Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 5
Capítulo V




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Passaram-se três minutos inteiros desde que Leônidas e Matias trocaram uma palavra pela última vez. A carruagem chacoalhava conforme percorriam o caminho pelo centro da cidade até a residência de Cornélio Melquiades, o líder do Clã Bruxo.

O doutor e mestre de poções distraía-se olhando pela janela do veículo, puxando a cortina para o lado. Mesmo que não houvesse ninguém além dos dois ali dentro, Leônidas optou pela carruagem da família, com quatro lugares, ao em vez da sege que habitualmente utilizava. Para causar alguma impressão? Matias não sabia dizer com certeza, apesar de ter uma suposição para a escolha do pai.

― Acredita que retornaremos em tempo para jantar com Matilda e Meredith? ― o bruxo mais novo questionou, fazendo o outro desviar os olhos azuis das ruas com seus transeuntes agasalhados do lado de fora. 

― Não retornaremos tão cedo.

― Não consigo compreender o que poderíamos extrair de bom desse evento. ― Matias finalmente manifestou a dúvida em voz alta. ― Pelo o que o senhor diz, este é um evento apenas para as famílias importantes do nosso clã, e a nossa imagem...

― Um evento onde tentarão aproveitar a oportunidade para conseguir um assento no Conselho, não se esqueça ― o médico o interrompeu para pontuar com um ar grave. ― Metade dos Altos Membros do nosso clã caíram junto do seu avô e ainda precisaremos realizar uma eleição em breve. Essa será a oportunidade perfeita para os interessados começarem com seu jogo.

― E nós não teremos nada a ganhar com isso. ― Matias não podia deixar de observar o pai, a sua postura relaxada no assento oposto ao seu. Os olhares se cruzaram e deixaram estar assim, medindo um ao outro. — Não conseguiremos nada que não seja censura dos demais.

― Nós não baixamos a cabeça. Essa é a primeira oportunidade que temos para comparecer a um grande evento do Submundo depois de tudo o que aconteceu. ― Mesmo com a mera menção de toda a confusão envolvendo a família, Leônidas não deixou-se mostrar nenhum sinal de abalo, somente desviando o olhar novamente para a janela. Matias questionava-se como o pai lidou com a perda naquelas semanas. Já havia superado o luto? ― Iremos mostrar para nossos conhecidos que não estamos abalados. E nós não compactuamos com os erros do seu avô. Não se esqueça de deixar isso bem claro sempre que ousarem tocar no assunto.

Matias assentiu em silêncio, ainda mantendo o olhar fixo no pai. Leônidas mantinha um de seus habituais casacos cinzentos, desta vez optando por um de formas florais tracejadas pelo tecido. Os cabelos foram empoados¹, deixando alguns pontos brancos aqui e ali, disfarçando os poucos fios grisalhos. Quanto a ele mesmo, sempre acharia aquela moda mundana um tanto exagerada.

A carruagem parou e Leônidas foi o primeiro a abrir a porta, saltando na frente do filho, que parou por alguns instantes para observar os arredores. 

Cornélio Melquiades definitivamente escolhera a dedo onde iria morar, mesmo que fosse bem no coração de um bairro de maioria mundana. Uma meia dúzia de degraus levava à entrada da residência, imponente com seus três andares. Ao se aproximarem, puderam perceber as luzes avermelhadas escorrendo das janelas que alcançavam o chão. Na porta de entrada, também feita completamente de vidro, o mordomo estava parado, fazendo sua função de controlar quem chegava.

Os dois foram guiados pelo vestíbulo e através do hall para um enorme salão na parte sul da casa. O ar era preenchido pelo burburinho de conversas em grupos espalhados, enquanto um maior se concentrava ao redor de um homem que declamava poesia de uma forma dramática. Lacaios caminhavam por entre os presentes em posse de bandejas.

― Dr. Leônidas Salazarte e seu filho, Matias Salazarte ― o mordomo gritou para anunciar os recém-chegados e no exato instante várias cabeças viraram-se para vê-los. O empregado se afastou, voltando para seu posto na porta de entrada.

Matias pôde sentir o olhar de julgamento pesando sobre si. Não precisava de muito para adivinhar o que a maioria ali estava pensando, contudo, Leônidas ignorou a censura que se espalhava pelo ar e caminhou para dentro do salão, parou um lacaio e pegou uma bebida. O filho seguiu seus passos e entrou para o meio do povo, tendo certeza que via duas figuras caminhando em sua direção.

― Matias, meu amigo! Que surpresa revê-lo! ― Bergoy saudou, apertando-o em um abraço que foi correspondido. Pelo canto de olho, percebeu que o pai tinha sumido. — Uma surpresa maior do que vê-lo por aqui é saber que já retornou. Por que não me mandou um bilhete?

Os dois se separaram, com Bergoy ainda mantendo uma mão no ombro do amigo e avaliando-o de cima a baixo, como se observasse cada uma das mudanças ocorridas naqueles quatro anos sem se verem. Além dos cabelos pretos um pouco mais compridos, não havia nada de diferente em Matias, enquanto Bergoy substituiu a barba pelo rosto limpo. 

― Eu retornei ontem mesmo. O cansaço da viagem me venceu e hoje comecei a folhear os papéis que Bernardo deixou ― ele explicou, tentando falar no tom mais neutro possível a respeito do irmão. — Acreditei que as notícias fossem correr rápido até seus ouvidos.

Matias deixou-se ser guiado pelo amigo em direção a uma das enormes janelas fechadas e por onde a luz da lua se misturava com a da vela. Pelo canto de olho, também pôde perceber que os dois foram o tempo todo seguidos por uma mulher, que não saíra de perto de Bergoy desde que ele se aproximou.

― Meus pêsames pelo que aconteceu com a sua família ― o outro bruxo desejou, abaixando um pouco o tom de voz. ― Como você está?

― Ainda um tanto atordoado ― Matias respondeu, tomando breves segundos para tentar colocar-se em palavras. ― Tive tempo o bastante para pensar durante a viagem, mas as coisas parecem um tanto diferentes do que eu esperava encontrar. ― Ao ouvir um “hum” do amigo, resolveu continuar, também pegando uma bebida do lacaio que passava. ― O elo que ligava nossa família era minha mãe, com a partida dela cada um de nós foi para um lado diferente. Parece não haver compreensão.

Um tanto taciturno, ele finalizou levando a taça aos lábios e aspirando um pouco o aroma antes de beber. Sentiu o doce do vinho e percebeu que precisava de algo para comer. Aparentemente, não havia nenhum canapé por perto.

― Seu pai parece não ter diminuído o ritmo de trabalho mesmo com o que aconteceu, então... ― Bergoy comentou antes de tomar mais um gole de sua taça, movendo os ombros em sua sobrecasaca verde. ― Mas suponho que aqui talvez não seja o lugar mais adequado para tratarmos desse assunto, meu amigo. Podemos não ser vampiros, mas alguns de nós tem ouvidos tão potentes quanto.

Matias assentiu, mirando os olhos para o lado e vendo a figura da mulher quase sumindo ao lado de Bergoy, um tanto menor do que ele. Decidiu por tentar trazê-la para a conversa.

― Fico feliz pelo seu casamento, como me contou na última carta. Infelizmente a ocasião me impediu de mandar-lhe minhas felicitações antes do meu retorno.

Com a fala do amigo, o outro bruxo finalmente pareceu dar-se conta da figura que estava ao seu lado aquele tempo todo. Aparentemente, ou ela fazia o tipo silencioso ou não se sentia à vontade para conversar com desconhecidos.

― Esta é Rebeka, minha esposa. 

Com a apresentação, a Sra. Katsaros se aproximou e estendeu a mão enluvada, recebendo um beijo polido nos nós dos dedos. Os dois se cumprimentaram com um menear de cabeça e ela logo voltou para aquele que parecia ser seu lugar fixo, sempre ao lado do marido, deixando que Matias visse apenas seu movimentar no vestido amarelo-ouro e que pouco pudesse observar seu rosto, no entanto, foi o suficiente para ligar o nome mencionado na última carta que recebera do amigo à algumas lembranças.

― Você se casou com a filha do seu tutor em elementos da natureza e suas aplicações ― Matias concluiu o pensamento em voz alta, para clarear a sua dúvida.

Bergoy soltou uma de suas gargalhadas estrondosas, pouco se importando que algumas pessoas ao redor encaravam. Naquele ambiente, não era tão ruim assim chamar atenção. Rebeka enlaçou o braço no do marido, dando um sorriso discreto.

― Eu e Bergoy acabamos estudando juntos por bons anos, graças a um pedido dele depois de me conhecer. Foi uma sorte ambas as famílias terem a mesma aptidão. ― Ela finalmente se manifestou, demonstrando que não era sempre uma sombra do marido. 

― Seria realmente uma lástima ver um Katsaros não se dar bem com a natureza, não? ― Bergoy gracejou, segurando a mão que sua esposa deixou na curva de seu braço. ― Mas e quanto a você, meu amigo­? O que tem para nos contar sobre a Nova Inglaterra²? Suponho que planejava falar sobre suas aventuras pessoalmente, ou teria de gastar muito em papel e tinta.

Matias soltou uma risada sem humor, bebendo um bom gole de seu vinho e deixando sua taça pela metade.

― Tentei empreender na minha área, mas todas tentativas fracassadas. ― Antes de se mudar de país, havia se graduado em Direito, bem como o irmão, que certamente não o fez por gosto. ― O Submundo na Nova Inglaterra é um pouco menos unido do que deveria, visto a situação...

― Compreendo ― Bergoy soltou de uma maneira um tanto sombria, encerrando por ali aquele assunto. ― Bem, eu realmente sinto muito que você tenha que voltar a Constantia nesses termos.

― Talvez o meu erro tenha sido demorar demais para retornar ― ele declarou por fim, devolvendo a taça vazia para um dos lacaios. Realmente não estava com ânimo nenhum para bebidas. Ou para estar ali, por mais que gostasse de conversar com o amigo. Preferia que se encontrassem em outra ocasião, sem tantas pessoas cacarejando ao redor, em torno de seus próprios interesses.

― Rebeka, que bom que te encontrei!

No mesmo instante, os três voltaram as cabeças na direção do centro do salão, de onde vinha Enrica Melquiades, filha do líder do Clã Bruxo e anfitrião daquele evento. A jovem quase reluzia com um conjunto de jóias cravejado de diamantes e um rouge ligeiramente rosado nas bochechas, combinando com suas vestes. As duas mulheres se abraçaram.

― Espero que não se importe de perder sua esposa por alguns minutos, Sr. Katsaros, mas eu prometi a Rebeka que a apresentaria às minhas cunhadas e eu levo minhas promessas muito a sério ― Enrica falou sorrindo, enlaçando seu braço no da outra como se fossem grandes amigas.

― Sou capaz de sobreviver sem Rebeka por alguns minutos, Srta. Melquiades ― Katsaros devolveu também sorrindo, movendo a cabeça na direção da esposa, em um gesto que provavelmente indicava entendimento mútuo entre eles.

Salazarte encarou o amigo fixamente, tentando extrair dele alguma verdade. Não conseguindo, optou por se manifestar em voz alta, enquanto as mulheres se afastavam para outro canto do salão.

― Estive tão feliz em reencontrá-lo que sequer parei para considerar o que você poderia estar fazendo em um evento como esse.

― Está insinuando que eu não tenho lugar entre as grandes famílias do Submundo? ― Bergoy questionou com um riso abafado, passando um braço pelo ombro do outro e guiando-o por entre as pessoas para um ponto que somente ele conhecia. — Não se esqueça que os Katsaros têm ascendido rápido.

Era impossível não sentir os olhares das pessoas por onde os dois passavam, fosse uma breve olhadela de canto ou um virar de cabeça totalmente. Para Matias era como ser julgado em silêncio por algo que ele ainda não compreendia em sua inteireza de fatos.

― Não é isso o que eu queria dizer.

― Eu sei. Mas sabe como gosto de provocá-lo um pouco. ― Katsaros gargalhou alto e parou em um ponto não muito distante do poeta dramático. O riso chamou atenção, fazendo com que alguns percebessem sua presença, enquanto Bergoy bebericava da taça que continuava em sua mão. ― Mas não há nada que me impeça de formar minhas alianças desde já.

― Pretende ingressar na política?

― Em algum momento ― Bergoy respondeu, baixando um pouco a bebida e analisando os bruxos em volta do ator. Matias tentou fazer o mesmo, não encontrando mais do que alguns conhecidos de vista. ― Aos quarenta anos ainda somos um tanto novos para isso, eles diriam, mas nada nos impede de preparar o terreno.

― Nos impede? — Matias arqueou uma sobrancelha na direção dele. — No momento eu não tenho os mesmos planos que você, meu caro.

― Você não planeja seguir os passos de seu avô algum dia? Fazendo a coisa certa dessa vez, claro.

Katsaros deu uma olhadela de soslaio para o amigo, num diálogo mudo de quem o conhecia muito bem. Ao que parecia, havia mais do que leves mudanças físicas entre eles durante aqueles quatro anos e tomaria algum tempo para se colocarem a par da vida um do outro novamente. E aquele definitivamente não era o lugar para isso.

― Salazarte, que bom vê-lo por aqui. ― Um dos bruxos que estava aquele tempo todo à volta do ator se afastou, aproximando-se da dupla. ― Sinto muito pelo que aconteceu com sua família, é realmente uma tragédia.

Ele estendeu a mão e trocaram um aperto amistoso, enquanto Matias tentava reconhecê-lo. Olhos escuros e cabelos ruivos, um Paduletto, então? Eduardo Paduletto, talvez, tentando puxar a figura da memória. Mesmo que não o tivesse visto mais do que uma meia dúzia de vezes em eventos do Submundo.

― É realmente lastimável que uma família inteira tenha que pagar pelo erro de apenas um ― Paduletto continuou, levando as mãos para trás das costas. ― Mas ao menos fico feliz que seu avô tenha conseguido justiça antes de se retirar.

― Creio que nenhum dos lados tenha terminado no melhor dos termos ― Matias retorquiu um tanto taciturno, analisando o sorriso de canto que o outro sustentava no rosto.

Eventos como aquele tinham apenas uma grande finalidade, e certamente não era beber e se divertir. Mover-se por aquele salão era como mover seus próprios fios por trás de um teatro de fantoches. E onde a principal intenção era escolher a melhor figura para prender em sua linha. Matias questionava-se por que alguém ainda o escolheria para essa finalidade, a julgar pelo estado da imagem dos Salazarte.

― Eduardo, meu caro, como tem a audácia de me abandonar na melhor parte do relato?

Os três voltaram os olhares na direção das duas figuras que se afastavam dos bruxos ao redor do ator. O homem caminhava cheio de si, enquanto a jovem somente o seguia como uma sombra.


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Notas finais do capítulo

1: Para adquirir aquele tom esbranquiçado tão conhecido em representações do século XVIII, os cabelos precisavam ser empoados. No processo, primeiro se aplicava uma pomada, feita a base de gordura animal, para fixar o pó no cabelo e não ressecar os fios, e depois o pó, que poderia ter outros tons além de branco, como rosa ou amarelo.
2: Durante o período colonial, o nome comumente usado para se referir aos EUA era as Treze Colônias. A região norte das Treze Colônias ficou conhecida como Nova Inglaterra, do qual faziam parte as colônias de: Massachusetts, Connecticut, Rhode Island, Delaware e New Hampshire. A região foi dominada em boa parte pelos puritanos.