavam quilos perdidos.

Como habitualmente, a cafetaria estava bem frequentada. Durante as férias havia uma quebra de clientes, que logo era recuperada assim que as aulas recomeçavam. As mesas estavam todas ocupadas, o balcão preenchido, a pista com gente a dançar, a música a competir com as conversas e as gargalhadas. Os odores enjoativos de fritos e de açúcar, de gordura e de caramelo. Naquela tarde, alguns professores também resolveram visitar o sítio. Juntavam-se numa mesa discreta, ao fundo.

Mike olhou desconsolado para o panorama. Era demasiada barafunda. Se antes ficava incomodado, agora começava a perceber que a mais mínima perturbação do ambiente lhe causava dores de cabeça que o deixavam zangado. Brad serviu-se de Rob para ajudá-los a ultrapassar a momentânea dificuldade da cafetaria lotada. Rob continuava a ser o mais alto dos três, um rapaz com uma estatura acima da média. O pequeno estratagema resultou. O ex-feiticeiro apontou para uma mesa que iria vazar, colada àquela da dos professores. Brad esfregou as mãos de contente, considerou que estavam com sorte, com muita sorte. Chegavam mais pessoas que também procuravam um lugar, que entravam e saíam, que ficavam na rua à espera da sua vez, a mostrar fotografias e novidades nos respetivos telemóveis.

Sentaram-se na disposição habitual. Rob à janela com Mike ao lado, Brad em frente. A empregada veio limpar o tampo, passando rapidamente por este um pano molhado com desinfetante. O gesto, desta vez, não incomodou as narinas de Mike que estava menos sensível a esse tipo de cheiros fortes e destoantes.

Brad desdobrou a ementa com entusiasmo. Olhou por cima da cartolina plastificada e perguntou, subitamente receoso:

— Mike… temos dinheiro?

— Continuamos com o cartão de crédito do mordomo – respondeu ele. – Sim, temos dinheiro.

— E vamos ter dinheiro até quando?

— Até os nossos pais chegarem.

— E depois? O que é que vai acontecer com o cartão de crédito?

— Acho que perde a validade… não entrei em detalhes com a bruxa.

— Era bom que tivéssemos o nosso dinheiro… não achas? Um pé-de-meia secreto – sugeriu Brad, debruçando-se sobre a mesa e falando em tom de confidência.

— Vamos deixar de fazer as nossas próprias despesas. Os nossos pais vão cuidar de tudo. Aos poucos, estamos a perder a nossa maturidade, adquirida durante os anos em que temos estados sozinhos e em que precisámos de nos desenvencilhar no mundo moderno. O nosso cérebro vai regredir até à nossa idade verdadeira. – Torceu a boca. – Não é uma coisa que me agrade, deixem-me dizer-vos… Mas o processo é irreversível a partir do momento em que fomos revertidos. Vamos ser adolescentes bastante comuns. Até ao final do ano, o ciclo fecha-se.

— Como é que vai ser? – indagou Rob, curioso. – Nós… com os nossos pais.

Mike pensou um pouco.

— Vai ser muito natural. A magia que envolve a casa vai encarregar-se de nos colocar nos nossos devidos lugares na família. Os nossos pais vão lembrar-se de nós desde que éramos crianças e nós acabaremos por nos lembrar também que eles sempre foram os nossos pais. Até ao final do ano, o prazo que nos deram, tudo se vai encaixar perfeitamente e sem folgas.

— Podemos ser adolescentes problemáticos – observou Brad.

— Espero bem que não! – exclamou Mike, chocado. – Só estou aqui hoje, convosco, depois de ter passado por uma existência de vampiro, porque fui um adolescente idiota que desbaratou a sorte de ter nascido numa boa família, onde podia crescer e tornar-me numa pessoa feliz. Mas não… não… tinha de estragar tudo – ruminou, crispando os punhos.

— Calma, Mike. A história nunca se repete. O que aconteceu, ficou no passado. Acalma-te – pediu Rob, compassivo.

Mike respirou fundo.

— Sim, concordo! Viemos ao Music and Chips para lanchar e para nos distrairmos, não para fazer terapia de grupo ou para carpir mágoas.

Brad sacudiu a cartolina da ementa, como se a estivesse a desempoeirar para que as suas propostas ficassem mais legíveis.

— Muito bem! Se temos dinheiro… vou ser ousado.

— Cuidado com as ousadias – avisou Mike. – Deixei de ser um vampiro picuinhas, mas alguns traços da minha personalidade mantêm-se. Continuo a detestar desperdício e extravagâncias. Prefiro não me destacar. Adoro a minha privacidade, o anonimato no meio da multidão.

— Mike, meu amigo… meu irmão – disse Brad, fingindo uma voz solene. – Estou aqui para lanchar e não me importo nada de também adiantar o jantar. Assim, poupamos a comida que temos em casa. E já que temos dinheiro, vou fazer um pedido excêntrico. Prometo-te que comerei até ao último bocado e beberei até à última gota. Posso fazer o pedido por vocês? Deixem-me ser eu a escolher. Vão ficar bem servidos, confiem em mim. E descansa… ninguém anda a vigiar o que fazemos ou deixamos de fazer. Estamos bem, entre colegas e amigos que já conhecem suficientemente os irmãos Park. Deixámos de ser novidade desde… desde outubro, por aí.

Estalou os dedos e chamou a empregada. Aclarou a garganta para que as palavras lhe saíssem perfeitamente audíveis por cima do burburinho. A mulher olhava-o com fastio, cansada por repetir aquele procedimento durante a tarde toda. Mascava uma pastilha elástica, segurava o pequeno bloco de notas e a esferográfica onde faria o apontamento.

Brad piscou o olho a Mike. Pediu um prato de nachos com guacamole, outro prato de batatas fritas, três hambúrgueres, três batidos de baunilha, três fatias de bolo de chocolate, uma garrafa grande de refrigerante de laranja, uma garrafa pequena de água gaseificada, três cafés. A empregada disse-lhe que era para já, deu meia-volta e foi comunicar os pedidos à cozinha.

Rob assobiou:

— Vamos sair daqui com uma monumental dor de barriga! Lembra-te, Brad, que os nossos estômagos passaram a ter uma capacidade limitada.

— Eu avisei sobre o desperdício – lamentou-se Mike. – Mas ele não me quis ouvir! Vou perguntar se podemos levar para casa o que não conseguirmos comer.

— Isso seria uma boa ideia – concordou Brad. – Levar para casa as sobras. Mas acho que não vai sobrar nada.

— O Elliot também vem?

— Não sei, Mike. Não o convidámos para se juntar a nós, não é? Provavelmente, não virá. E se vier, vai pedir a sua comida.

— Oh, mas a Anna foi convidada! – disse Rob a sorrir.

As costas de Mike endireitaram-se automaticamente. O rubor subiu-lhe às faces e ficou com a boca incrivelmente seca. Era uma reação ridícula e embaraçosa, mas inevitável quando a moça aparecia, ou havia uma sugestão, por mais pequena que fosse, que estivesse na vizinhança.

A Anna sentou-se ao lado de Brad. Cumprimentou-os timidamente. Baixou os olhos e prendeu uma madeixa de cabelo atrás da orelha.

— Queres sentar-te ao pé do Mike? O Rob não se importa de trocar contigo – disse Brad.

— Não é preciso. Estou bem aqui – respondeu ela. – Mike… queres que eu me sente ao pé de ti? – Mike negou com a cabeça, ainda sem conseguir moderar a cor avermelhada das bochechas. – Vês? O Mike também não quer. Ficava esquisito… podia parecer… em encontro.

— Nunca seria um encontro se não estão os dois sozinhos – disse Rob. E queixou-se: – Ai! – Mike tinha acabado de lhe pisar o pé para o calar e ele obedeceu. Calou-se.

— O que queres comer? – perguntou Brad, animado. – Nós já mandámos vir o nosso banquete.

— Um… banquete?

— Vai vir comida a mais, de certeza – resmungou Mike.

— Não é comida a mais. Tenho fome! – replicou Brad. – Sinto-me capaz de comer um boi. Foram muitos anos sem comer…

— Mas vocês comiam no refeitório – contrapôs a Anna, curiosa.

— Comíamos muito pouco, só para dar a entender que comíamos – explicou Brad. – Na verdade, a comida não nos sabia a nada e alimentar-nos como vocês, os humanos…

— Agora, já somos todos humanos— advertiu Mike. 

— Pois é, Mike… tens razão. Bem, alimentar-nos não nos causava nenhum prazer – prosseguiu Brad. – Agora é diferente. Estamos a descobrir as maravilhas da gastronomia que está à nossa disposição.

Contou brevemente que durante as férias do Natal tiveram uma bruxa que cozinhou para eles. Todas as comidas que ela preparou, na maioria com o auxílio de magia, eram deliciosamente iguais, sem surpreender o palato, mas também não eram confeções muito elaboradas. Mais tarde, quando os seus pais chegassem, haveriam de aumentar a sua experiência com a comida. Depois de, naquele almoço, terem saboreado a comida da escola, queriam saber como eram as refeições servidas na cafetaria. Fazia tudo parte de uma espécie de roteiro, de alargamento das suas experiências nos vários campos… humanos. Brad empregou essa palavra com hesitação, mas desta vez Mike não o corrigiu.

— Falaste em pais… quem são os vossos pais? Vocês têm… tinham pais? Sempre me pareceu que viviam sozinhos – comentou a Anna.

— E estavas certa. Não tínhamos pais. Vamos ter agora – anunciou Brad, sorridente.

— Onde foram desencantar uns pais… assim, desta maneira, tão repentina? Eles não vos conheciam antes, pois não? Ou são criaturas sobrenaturais, como vocês foram?

Rob explicou o que acontecia. A magia que protegia a casa, o casal que iria aparecer dali a dois meses, as pequenas adaptações graduais por que eles passavam desde que tinham sido revertidos. Mike permanecia calado, a observar os gestos contidos e os olhares deslizantes dela. Queria muito agarrar-lhe na mão, mas encolhia-se por estar rodeado de tanta gente.

— Oh!… Já percebi – disse a Anna. – Eu queria muito que a minha família fosse também a vossa. Não seria fantástico? Em vez de enfeitiçarem um pobre casal anónimo, enfeitiçavam os meus pais que se tornariam também os vossos pais. Adoraria receber, de uma assentada, três irmãos. Eu iria receber-vos muito bem.

— Ah, Anna! Era uma ideia fantástica, sim… mas não podia ser.

— Porquê, Brad?

— Por causa do Mike. Era estranho passares a ser a irmã adotiva do Mike.

A Anna corou de tal maneia, ficou tão vermelha, que parecia que lhe iria sair fumo das orelhas. Rob escondeu uma gargalhada. Mike deu-lhe outra pisadela.

— Sim… tens razão, Brad – concordou ela, voltando a baixar a cabeça.

A empregada chegou com os pedidos. O Mike cedeu à Anna o seu batido de baunilha. Perguntou-lhe se queria mais alguma coisa. Ela agitou uma mão e disse que não. Ficava bem com o batido. Ainda iria jantar. A mãe não gostava quando ela chegava em casa e dizia que não tinha fome, obrigava-a a comer em dobro. Deitava-se empanturrada e a sentir-se culpada por não ter recusado a dose dupla, a imaginar-se a inchar como um balão. Era gorda, tinha vergonha de ser gorda, precisava de fazer uma dieta, admitiu, mexendo o batido cremoso com a palhinha. Suspirou no fim, mais aliviada do que constrangida, porque era capaz de dizer aquelas coisas a eles. Confiava neles. Já tinham uma ligação afetiva muito forte. Espreitou Mike ao dizer aquilo.

Ele disse:

— Tu não és gorda. És perfeita como és. Sempre te vi com os olhos vazios de preconceitos.

— Obrigada, Mike. Mas tenho uns quilos a mais… é um facto. Se me decidir a perdê-los… vou também perder o encanto?

— Não. Nunca. Continuarei a ver-te como é suposto seres contemplada.

— E como é isso?

— Com amor – respondeu ele, com a voz a desvanecer-se.

Agora, coraram os dois.

— O Mike tem aulas de poesia – atirou Rob. Levantou os pés, para evitar uma terceira pisadela. – São aulas extracurriculares, relacionadas com o curso de artes.

— As aulas da professora Turner? – perguntou Anna, pestanejando. – Pensei em inscrever-me no início do ano letivo… As aulas de poesia podem ser frequentadas por qualquer aluno do Instituto, Rob – esclareceu. – Não são exclusivas do curso de artes.

— Podias também ter aulas de poesia, senhor futebolista bronco! – atirou Brad, a molhar uma batata frita no ketchup. – A ver se deixas de ser tão distraído. A poesia ajuda à concentração.

— Consigo concentrar-me sem poemas – disse Rob, um pouco atarantado por não ter percebido o remoque do irmão.

A Anna voltou-se para o Mike que mastigava devagar o seu hambúrguer que comia em pequenas dentadas. Ainda lhe custava atirar-se à comida sem reservas e ficava com dores de estômago se comesse muito depressa.

— Sabes algum poema de cor?

Ele engoliu o que tinha na boca. Encarou-a e respondeu-lhe:

— Sim, sei… Alguns poemas…

— Queres dizer-me um desses poemas? – pediu ela, timidamente.

Minh’alma, de sonhar-te, anda perdida… Meus olhos andam cegos de te ver… Não és sequer razão de meu viver… Pois que tu já és toda a minha vida!

Ela acabrunhou-se.

— Isso é muito bonito.

— É o início de um soneto de uma poetisa portuguesa chamada Florbela Espanca – esclareceu ele, numa voz doce. – Ela costumava celebrar o amor… o amor impossível.

— E quando decoraste esse poema… também era impossível para ti?

— Sim. – Ele pousou o hambúrguer metade comido no seu prato. Agarrou no guardanapo de papel e limpou os dedos, sem a desfitar. – Decorei outros poemas…

— Continua… por favor…

O amor não teme o tempo, muito embora… Seu alfange não poupe a mocidade… O amor não se transforma de hora em hora… Antes se afirma para a eternidade.

— Esse poema fala de um amor que nunca morre.

— Sim. É um famoso soneto de William Shakespeare.

— Muito bonito… Quando o decoraste ainda havia a eternidade para ti.

— Mas não para ti. Queres ouvir outro poema?

— Sim, Mike.

Eu não sei senão amar-te… Nasci para te querer… Ó quem me dera beijar-te… E beijar-te até morrer.

— Que amor é esse?

— É o amor que não é impossível e que não é eterno. É o amor que vive do momento que se possui. O amor é real, existe, concretiza-se com a nossa vontade. É de outro poeta português. Chama-se Fernando Pessoa.

— Gostas de poetas portugueses…

— A professora Turner também gosta. Diz que os poetas portugueses são muito trágicos e desesperados, ideais para celebrarem o amor. Não achas?

— Conheço pouco sobre poesia. Talvez me vá inscrever nas aulas para o segundo semestre.

— Gostaria muito de te ter comigo nessas aulas, Anna. Assim, podíamos decorar juntos os poemas que fossem mais especiais.

— É uma boa ideia… Queria escrever livros infantis.

— Eu sei. Já me tinhas contado. Acho muito bonito que gostes de literatura.

— Livros infantis não são literatura.

— São, pois! Escrever para crianças é muito difícil, requer um dom.

— Obrigada, Mike… por acreditares em mim.

— Vou sempre acreditar em ti, Anna Hillinger. Confiar em ti. Estamos ligados para sempre. – Perante a sua timidez, Mike emendou o rumo da conversa. – Quando escolhi as aulas de poesia foi só para preencher aquele furo do horário com qualquer coisa. Não estava verdadeiramente empenhado. Agora, percebo que foi uma boa opção porque me permite exercitar a minha mente que, durante este ano, vai perder todas as faculdades excecionais de um vampiro. A minha memória vai dissipar-se… Vai como que minguar. Fixar poemas vai manter-me a cabeça ocupada e dar-me parte da elasticidade que irei perder. Vou sempre perder, mas ao menos controlarei os danos.

A Anna sorriu-lhe.

— Gostei muito, a sério que sim – comentou Brad. – Que cena bonita!

A voz dele assustou-a, que se agarrou, com mãos trémulas, ao copo comprido do batido e à palhinha. Sorveu um grande gole para disfarçar como ficara atrapalhada por tomar consciência de que, efetivamente, não estava sozinha com o Mike. Estava tão envolvida, tão concentrada, tão encantada, que perdeu a noção do espaço, do tempo, do decoro…

— Brad, não os aborreças – pediu Rob. – Eles estavam a namorar e esqueceram-se de que estávamos aqui. É normal quando se está apaixonado.

O lábio de Mike arrepanhou-se, num trejeito que lhe era habitual quando era vampiro. Ainda não o tinha perdido totalmente, embora já tivesse deixado de rosnar como o fazia. Os olhos também já não se avermelhavam, nem a saliva engrossava, ou os caninos despontavam.

— Desculpa os meus irmãos, Anna – pediu. – São os dois idiotas.

Ela assentiu. Moveu a mão a indicar que estava tudo bem. A falha nem tinha sido dos irmãos. E tinha havido uma falha? Claro que não. O amor não era vergonha nenhuma. Mas mostrar-se enamorada, quando tinha uma reputação de alguma esquisitice na sua abordagem às relações com os outros, especialmente com rapazes, beliscava-lhe subtilmente o orgulho. Afastou o batido, recostou-se no assento. Estava a ser demasiado radical, estava a ser estupidamente teimosa, a manter uma máscara que já não lhe servia. Que o orgulho se danasse! Ela e os irmãos Park estavam ligados por um laço muito forte e não fazia qualquer sentido esconder isso da escola, da cidade e do mundo.

Num arroubo, agarrou na mão de Mike e declarou:

— Estou apaixonada por ti e não faz qualquer sentido inventar que não estou. Queres namorar comigo?

Rob bateu imediatamente palmas, deliciado com a fibra dela. Brad escancarou um sorriso, admirado com a coragem temperada com uma pitada de provocação que derrubava convenções e destruía paradigmas.

Mike susteve a respiração. Olhava-a de frente, fixando-lhe os olhos.

— Sim, Anna Hillinger. Eu, Mike Park, aceito namorar contigo.

Ela largou-lhe a mão. Mexeu vigorosamente o batido com a palhinha.

— Pronto. Já é oficial.

Brad soltou uma gargalhada, Rob redobrou os aplausos.

— Ah, parem lá com isso – insurgiu-se Mike. – Não aconteceu nada de especial. Foi só a Anna que me pediu namoro e eu aceitei. Estamos a chamar a atenção e vocês sabem…

— … como eu detesto isso! – exclamaram Brad e Rob em coro.

A Anna riu-se discretamente, cobrindo a boca com os dedos.

Mike abanou a cabeça, fingindo desapontamento. Respirou fundo.

— Estão desculpados.

— Tens de lhe oferecer uma aliança, Mike – sugeriu Brad enchendo a boca de batatas fritas que pingavam ketchup.

— Eu ajudo-te a escolher – propôs Rob. – Tenho muito jeito com joias.

— Oh… e qual a razão? – quis saber Mike.

— Talvez seja o meu sentido estético.

— Eu é que estou a tirar o curso de artes.

— Mas eu também tenho bom gosto. Sou muito observador.

— Concordo. Está bem. – Mike voltou-se para a Anna. – Posso oferecer-te uma aliança? Só o farei se te sentires bem com isso.

Ela olhou para os seus dedos pejados de anéis góticos, pretos, ornados de pequenas caveiras e de arabescos.

— Podes oferecer-me a aliança. Vou mudar de estilo. Afinal, já conquistei um vampiro e adotei outro vampiro e um feiticeiro como irmãos. Já não preciso de ter este visual tão… misterioso e sobrenatural. Também eu largo, a partir de hoje, as minhas ambições de ser uma bruxa respeitável.

Mike olhou para o seu hambúrguer. Na cafetaria, a comida era servida em pratos, mas vinha acondicionada num embrulho de papel com o logótipo da casa, que replicava o anúncio luminoso do exterior. Abria-se esse embrulho sobre o prato e podia começar-se a comer. As batatas fritas, os nachos, os cachorros-quentes, até as sobremesas usavam esse papel, que garantia a higiene das refeições servidas e fazia publicidade ao lugar.

Quando Mike voltou a agarrar no hambúrguer, o dedo indicador da mão direita raspou numa ponta do papel. Ele queixou-se, sorvendo uma pequena porção de ar.

— Ui!

— O que foi? – perguntou Brad a levantar os olhos do seu copo extragrande de refrigerante.

Mike olhou para o dedo onde sentira o ardor.

— Um corte de papel.

Papercut… – murmurou Rob de olhos vítreos, reminiscência de quando entrava em transe. Mas o que quer que lhe tivesse cruzado a mente, dissolveu-se tão depressa como veio.

A Anna pestanejou.

Mike viu como uma pequena gota de sangue nascia do corte quase invisível na ponta do seu dedo. A seguir, reparou que a tez de Brad tinha passado de rosada para verde.

— Estou… acho que me estou a sentir… mal… – gaguejou.

— Estás a sentir-te mal… por estares a ver sangue, Brad Park? – estranhou Mike.

A Anna levantou-se.

— Vou pedir um penso rápido para tapares isso. Em casa deves fazer um curativo como deve de ser, com desinfetante e uma nova ligadura. Espera aqui.

— Sim, estou a sentir-me mal… – disse Brad a ficar cada vez mais lívido.

— Vais… vais desmaiar?! – exclamou Mike.

E antes de poder evitar o achaque do irmão ex-vampiro, Mike observou Brad a perder os sentidos e a escorregar pelo assento, até tombar de lado, e não esboçou qualquer reação, porque achou aquilo completamente estapafúrdio. Rob comentou:

— Adoro quando uma história acaba bem!

 

—––– «« »» ––––

 

No final de fevereiro, os irmãos Park aguardavam com grande nervosismo e excitação a chegada dos seus pais. Iria acontecer, por fim, naquele dia especial, o primeiro de muitos em que deixariam de estar e de ser sozinhos.

A acompanhar a escadaria que levava ao piso superior, havia uma parede forrada de fotografias emolduradas que mostravam os rostos do homem e da mulher, incluindo algumas montagens com versões inventados de quando os irmãos eram mais novos, teoricamente desde que tinham sido adotados até ao tempo mais recente, quando contavam dezasseis e dezassete anos. Naquele tempo que passara desde o ano novo, eles tiveram tempo de decorar as feições dos progenitores para que a surpresa não fosse total. O casal passara a ser-lhes familiar e eles começaram a amá-los assim, através dessas fotografias que desejavam fervorosamente que fossem de verdade.

Bateram à porta. Mike desceu as escadas a correr. Ele era o mais velho dos irmãos e achou que lhe competia ir receber o simpático casal que passariam a chamar de pai e mãe. Brad assomou-se desde a balaustrada, Rob espreitou o átrio a partir da porta da sala.

Voltaram a bater com impaciência.

Mike fechou os punhos. Respirou fundo. Ganhava coragem. Depois daquele momento de reencontro com os pais, cumpriam mais uma etapa da sua existência como rapazes normais. A melhor das etapas. A magia iria abençoá-los e seriam muito felizes.

 Ele abriu a porta.

A pessoa que lhe apareceu, sorridente, desarmou-o completamente. O seu coração sobressaltou-se.

Atirou-se para cima dele, estreitou-o num abraço desesperado.

Gritou:

— Chester!!


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