Entrenanos escrita por Maria Maranhão


Capítulo 1
Capítulo 1 - Sentimentos Feridos


Notas iniciais do capítulo

Aproveitem enquanto a história fica de pé.



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Encarando o reflexo das estrelas nas gélidas águas do Lago Genebra, Alrik se questionava quando o baile de inverno chegaria ao fim e pudesse retornar ao quarto sem se preocupar com cumprimentos reais e manter presença no salão. Geralmente não se incomodava tanto com os trabalhos como príncipe herdeiro, costumava fazer seu trabalho e dançar com algumas moças solteiras, mas naquela noite não se sentia tão à vontade quanto gostaria. Por conta de um grandioso acaso do destino, o rei havia confundido as datas e marcado um baile para o aniversário de falecimento da antiga rainha, só percebendo quando as confirmações dos convites começaram a chegar na semana anterior.

E como seria impossível remarcar, o regente se viu obrigado a manter a data e dar o baile mesmo assim. Engolindo toda a amargura e tristeza que o dia trazia, o rei precisou se esforçar para receber os convidados sorrindo da melhor maneira possível, obedecendo cegamente as regras das etiquetas reais que a elite exigia com garras de aço, afinal, o rei Kane estava acompanhado de uma mulher negra no meio de monarcas tão brancos quanto as toalhas que enfeitavam as mesas do salão. As mesmas pessoas que acharam ofensivo um rei se casar com uma plebeia negra, pelo menos as mais cruéis nunca mais ousaram pisar no castelo. Não depois do “escândalo” que seu pai arrumou.

Logo ao ver o duque de Lucerna quase desferir um tapa no rosto de uma moça negra, Kane não perdeu um segundo e jogou o infeliz porta afora antes de gritar que se alguém mais achasse aquela atitude normal e aceitável deveriam se retirar ou ele chamaria os guardas. Alrik sabia que o pai não tolerava injustiças, mas aquela noite, nunca o vira tão irado com aquelas pessoas, lembrava-se bem dos jornais noticiando como se fosse um alarde o rei jogar um duque para fora, contudo, no momento em que a palavra racismo foi jogada a mídia o duque virou o centro das atenções e não de uma forma positiva.

Antigos processos vieram à tona e a cada informação nova era como alimentar uma enorme bola de neve, da qual muitos não conseguiram escapar e todos ali adoraram ver o caos instaurado. Mesmo que tivesse durado apenas alguns meses, Alrik se lembrava com deleite daquele período tão caótico e ao mesmo tempo tão delicioso. Não havia coisa melhor do que ver racistas sendo alvo de críticas duras e processos exigindo suas prisões. Toda aquela situação não fazia, automaticamente, o mundo um lugar melhor, mas era o suficiente para deixar o coração mais tranquilo ao saber que a justiça estava sendo feita.

— Mas que droga viu? — A voz doce e melódica de Meyri, sua tutora real, surgiu chamando sua atenção. Obrigando-o a virar o rosto na direção da figura feminina que se aproximava, poderia dizer que ela era um colírio para os olhos caso não fosse tão detestável. — Não posso nem brigar com você por estar com essa cara de bunda.

E caso ela não o odiasse. O sentimento era mútuo em determinados momentos.

— Nem imagina a alegria que isso me trás — zombou num leve cantarolar, causando uma careta irritada nela. Meyri havia sido contratada para ajudar com sua imagem de príncipe herdeiro, ela fazia um bom trabalho, mas era bem fácil compará-la a uma megera devido as constantes alfinetadas sobre tudo que Alrik fazia. Aceitando o vinho que ela trazia, completou: — É só mais um ano, com as mesmas pessoas que fingem se importar.

— Ossos do ofício — deu os ombros, indiferente. Agradecia por Meyri não ser insensível ao ponto de ignorar o quanto aquela noite era delicada e sombria, durante alguns momentos até acreditava ter encontrados lampejos de compreensão em seu olhar. — Pelo menos a bebida é boa.

— Pelo menos isso — concordou dando um gole na taça. Alrik queria ser louco o suficiente para afogar as mágoas na bebida, se entupir de álcool até mal se aguentar de pé, mas se cometesse tal ato tanto seu pai tanto Meyri o repreenderiam, cada um com razões diferentes. Correndo o olhar pelo salão, reparou no momento que o pai sumia por entre os convidados, sem dúvidas estaria indo tomar um ar para aguentar a onda de lembranças que o atingia.

O rei sofria com as antigas memórias de sua falecida esposa enquanto o príncipe sofria por não se lembrar com clareza da mãe biológica. Na época do falecimento, Alrik era uma criança de apenas cinco anos, lembrava-se um pouco de brincar no hospital com a mãe e narrar aventuras incríveis sobre como sonhava em ajudar as pessoas, mas já fazia tanto tempo que as lembranças pareciam cada vez mais distantes e menos coesas. Apesar de possuírem gravações caseiras que continham a voz de sua falecida mãe, não conseguia puxar pela memória a voz dela fora das gravações.

— Ei, seu tonto. — O chamado tão agradável de Meyri o trouxe de volta a realidade. — Posso não brigar com você pela cara de bunda, mas melhora a expressão de cachorro capenga.

Algumas vezes, na verdade, toda vez se questionava sobre sua tutora ter algum tipo de sentimento positivo em relação a ele. Considerando que ele invadiu seu escritório e a xingou, culpando-a por todos os problemas ambientais que a empresa dela causou, Alrik duvidava bastante. Mesmo assim se esforçava para ser um cara legal.

— Desculpe — balançou a cabeça, como se tentasse afastar os pensamentos que roubariam seu sono mais tarde. — Me perdi pensando como minha mãe era — suspirou, abaixando o olhar para o vinho na taça. — Fico tentando lembrar como era a voz dela, mas tudo que consigo são apenas flashs bagunçados que parecem sonhos e não lembranças.

Sem esperar algum tipo de resposta ou reclamação por estar deixando o clima mais fúnebre do já estava, o príncipe herdeiro quase entornou, num só gole, a taça que carregava. Na esperança de amenizar alguma parte da dor que o acompanhava desde que as lembranças estavam se tornando nebulosas e cada vez mais distantes. Algumas vezes desejava voltar no tempo para quando sua mãe ainda estava viva e saudável, quando seu rosto e voz não eram apenas lembranças distantes que se perderiam com o vento. Queria conhece-la, conversar com ela e dizer que havia seguido seus passos, sempre tentando honrar sua memória, tinha certeza que ela ficaria orgulhosa e abriria um largo sorriso.

Mesmo que quisesse conhecer a mãe biológica, Alrik sabia que havia outra pessoa que exercia aquele papel de mãe, que sempre o ouvia e se orgulhava de seus feitos, dizendo sobre o quanto o amava enquanto incentivava seus sonhos. Seu pai estava longe de ser perfeito, mas o amava muito e ficava feliz vendo-o casado com Sol. Podia não ter uma relação de mãe-filho muito profunda com ela, mas adorava como ela também o acolhera sob suas asas.

— Deve ser um saco isso — Meyri comentou, sem o consolar ou coisa semelhante, foi então que o barulho de um cantil sendo aberto chamou sua atenção e ao olhar para a mulher ao seu lado, se espantou ao vê-la despejando algum líquido na própria taça. Parecendo perceber que era observada, estendeu o cantil para ele com um sorriso no rosto. — Quer uma coisa mais forte não licenciada?

— Onde arranjou isso? — Surpreso apontou para o objeto em mãos.

— Sou filha de um demônio, tenho algumas cartas na manga — disse convencida enquanto despejava o conteúdo na taça de Alrik, erguendo um pouco a taça, oferecia um brinde. — A essa droga de baile.

Vê-la daquela maneira, sorrindo tão confiante e se mostrando alguém que não fosse brigar com ele por qualquer careta diferente fez com que um fio de esperança surgisse no peito de Alrik. Com um sorriso brincando nos próprios lábios ergueu a própria taça.

— A essa droga de baile e a hipocrisia da elite — acrescentou antes de brindarem, mas assim que experimentou a bebida não conseguiu evitar uma careta. Meyri tinha dito que a bebida era forte, mas não imaginava que era tão forte assim. Sua garganta queimava um pouco e os olhos ardiam levemente. — Quando disse que era forte, não achei que fosse tanto. O que trouxe no cantil?

— Sangue de demônio. — Ela respondeu simplesmente tomando mais um gole. Alrik teria cuspido a bebida se ainda houvesse algo em sua boca. Encarou a tutora com um misto de incredulidade e desespero, rezando silenciosamente para que ela estivesse mentindo. No momento em que ela viu sua expressão, deu risada antes de seguir explicando: — É uma receita caseira do meu pai, ele é bom nessas coisas, uns 80% de álcool. — Mais um gole e um sorriso presunçoso voltava a surgir no rosto feminino. — Com outros toques especiais. É minha dose diária de paciência para conseguir lidar com você durante o dia.

E foi assim que toda sua esperança de estabelecer uma amizade com a tutora se foi tão rápido quanto surgiu. Meyri não era capaz de sentir uma emoção positiva que envolvesse ele, isso era um fato.

— Não sou tão detestável assim — reclamou, a cara fechada. — Tenho agido como um cara legal faz tempo, você quem não para de reclamar e não me dá uma chance. — Não negava que só ouvir reclamações sobre si mesmo, além de irritar e querer simplesmente a mandar para o raio que a parta, trazia um aperto estranho ao peito.

Porém, antes que iniciassem mais uma discussão, o som de cochichos os interrompera e Alrik sentiu o sangue ferver. A hipócrita elite dinamarquesa havia se cansado de comentar sobre o estado fragilizado do rei e agora falavam deles, riam enquanto fofocavam sobre a possível briga que teriam. Aquilo o enfureceu, não se importava que falassem de si, mas Meyri não tinha nada com aquela história, mesmo que ela não fosse a miss simpatia ninguém merecia ser alvo de fofoquinhas.

Estava prestes a terminar de enterrar sua reputação, quando ouviu Meyri bufar.

— Que desperdício de bebida. — Ela reclamou após correr o olhar pelo salão, assim que ela virou em sua direção deparou-se com um olhar contrariado e irritado. — Olha aqui, seu otário, vou fazer uma boa ação, mas não ache que gosto de você ou coisa do tipo.

Alrik se questionou o motivo de ter cogitado defender sua adorável e meiga tutora. Não colocaria a mão no fogo por ela nem morto, Meyri era a criatura mais insuportável que conhecia até o momento.

— Será que em algum momento dessa vida você vai parar de me tratar como um tapado? — reclamou com a cara fechada. Um minuto atrás tinha quase arranjado briga por ela e naquele momento sentia raiva de si mesmo e da mulher ao seu lado.

— Tá, tá, tá. ­­— Ela balançou a mão, sem se importar com o que ele dizia. Alrik estava prestes a continuar reclamando, quando Meyri prosseguiu num suspiro: — Que desperdício de vestido, essa mancha não vai sair nunca. — Após reclamar, entornou a bebida que carregava no próprio vestido. — Agora, finja cara de surpresa e arrependimento. — Ela trocou a taça vazia pela cheia e então deixou a que estava em sua posse cair no chão, fazendo com que todos os olhares se voltassem para os dois. — Oh... Céus, Alrik, meu vestido!

Sentia todos os olhares do baile voltados para eles, encarando e esperando algum tipo de reação. Meyri apenas fingia uma cara de arrependimento, analisando o estrago que havia feito no vestido, deixando-o ainda mais confuso e perdido. O arrependimento parecia real, ela resmungava baixinho sobre o quanto adorava aquele vestido e tudo mais, não parecia estar fingindo de fato. Fazendo-o pensar que se o Oscar do mundo humano valesse para o mágico, certamente ela levaria um prémio de melhor atriz.

Ainda se encontrava sem saber o que fazer, quando ela o encarou fixamente e ao enxergar um lampejo de impaciência em seu olhar, sorriu um pouquinho compreendendo o que ela estava querendo fazer. Talvez, ela não fosse tão insensível quanto pensasse.

— Pelos deuses! — Arfou, como se tivesse se arrependido por derramar a bebida. No fundo, ele estava mesmo sentindo um leve arrependimento, reconhecia um vestido de alta costura quando via um. — Eu sinto muito Meyri.

Ela suspirou, abaixando o olhar para o vestido.

— Que bagunça... Não posso continuar no baile desse jeito.

Alrik quase, quase, abriu um sorriso com isso. Ela estava tentando o tirar do baile, leva-lo para outro lugar, entender isso melhor fez um sentimento de gratidão espalhar-se pelo peito.

— Eu sinto tanto por seu vestido. Faço questão de acompanha-la até o carro — disse, retirando o pesado casaco e envolvendo-a com ele. Tentando tampar a mancha gigante que estava presente no tecido.

— É o melhor a fazer. —  Meyri suspirou, ajeitando melhor o casaco em seus ombros. Seguia fingindo estar muito frustrada pelo vestido manchado, algo que o impressionava pois se não soubesse o que ela estava fazendo poderia afirmar que ela realmente estava triste por conta do “inconveniente”. Se ela um dia tentasse o ramo de atriz, não ficaria um segundo sem ofertas de trabalho.

— Vamos. — Alrik lhe estendeu a mão, exatamente como a etiqueta real exigia, convidando sua tutora para que saíssem dali o quanto antes. Assim que sentiu os finos dedos segurarem sua palma, uma leve onda de choque percorreu toda a extensão de seu corpo causando um forte arrepio que precisou morder a parte interna da bochecha para não reclamar ou apertar a mão de Meyri.

Era a primeira vez, ao longo de todos aqueles meses, que trocavam um gesto em que suas peles se encontrassem sem a presença de luvas ou casacos. Sabia que estavam fingindo uma preocupação, mas o arrepio que aquele simples toque proporcionou não era, nem de longe, um fingimento. Mantendo a postura, começou a guiar sua tutora para a saída, passando a andar de braços dados enquanto ela continuava passando um paninho qualquer sob a mancha, numa falsa esperança de removê-la ou amenizar o estrago.

Enquanto caminhavam por entre os convidados, num respeitoso silêncio, sua mente divagava pelas diversas teorias que poderiam, de alguma maneira, explicar o arrepio que sentira. Por mais que Meyri e ele se odiassem, jamais chegaram ao ponto de farpas físicas, então poderia descartar a possibilidade dela ter causado aquele choque, ainda mais que seu olhar sequer tremeu ou demonstrou alguma emoção que a denunciasse. Não poderia ser aquilo, a menos...

Sentiu os dedos de Meyri apertarem seu braço, quase como um aviso para pararem. Estava prestes a perguntar o motivo, quando reparou numa das convidadas se aproximando com uma expressão de desgosto e os olhos cravados na enorme mancha no vestido de sua tutora. Não importava o status, as pessoas sempre continuariam se metendo o nariz onde não eram chamadas.

Observou sua tutora conter um suspiro enquanto forçava o melhor e mais falso sorriso educado. Meyri realmente merecia estar no ramo de atriz, se não soubesse que ela estava irritada e querendo ir embora, poderia dizer facilmente que ela tentava ser gentil ao dispensar a senhora que se aproximou deles.

— Você não precisa se incomodar, vou ficar bem...

— Ah céus querida, não, não, você está terrível — suspirou ela, não permitindo que Meyri continuasse com a frase.  Fazendo uma careta como se estivesse com pena, a doce e intrometida senhora segurou uma parte do vestido quase como se segura um pano sujo. — Precisa tirar esses trapos manchados antes de dançar com alguns senhores.

Alrik quase riu, mas se conteve. Podia não conhecer o lado descontraído da tutora, mas conhecia sua ira e apesar do olhar gentil, sabia que Meyri se segurava para não ser grossa com a velha.

— Eu irei pra casa e....

— Podemos chamar as empregadas e trocar o seu vestido, querida — A convidada, que agora havia identificado como Martha, sugeriu não deixando a frase ser terminada mais uma vez.

Nessa altura, Alrik imaginava que ao olhar para o rosto de Meyri encontraria uma expressão raivosa, mas tudo que encontrou foi o rosto cansado e pálido. Aquilo o preocupou bastante, não tinha como ela estar cansada tão repentinamente. Ela teria comido algo que não fez bem? Talvez a velha senhora era uma sugadora de energias disfarçada? Seja o que fosse, Alrik a levaria para fora mesmo que precisasse voltar depois, podia odiar a garota, mas não era um babaca de deixa-la num ambiente ruim.

— Obrigada pela preocupação, mas... — Ela suspirou antes de piscar algumas vezes, parecia tentar focar a visão. Meyri até tentou formular algumas palavras, mas no minuto seguinte o corpo feminino tombou em direção ao seu. Agindo rápido, Alrik a segurou antes que atingisse o chão, mesmo que pra isso acabasse precisando se ajoelhar e sujar a calça chique que usava, geralmente não seria uma tarefa complicada caso as roupas não estivessem meio apertadas. Naqueles momentos sentia falta dos jeans corriqueiros que o acompanhavam no dia a dia, quando Meyri não estava no seu pé reclamando.

Ignorando por completo o ambiente ao redor, Alrik se ergueu com a tutora nos braços, ela ainda parecia pálida e não dava sinais de que havia sido um mal estar momentâneo. Se alguém tivesse posto algo na bebida dela, mesmo que por acidente, a pessoa desejaria nunca ter nascido porque transformaria a vida do infeliz num verdadeiro inferno.

— Vou leva-la pra casa — anunciou e caminhou até a saída. Não ligava para o que poderiam comentar depois disso, se falariam mal dele ou coisa parecida, só queria levar Meyri para casa e deixa-la em segurança, talvez devesse chamar algum médico, mas duvidava que alguém atendesse a domicilio ainda mais naquele horário. Talvez poderia leva-la para algum hospital? Eles tinham alguns abertos 24 horas.

Antes que pudesse se decidir sobre algo, ouviu um bufar familiar e ao baixar os olhos deparou-se com Meyri acordada e bem revoltada. A surpresa o fez parar de andar, o que permitiu que ela conseguisse sair de seu colo, já estavam bem longe da entrada do salão e o breu da noite garantia um certo encobrimento aos dois.

— Vai ter que me comprar um vestido novo — reclamou ela, tirando o casaco dos ombros e o devolvendo. Alrik apenas a observava, incrédulo. — Diga que chamou um enfermeiro para fazer cena e que a partir de hoje tenho intolerância a camarão, o que é um pecado porque eles são deliciosos.

Alrik piscou algumas vezes, atordoado e sem entender nada do que estava acontecendo. Ela estava fingindo? Meyri havia fingido o desmaio? Ele estava sonhando? Como alguém era capaz de fingir tão bem um desmaio.

— Você.... tava fingindo? — questionou, mas logo balançou a cabeça dispensando qualquer resposta. Era melhor agradecer e cada um seguir seu caminho. — Deixa pra lá. Farei isso e te compro um vestido novo — sorriu — como agradecimento pelo que fez. Se quiser algum em especial, só falar.

— Claro, mas não pense que fiz isso por gostar de você — reclamou apontando o dedo para ele. No rosto uma expressão revoltada se fazia presente. — Só estou fazendo minha obrigação como sua babá, vou cobrar o vestido mais caro só por esse servicinho extra.

E, mais uma vez, todo o sentimento de gratidão se foi. Como pode sentir algum tipo de preocupação por aquela criatura?

— Sabe? Gentileza não vai matar você — reclamou esfregando o rosto. — Compre o vestido mais caro que quiser, não me importo — mentira — se for o que gostar, tudo bem.

Esperava que Meyri brigasse com ele, o ofendesse, que lhe desse as costas e o mandasse para o inferno enquanto o abandonava no meio da noite, porém, ela não fez nada disso e ignorou por completo a reclamação. Viu os olhos dela vagarem por seu corpo, analisando seus trajes e ponderando a situação em que se encontravam. Ela estava livre para ir embora, não teria que se justificar, o que não era o seu caso já que o único lugar para qual poderia fugir ficava bem longe do castelo. Sem contar que chamaria bastante atenção ao vagar pelas ruas do reino, provavelmente foi isso que fez Meyri suspirar frustrada.

— Vamos, vou te levar até minha casa — avisou começando a caminhar para um ponto mais escuro, onde a luz do poste não a alcançava. — Não posso deixar que fique andando pelas ruas igual um vadio. Ei, sombras, preciso de vocês.

Primeiro Alrik achou que sua tutora estava louca enquanto dava batidas no chão usando os saltos, mas ao ver oscilações escuras brotarem das sombras, ele se calou.

— Preciso que nos escondam, ninguém pode nos ver, entenderam? — Meyri questionou com autoridade enquanto apontava para as sombras, que tremeluziram parecendo concordar com sua mestra. — Conto com vocês para isso, agora vão, vão! — seu olhar voltou-se para ele, a sobrancelha estava erguida indicando irritabilidade. — Você vem ou vai ficar parado aí igual um idiota?

A reclamação fez com que retomasse o controle de seus pensamentos acerca dos poderes de Meyri. Meses atrás, numa de suas brigas costumeiras, testemunhou a tutora soltar fumaça pela boca como se fosse um dragão feroz, sabia que ela era poderosa, mas não ao ponto de controlar as sombras como uma brincadeira de criança. Testemunhar aquele “truque” o surpreendeu da mesma maneira que encantou, Meyri não era uma tutora qualquer, disso tinha certeza.

Apressando o passado, passou a acompanha-la em silêncio. Conforme percorriam as ruas e cruzavam com pessoas, Alrik pode notar que ninguém sentia a presença deles, continuavam seus caminhos, presos em seus próprios mundos e vidas, sem imaginar que seu futuro governante passava por ali. Pela primeira vez na vida, percebeu como era bom ser invisível, não ter uma coroa pesando em sua cabeça e exigindo que tomasse providências, mas ali, envolto pelas sombras, sentia-se tão confortável que passou a sorrir.

Não pretendia abandonar a coroa, ainda gostava de ser príncipe, mas talvez conseguiria incorporar a vida de plebeu a sua rotina, quem sabe encontrasse um sósia perdido por aí que aceitasse trocar de lugar por alguns dias.

— Chegamos — Meyri anunciou ao virarem numa rua mais escura, embora o ambiente parecesse um pouco assustador, havia uma aura acolhedora por entre as sombras. Imaginou o tipo de pessoas que poderiam viver naquela rua e principalmente no prédio que ficava logo no começo.

Depois de entrarem e Meyri começar a conversar fluentemente em japonês com um oni, Alrik vagou o olhar pelo ambiente ao redor, mas ao ver uma família completa, não pode evitar a onda de tristeza que surgiu. Uma mãe, um pai e o filho pequeno, agasalhados no enorme sofá perto da lareira enquanto riam, se divertindo uns com os outros. Por alguns segundos foi como olhar uma lembrança antiga, da qual achava não possuir mais, recordou-se dos momentos de história em que sentavam no enorme salão e recontavam histórias para os medos que rondavam o pequeno príncipe sumissem, permitindo uma noite mais tranquila.

Apesar de tudo, aquela ainda era a noite que sua mãe, em termos simples, virou uma linda e formosa estrela no céu. Seu peito ainda doía com a saudade que o visitava.

— Alrik? — Meyri chamou, ela estava parada no elevador, o aguardando, não carregava uma expressão muito amigável. — Vem logo antes que eu te abandone aí.

Sabendo que ela era realmente capaz disso, se apressou para entrar no elevador.

— Não sabia que era fluente em japonês — comentou quando as portas se fecharam e o elevador começou a subir. — Trabalhou lá alguma vez?

— Por um tempo, durante a faculdade. — Meyri respondeu começando a tirar os saltos. Foi difícil não reparar na diferença de altura entre eles após o fim da tarefa. — Tem bebidas lá em cima, depois avise ao seu pai como estão as coisas. Você dorme no sofá se ficar por aqui essa noite — avisou ela enquanto lhe entregava os saltos.

Com os sapatos em mãos pode reparar no quão finos eles eram. Nunca tinha visto Sol usar aquele tipo de salto, geralmente a via sempre baixinha e usando saltos que não a incomodavam, mas aqueles eram surreais para sua mente.

— Como se anda numa finura dessas? — A curiosidade misturada com o espanto era evidente em sua voz. — Não fica com o pé doendo?

— Demônios adoram uma tortura, Alrik — Meyri cantarolou sorridente, aquilo o assustou um bocado e aparentemente a divertiu, pois logo uma risada escapou pelos lábios dela. — Quando se é mulher precisa aprender a lidar com algumas coisas, mas as sombras são umas fofas aliviando essa sensação pra mim.

— Deveria ser um crime usar sapatos desse jeito — resmungou, ainda encarava os sapatos quando o elevador parou no andar deles, assim que as portas se abriram revelando um adorável corredor, Alrik achou que estavam no andar errado, mas Meyri logo deixou o elevador com ele indo atrás. — Não é melhor usar sapatos mais confortáveis?

— Claro, mas não é conforto que eles exigem — respondeu ela, procurando as chaves por entre os bolsos do vestido. — É sofisticação, e o sofisticado é desconfortável.

— E dolorido — acrescentou enquanto caminhavam. O corredor era estranhamente acolhedor, parecia ter saído de uma revista de casas perfeitas para morar, mesmo assim Alrik se mantinha alerta para caso daquilo ser uma ilusão. Não tinha como Meyri, na grosseria que era, morar num lugar bonito. — Parece ser um bom lugar pra morar.

— E é sim, mas não fique dizendo onde é! — Ela voltou a reclamar enquanto destrancava o apartamento. — Não fique tão a vontade, a casa não é sua.

Deu um último aviso antes de abrir a porta, revelando um apartamento cheio de plantas verdes, bem saudáveis, com uma decoração clara e agradável. Alrik se esforçou para não deixar evidente seu choque conforme adentrava no ambiente observando todo o espaço, não tinha como aquele lugar pertencer a Meyri, ela não parecia do tipo que curtia coisas agradáveis. Esperava encontrar uma decoração dark e assustadora, mas aquilo? Só podia estar no meio de um feitiço de ilusão.

— Há quanto tempo mora aqui?

— Desde que me mudei para a cidade.

— Você tem plantas bem... vivas — comentou se aproximando de um vaso, as folhas eram mesmo de verdade e não de plástico. — Já estavam aqui quando chegou?

— Não, eu compro e cuido, só uma que meu irmão trouxe. — Meyri respondeu em voz alta, só então reparou que estava sozinho na sala e ao ouvir o barulho de passos retornando, foi incapaz de conter uma cara de espanto com a imagem de sua tutora usando roupas largas e confortáveis, os pés estavam descalços e o cabelo castanho caia livremente sobre os ombros. Ela estava linda e parecia relaxada sem o caro vestido no corpo. — O que foi? Perdeu alguém parecido comigo ou acha que minha cara é um espelho?

E lá estava a Meyri de sempre. Se existisse alguém capaz de ter só um tipo de humor, esse alguém seria ela. Nunca a viu sem estar irritada, apesar de tratar os outros com calma e educação, com ele era apenas brigas.

— Só nunca tinha te visto com roupas não formais. — Se defendeu reclamando. — Não precisa ser grossa. Enfim, onde quer que eu deixe seus saltos?

— Me dá. — Ela se aproximou antes de pegar os sapatos. — Vou tomar banho e vou demorar, fique aí e não mexa nas minhas coisas.

Aquilo não era um pedido, era uma ameaça que ele conseguiu interpretar bem. Erguendo as mãos em sinal de rendição, esperou até que ela voltasse a sumir pelo apartamento para relaxar um pouco.

— Criaturinha mais sem paciência, credo — reclamou num sussurro. — Será que gentileza vai queimar a alma dela?

Alrik balançou a cabeça, afastando aquele tipo de pensamento. Estava em território inimigo e embora duvidasse que Meyri fosse mata-lo ou algo assim, não queria arriscar, afinal não sabia até onde iriam as habilidades dela. Se esconder dois adultos nas sombras não a fazia nem suar, quem diria outras coisas mais... cruéis, digamos assim, por isso era melhor que ficasse de bico fechado e evitasse qualquer tipo de conflito, por mais difícil que fosse. Sua tutora era a pessoa mais insuportável que conhecia, mas pelo bem de sua própria vida, ficaria quieto e não a incomodaria.

Aproveitando o momento, se permitiu colocar as mãos para trás e dar uma volta pela sala. Móveis de madeira preenchiam o ambiente, garantindo um charme mais rústico contribuindo para a construção de um espaço tranquilo, até conseguia imaginar Meyri jogada no sofá tomando um café bem quente nas manhãs de inverno. Alrik parou de andar ao deparar-se com um quadro cheio de fotos, muitas eram de lugares que ela tinha visitado e outras mostravam a família dela, mas o que realmente o surpreendeu foi ver a expressão alegre em Meyri.

Em quase todas as fotos, ela sorria ou fazia alguma gracinha com os irmãos, que inclusive não eram nada parecidos com ela e muito menos com a mãe deles. Talvez tinham sido adotados ou eram de relacionamentos anteriores, não tinha como saber, mas era possível notar o carinho que aqueles quatro nutriam um pelo outro pela forma que se olhavam nas fotografias. Sempre sorridentes e risonhos. Um lado que Alrik nunca tinha visto em Meyri, sempre estavam brigando e implicando um com o outro, mesmo que houvessem momentos que conseguiam se manter sérios como em reuniões, não era sempre que a via sorrir.

Suspirou baixinho. Será que um dia conheceria aquele lado dela? Em algum momento Meyri aceitaria tê-lo ao seu lado? Eram sonhos distantes, quase irreais, que feriam seus sentimentos e não o deixavam com fortes esperanças de que um dia teria o amor retribuído por ela.


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Notas finais do capítulo

Essa história é totalmente original e os personagens não podem ser reproduzidos em qualquer outro lugar.



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