Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 54
Capítulo LIV




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A voz do Dr. Salazarte entoava as palavras em latim que estavam quase perdendo o sentido para ela, de tão repetidas. E que, no fim de tudo, realmente não teriam mais sentido nenhum, pois não adiantariam de nada. 

O corpo de Ezequiel havia parado de soltar seus espasmos e seus murmúrios delirantes se calaram, restando somente um adormecer febril. Antônio descera com os filhos mais velhos para uma conversa e, pelo silêncio, supunha que os ânimos tinham se acalmado um pouco. Ou esperava que sim, pois não tinha mais forças para suportar quaisquer discussões que fosse. Seu ânimo estava sendo drenado junto das forças do irmão mais novo.  

Desde que voltara para o quarto de Ezequiel, Matias não saíra do seu lado no divã, afagando sua mão em um silêncio acolhedor. Naquele momento, preferia somente a companhia do que qualquer palavra de incentivo. Mesmo que soubesse das boas intenções e as apreciasse do fundo do coração, sabia que, daquela vez, seriam nada além de palavras vazias. 

― Obrigada por estar aqui ― Irina murmurou para o noivo, assistindo as costas do Dr. Salazarte em seu trabalho e ouvindo as palavras em latim irem cessando aos poucos. 

A noite era feita de silêncio do lado de fora e a casa também, repousando em uma falsa serenidade. 

― Eu não poderia ficar em casa sabendo do que estava acontecendo aqui ― ele retorquiu, tendo permitido que a noiva apoiasse o queixo em seu ombro bom. ― Eu não conseguiria. 

De fato, ela também não conseguiria dormir se estivesse distante de Ezequiel e soubesse do que estava acontecendo. Era por isso e por muito mais que não queria partir sem ele. Seu nariz encostou no tecido do casaco de Matias, que cheirava a roupa guardada.  

― Suas irmãs estão passando essa madrugada sozinhas ― Irina relembrou do fato. As cinco horas da manhã já haviam ficado para trás há muito e dali algum tempo o relógio bateria as seis, supunha. As horas se arrastaram velozes noite adentro. 

― Temos alguns empregados na casa ― Matias respondeu e ergueu a mão dela até os lábios, depositando um beijo. Irina fechou os olhos por um instante, cessando com a imagem de onde estava presente. Seu nariz ainda sentia o cheiro de guardado e o de ervas, ainda mais forte do que antes. ― Eu não conseguiria ficar em paz sem saber se você estava bem. 

― Eu irei ficar bem. ― Ela segurou o rosto dele com uma mão, fazendo com que os olhos se prendessem aos seus. Engoliu em seco, não querendo dizer aquela frase. Mas sabia que precisava manifestá-la em voz alta, pois estava cada vez mais próxima de se tornar real. ― Mesmo quando o pior acontecer.

E as palavras saíram, vacilando pelas sílabas, mas deixando exposto em voz alta a verdade. 

― Ezequiel irá ficar bem ― ele a interrompeu, finalmente uma breve dose de otimismo aparecendo. 

Naquele contexto, era somente um fósforo acesso no meio da escuridão. Queimaria rapidamente e seria outra vez engolido pelas trevas. 

― Creio que não conseguirei fazer a febre ceder além disso ― o médico anunciou, interrompendo a conversa aos murmúrios dos dois e jogando por terra a esperança que Matias tentara dar. Fechou sua maleta com um clique e tocou o rosto de seu paciente com uma mão. ― Ainda está alta e não sei se ele despertará tão cedo. 

Ou talvez ele nunca despertasse, talvez nunca voltasse à consciência além de delírios. 

― Ele não disse mais nada sobre a garça e o javali? ― Matias questionou para o pai, fazendo um desvio no assunto principal. 

O Dr. Salazarte se levantou, desfazendo as mangas da camisa dobradas até um pouco abaixo do cotovelo. 

― Eram delírios ― o médico retorquiu lacônico. 

― Eram elementos que estavam presentes nos sonhos dele ― Irina disse no lugar do noivo, sua resposta de praxe para quando tentavam minimizar o pesadelo de Ezequiel. Leônidas resmungou algo sobre fazerem parte de delírios e ela dirigiu a próxima pergunta para Matias. ― Você chegou a descobrir a qual família pertence o brasão com o javali?

Ele balançou a cabeça. 

― Nem mesmo meu amigo conhece...

― Os Tremonti têm um javali em seu brasão ― o médico respondeu no lugar do filho, pegando a valise e pronto para se afastar. E também pegando os dois de surpresa pela súbita entrada no assunto. 

― Os Tremonti são a família do marido de minha irmã mais velha. Eles vivem em Mempolis ― Matias completou com a dúvida que ficara no ar. E não à toa ninguém em Tantris conhecia uma família com aquele brasão. ― Eu não compreendo como isso pode se conectar ao sonho de Ezequiel...

― Talvez nunca iremos entender. A Luz não nos deu muita coisa além de mais enigmas para interpretarmos. 

O barulho de passos cessou e Irina imediatamente reagiu, vendo o Dr. Salazarte interromper seu gesto de se afastar da cama do paciente, dando meio volta e aproximando-se novamente dele. Deixou a valise sobre o lençol e segurou seu pulso. 

― Ezequiel, consegue me ouvir? ― ele questionou e Irina prontamente se pôs de pé. 

Apenas parte da sola de seus sapatos tocaram o chão na breve corrida até a cama, enquanto Matias ainda se erguia do divã. Ezequiel lentamente abriu os olhos e quando o fez as pupilas estavam dilatadas como se estivesse completamente no escuro. A vela queimando pela metade na mesa de cabeceira lançava um pouco de luz sobre o rosto pálido feito cera. 

― Consegue me ouvir? ― o médico repetiu a pergunta. 

Os olhos de Ezequiel, que vagavam perdidos pelo cômodo, se focaram nele e se demoraram um pouco. 

― Consigo ― ele respondeu em uma voz baixa e quebradiça. 

Irina se sentou na beira da cama e pegou o copo de barro que estava tampando a boca da garrafa, enchendo-o com água. 

― Sabe onde está? ― O Dr. Salazarte continuou na sequência de perguntas e soltou o pulso dele, enquanto Irina ajudava o irmão a beber um longo gole de água. Ele apenas deixou, sequer tecendo um comentário de que era capaz de fazer aquilo sozinho. 

― No meu quarto ― Ezequiel respondeu em uma voz um pouco mais firme. Limpou a garganta e Matias parou ao pé da cama, assistindo aos três. ― Mas estive em uma floresta. Eu achei que era a mesma floresta do meu sonho, mas... ― Parou, olhando para o Dr. Salazarte e parecendo não vê-lo de fato. ― Acho que não era a mesma. 

― Você esteve em um estado de delírio, Ezequiel, seu corpo não saiu desse quarto. ― Leônidas tentou trazê-lo à razão. 

― Mas eu estava lá, eu vi... ― ele insistiu, erguendo a voz rouca e mais uma vez com aquele olhar febril, que Irina conhecia tão bem, em seus olhos. Tocou o rosto dele, percebendo como ainda estava em uma temperatura alarmante. ― A menina e a mulher, as duas... 

— Aquilo já passou, meu solzinho. Tente descansar — Irina tentou acalmá-lo e depositou um beijo na bochecha dele, aquecendo brevemente seus lábios ressecados pela falta de água. Se esquecera completamente de bebê-la. — Se você já teve o pesadelo com a floresta essa noite, ele não virá te assombrar de novo. 

Após sua breve tentativa de animá-lo, afastou o rosto e engoliu em seco, fazendo uma análise do irmão à luz da vela. As marcas, por algum motivo, pareciam ter enfraquecido, porém a palidez permanecia. Os olhos encaravam assustados o médico ao lado da cama. O que ele teria visto dessa vez? 

— Siga os conselhos de sua irmã e tente descansar, Ezequiel. — Leônidas dirigiu um olhar severo para Irina, deixando claro o conselho, pois já não era a primeira vez que pedia para que ela se retirasse e não era atendido. A mão magra e fina de Ezequiel se fechou em torno do pulso dela. — Sua irmã estará no quarto ao lado, por ora você precisa dormir. 

Ainda com as pupilas dilatadas, a expressão de Ezequiel se nublou. De repente ele parecia plenamente presente ali, como se mal tivesse acabado de sair de umas das piores noites de delírio. 

— Eu preciso conversar com Irina — ele decretou, os olhos passando pelos dois homens e a névoa febril desanuviada. — Eu preciso fazer isso agora, não posso deixar para depois. 

— Você está agitado demais, precisa de repouso — o médico continuou a tentar convencê-lo. — Seja o que for pode esperar até amanhecer, sua irmã não sairá daqui. 

— Não, eu não posso — ele rebateu firme, surpreendendo Irina, que tomou a mão dele entre a sua. A palma suava. — Eu preciso falar com ela agora.

Irina acariciou os dedos dele, tentando acalmá-lo. Apesar das aparências, ele ainda poderia estar um tanto delirante. 

— Talvez não seja melhor deixarmos? — Matias se intrometeu pela primeira vez. — Ezequiel continuará agitado se não conseguir falar o que deseja. 

— Eu também preciso falar com você — Ezequiel se dirigiu para Matias, o olhar febril tendo sumido de uma vez. — Com os dois. 

Leônidas observou-o longamente e estendeu a mão, para que tomasse o pulso de seu paciente mais uma vez. 

— Eu estarei aqui caso ele se agite demais — Matias continuou a insistir para o pai. 

O médico liberou o braço de Ezequiel e pegou a valise que estava onde a deixara, sobre os lençóis. Parecia reticente, delongando-se mais do que deveria em seus movimentos. 

— Não demorem demais e tentem não agitá-lo. 

Em uma passada demorada, o Dr. Salazarte se retirou do quarto. A porta foi aberta para a escuridão do corredor e fechada com um clique, deixando lá dentro os três e o cheiro ainda mais pungente de ervas. 

— Como você está se sentindo? — Irina logo questionou, acariciando o rosto do irmão. 

Ezequiel fechou os olhos por um instante e soltou uma longa respiração. Matias se aproximou e parou atrás da noiva, apoiando uma mão sobre seu ombro. 

— Eu voltei porque precisava falar com você mais uma vez — Ezequiel disse, parecendo mal medir as próprias palavras. Ele abriu os olhos e fitou a irmã, sem nenhuma sombra de delírio febril. — Eu vou partir, Irina, antes do amanhecer. Eu sinto isso. 

Ela sentiu como se a voz tivesse morrido na garganta e o ar estivesse mais pesado ao seu redor quando aquelas palavras se espalharam pelo ambiente. Era como naquela noite sob as estrelas, mas com ele em perfeito estado de consciência. 

— Você vai estar melhor até o amanhecer, Ezequiel — Matias tentou tranquilizá-lo, tomando a fala que deveria ser de Irina. Ela sentiu que a mão em seu ombro apertou-o mais, acariciando-a de forma gentil sobre o tecido. 

Irina ainda sentia como se sua voz tivesse desaparecido por completo e a mente não conseguisse lidar com nada além das palavras do irmão. 

Sabia que aquele momento chegaria. Mesmo quando ainda havia esperança, sabia que aquele momento poderia chegar. Naquele tempo, ainda tinha forças para tentar, mas, depois de todas as descobertas e de todas as suas esperanças estilhaçadas, uma por uma, era somente uma questão de esperar. Angustiante ainda era pouco para descrever. 

— Você se lembra do que me prometeu? — Ezequiel tomou as mãos da irmã entre as dele, esquentando-as com seu calor. — Você seria feliz com um marido que a amasse da mesma forma que você sabe amar e tendo a família que nós nunca tivemos. — Olhou sobre a cabeça dela, encarando Matias. Sorriu, os olhos lentamente retornando para ela e entregando-lhe uma dose de alívio que não conseguia ser recebida. — Hoje eu sei que você vai conseguir cumprir, a Luz fez questão disso. — Ele soltou uma de suas risadas sopradas. — Eu acredito que o que Ela queria que eu entendesse com aquele sonho não era a história de nossa família, saber disso pouco mudou para mim, é apenas uma informação. Mas… Eu acredito que esses sonhos aconteciam por causa de vocês. Vocês eram a garça com asas do meu sonho. Vocês dois. — Acabou apertando a mão da irmã entre as suas, enquanto ela somente o encarava sem esboçar outra reação que não fosse pressionar os lábios. Engolir as lágrimas parecia mais difícil do que o habitual. — Foi graças a esse sonho que vocês puderam se aproximar e se apaixonar. 

— Ela deveria ter salvado você, é injusto… — Irina finalmente conseguiu falar, para sua própria surpresa, pois esperava que não saísse nada além de choro quando abrisse a boca. O restante das palavras ficou pelo caminho quando o irmão tocou-lhe o rosto. Da mesma forma que ela sempre fazia com ele. 

— Eu não acho que foi injusto. — Os dedos dele aqueciam qualquer parte da pele que tocassem e, nos lábios, o sorriso sutil parecia não querer desaparecer. — Eu pude ter irmãos e um pai que me amavam e uma irmã que estava disposta a fazer qualquer coisa por mim. Quantas pessoas poderiam ser amadas por alguém como você? 

Irina acabou soltando um soluço estrangulado sem querer e Matias abaixou o rosto para perto de seu ouvido, sussurrando palavras que não conseguiu compreender. O sorriso de Ezequiel desapareceu. 

— Você não merecia… —  ela articulou dentro de outro soluço estrangulado. 

— Não é isso que eu quero que você lembre de mim quando eu me for. — Ele se apoiou nos cotovelos e depositou um beijo sobre a testa da irmã, assim como ela fizera com ele tantas vezes. Irina sentia que a visão começava a embaçar, seu controle tendo escapado completamente. 

Ela soltou a mão que Ezequiel mantinha dentro do calor da dele e se atirou sobre o corpo magro do irmão, os braços envolvendo o pescoço e tendo que fechar a boca para que outro soluço não saísse. Seu peito subia e descia com rapidez em um choro que lutava para sair e, gentilmente, sentiu que braços a envolviam, o abraço desesperado sendo devolvido com delicadeza. 

— Quando eu me for, não quero que se lembre de mim como um coitado moribundo que não merecia viver a vida toda doente. — Ezequiel parou por um longo tempo, enquanto a irmã começava a deixar que as lágrimas molhassem o tecido alvo das roupas de dormir dele. O cheiro de ervas queimava seu nariz. — Eu quero… — Ele engoliu a saliva devagar. — Eu quero que se lembre de mim em todos os momentos felizes que passamos juntos. Os planos que compartilhamos, as risadas, as noites sob as estrelas, as vezes que a venci no xadrez, as vezes que pude sair com você e Estevão… É isso que eu quero que você lembre de mim. 

Ezequiel depositou um beijo sobre o cabelo da irmã e ergueu o rosto na direção de Matias, que encarava os dois à beirada da cama, não dizendo sequer uma palavra para interferir. 

— E eu sei que ela vai precisar de alguém para isso… Alguém como você, Matias. Alguém que a faça ver a luz quando tudo que ela conseguir ver for a escuridão. E alguém que consiga amá-la na mesma intensidade que ela sabe amar. 

— Eu o farei — Matias afirmou, de um forma tão solene como se prestasse um juramento. 

— Eu sei que vai. — Irina sentiu e ouviu que Ezequiel riu. — Talvez seja por isso que Ela permitiu que eu partisse apenas agora. Apenas espero que o outro lado seja como Dante descreveu. 

Irina de imediato soltou o irmão, porém ele conteve-a dentro do abraço. 

— Ela não pode… — Irina soltou quase em um grito, a consciência de que aquilo que iria acontecer cedo ou tarde sendo completamente esquecida. 

Ezequiel depositou um beijo sobre a testa da irmã com lábios quentes e soltou os braços envoltos nela, deixando o corpo lentamente tombar contra o travesseiro. 

— Ela… — Irina tentou dizer novamente, mas não conseguiu soltar nada além de uma palavra fraca e que morreu depois de passar pelos lábios. 

— Virgílio e eu, logo após, nos elevamos, 'té que do ledo céu as cousas belas, por circular aberta divisamos¹. — Ezequiel fechou os olhos e começou a declamar. — Saindo a ver tornamos as estrelas.

Ezequiel sorriu, mas Irina agarrou as roupas de dormir do irmão. 

— Ela não pode te tirar daqui! — ela chorou, encostando o rosto contra o peito dele, ouvindo o coração em batidas lentas. 

— Irina… — Matias a chamou e tocou-lhe o ombro. — Ele está delirando outra vez. 

— Depois que acerca do existir presente, dos míseros mortais mostrou verdade, aquela a que emparaísa a mente, como quem vê no espelho a claridade, de tocha, que de trás esteja acesa² — Ezequiel continuou a declamar os versos, as palavras fluindo com rapidez e cessando quando ele parou para dar uma longa respiração. 

— Irei chamar o meu pai — Matias informou e soltou-a. 

Barulhos de passos soaram contra o piso e a porta bateu na parede em um estardalhaço. Irina continuava agarrada contra o irmão, ouvindo o coração dele ainda bater lentamente.

— Como o canto é do metro a natureza: assim minha memória representa que eu fiz, nos belos olhos me elevando, com que amor cativou minha alma isenta. — A voz de Ezequiel parou por um instante, sendo seguida por um longo suspiro. — Guia-me ao paraíso, minha dama. 

Irina aguardou um instante no silêncio do quarto, percebendo que as batidas em seu ouvido iam ficando mais distantes uma da outra. Uma… Silêncio… Mais uma… Ela soltou o corpo do irmão e tocou-lhe a face ainda quente. Ele havia parado de respirar.

Puxou-o novamente contra si e encostou o rosto contra o peito dele, não ouvindo mais nada. 


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Notas finais do capítulo

¹: Canto 33 do Inferno de A Divina Comédia de Dante Alighieri.
²: Canto 28 do Paraíso de A Divina Comédia.



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