Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 46
Capítulo XLVI




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Tibério murmurava para si mesmo, voltado para a parede da sala de jantar e onde estavam pendurados o grande brasão de armas da família e uma pintura dos Tremonti pais no começo do século anterior. Parecia que ele duelava entre conversar consigo mesmo e discutir com o retrato. 

― Absurdo, absurdo, absurdo, isso é um absurdo! ― exclamou para o javali, as mãos dançando pelas lapelas do casaco de forma nervosa. ― Saul não tem o mínimo de noção do que é manter uma alma corrompida por tantos anos? Essa criatura deve ser a maior concentração de energia sombria que já vi em toda a minha vida!

― Ele não deve conseguir matá-la ― Betina interveio, sentada em sua cadeira habitual na mesa de jantar. O desjejum tardio feito para ela pouco fora tocado, frio àquela altura, depois de ter passado bons minutos contando sobre o acontecido no casebre dos Alves e as revelações de Leonardo naquela manhã. ― A Isabella atual e a de antes da Sombra não são a mesma pessoa, mas para ele... Deve ser como se ainda fosse. 

― Você, Betina, você ― Tibério girou para trás, erguendo um dedo tenso na direção da neta ― não ouse defender esse homem, está me entendendo? O que Saul fez e continua fazendo está além de qualquer tentativa de defesa e não venha tentar advogar para esse patife que você tem como marido. E pensar que Leônidas... 

― Eu estou apenas tentando pensar no que poderia ter feito Saul agir dessa forma ― ela tentou se defender. ― Ele sabe do perigo que isso pode trazer...

― Ah, sabe? Você acha que ele não sabe muito bem o que está fazendo, Betina?! Tenha um pouco de bom senso e guarde suas gentilezas para quem merece. ― Ele balançou uma mão no ar, como se para afastar algo para longe de si, e voltou-se novamente na direção do brasão com a forma do javali. ― Eu sei que você sempre tentará ver o melhor nas pessoas, mas para tudo há limites, e Saul já os quebrou há muito tempo. Os Tremonti os quebraram há muito tempo e Saul somente insiste em permanecer no erro. 

Betina apertou o xale em torno de si, sentindo que seu corpo começava a estremecer. Uma empregada veio para retirar o prato, pois logo chegaria a hora do almoço, e Tibério sequer se importou em baixar a voz no meio das reclamações. 

Leonardo sumira após mostrar-lhe o monólito onde Isabella estava escondida, já prevendo as consequências quando o patrão chegasse. Quanto a ela, estremecia somente com o mero pensamento de como seria quando o relógio batesse meio-dia. E os ponteiros do relógio no canto da sala estavam quase no doze… 

— Os bruxos matarão Saul se descobrirem o que ele fez. As leis de Mepolis… — Betina declarou, quebrando seu silêncio. — Elas são cruéis. 

O avô deixou o brasão e o retrato para trás, voltando o corpo na direção dela. Os olhos que viu pousarem sobre si eram graves. 

— Talvez seja melhor assim, Tina, talvez seja melhor assim… — Ela quase se ergueu para tentar argumentar, porém ele continuou. — Este homem tem um invólucro de energia sombria na própria fazenda, sabe do perigo que isso pode ser para todos… Ele tem mulher e uma filha pequena e mesmo assim prefere insistir no mesmo erro. Não. — Ele balançou a cabeça, considerando algo para si mesmo por alguns segundos. — Ainda darei uma chance a Saul, para matar essa criatura e isso ficar apenas entre nós, ou levarei esse assunto para Gusmão e o resto do clã. 

Betina trouxe uma das mãos que segurava o xale para mais perto do pescoço, sem perceber. Passou os olhos pelo relógio, vendo os ponteiros irem se aproximando do doze rápido demais. 

— O que seu pai fez, Tina, o que ele foi fazer… — Tibério suspirou, caminhando pela sala de jantar. — Os sentimentos sempre afetaram o senso de julgamento do seu pai. — Parou por um instante, olhando para as grandes portas de madeira escancaradas, permitindo ver um pedaço da sala de estar ao longe. — Você precisa sair dessa fazenda o quanto antes. 

— Mas eu não posso… 

— E continuará nas mãos desse homem? Desse homem que tem coragem de aprisionar a casca atormentada do que foi a própria irmã? Do homem que a vê definhar a olhos vistos e não é capaz de mover um único dedo por você? — Ele girou nos calcanhares, outra vez na direção dela. Betina ignorou e passou novamente os olhos pelos ponteiros, que tocaram o doze. Não havia para onde fugir. — Se eu sair dessa casa, como ele prometeu, você virá comigo. Não há laço nenhum na terra ou fora dela que a faça ficar presa a um criminoso. — Ele olhou para a porta mais uma vez, parecendo ter a mesma expectativa que ela, os dedos dançando nervosamente pelas lapelas do casaco. 

Os ponteiros do relógio passaram um pouco dos doze e nenhuma movimentação ocorreu. Tibério continuava a observar a pouca visão da sala de estar e ela se prendia junto dos próprios temores. 

Agora, não eram apenas meras desconfianças sobre o que acontecia na fazenda e que poderiam levá-la até a verdade. O Sr. Salazarte estava prestes a dar um ultimato a Saul e ela tremia com o mero pensamento do que poderia acontecer ali. Apenas desejava que acabasse o mais rápido possível. 

— Não precisa se preocupar, minha querida — o avô disse de repente, parecendo adivinhar o que se passava na mente da neta. Ou simplesmente porque a conhecia muito bem. — Estamos em uma fazenda cercados de mundanos por todos os lados e, mesmo que não façam ideia do que o patrão deles esconde, um crime como esse continuará sendo um crime tanto nas leis deles quanto nas nossas. É cárcere privado, eles diriam. Ninguém sairá ferido daqui. 

Betina queria acreditar naquilo — as palavras eram perfeitamente racionais —, porém, a cada mover do relógio sentia a tensão sufocando-a um pouco mais. 

— Saul! — Tibério chamou, tendo o avistado de sua posição na porta da sala de jantar. Betina quase tinha a impressão de ouvir o próprio coração batendo. — Venha até aqui, por favor, deixe o almoço para depois. Precisamos conversar. 

Passos foram se aproximando e tornando-se cada vez mais audíveis, um após o outro após o outro. Ela se pôs de pé, não conseguindo mais ficar sentada. Quase se atrapalhou com as pernas da cadeira. 

Tibério levantou o rosto na direção do marido da neta, o nariz erguido em desafio, os dedos ainda dançavam pelas lapelas. Os olhos de Saul foram direto para a esposa, que parou onde estava, não sabendo para onde ir. Ou o que fazer. 

— Sente-se. — O Sr. Salazarte indicou-lhe a cadeira à cabeceira da mesa. 

— Preciso me lavar primeiro, antes de almoçarmos, porque, como algumas pessoas acreditam, não seria um gesto de decência… — Tremonti tentou começar a ironizar, contudo, Salazarte puxou a cadeira. 

— Decência é algo que você provou não ter, meu rapaz — ele soltou uma risadinha. — Sente-se. 

— Vô, por favor… — Betina finalmente conseguiu se mexer, passando em frente ao marido e parando ao lado do avô. Colocou uma mão quente sobre o ombro dele. 

— Mantenha a calma, Tina — Ele deu uma batidinha na mão dela, em uma tentativa de tranquilizá-la. E que de nada adiantou —, você sabe que a situação está a nosso favor. 

— O que está acontecendo aqui? — Tremonti inquiriu e Betina apertou mais a mão contra o ombro do avô ao ver os ombros do marido se erguerem. Quase puxava Tibério para longe. 

— O que está acontecendo, meu rapaz, é que você terá apenas duas opções nessa tarde: ou você dá cabo dessa criatura que ainda chama de irmã ou nosso clã fará isso por você — Salazarte sentenciou sem meias palavras, retesando a coluna. 

A surpresa tomou forma na face de Saul, que olhou embasbacado de um para outro. E logo foi sendo substituída pela fúria, seu rosto indo para um vermelho preocupante e uma veia pulsante ainda mais. 

— Eu não irei receber ordens na minha… — Saul começou, a mandíbula tensa e a voz saindo perigosamente sibilante. 

— Eu não estou dando uma ordem, estou dando um ultimato! — Tibério exclamou, erguendo-se rapidamente na ponta dos pés, e mesmo assim mais baixo do que o outro bruxo. — Ser o dono dessa propriedade não isenta ninguém da lei! — Ele se aproximou, erguendo o rosto enrugado para Tremonti, e dessa vez sendo realmente segurado pela neta. — Mate essa criatura ou quem terminará morto será você. 

Saul bufou, parecendo animalesco em toda sua fúria. 

— Pegue suas coisas e saia da minha propriedade — ele ordenou, a voz saindo assustadoramente baixa. 

O Sr. Salazarte riu. 

— Essa é sua escolha, meu jovem? Bem, que seja feito conforme a sua vontade, então. — Ele largou as lapelas, segurando a mão da neta, que estava continuava apertando seu ombro. — Mas Betina irá comigo. 

— Betina é minha esposa! — Tremonti exclamou, sua voz rebatendo pelas paredes.

— Pelas suas escolhas, não será por muito tempo, meu rapaz. Com a criatura que você deixou solta por essa fazenda, acredita mesmo que deixarei minha neta ficar aqui por mais um dia? — ele soltou um risinho. — Betina e Anastácia vêm comigo. 

— O senhor tem dez minutos para juntar seus pertences e sair da minha propriedade, sozinho — Saul foi se aproximando e Betina colocou metade do corpo entre os dois, quase empurrando o avô para trás —, ou eu mesmo o atiro na rua. 

Tibério soltou uma risada de descrença. 

— Atire-me no olho da rua ou onde quiser, meu rapaz, faça o que quiser comigo e assine de uma vez a sua sentença. — O Sr. Salazarte deixou que a tentativa da neta de empurrá-lo para trás fizesse efeito, ele mesmo dando alguns passos, ainda encarando o dono da fazenda. — Betina vem comigo. 

— Vô… — ela começou, sentindo um tremor descer pela coluna e o suor novamente se espalhar por suas mãos. — Vamos, eu o ajudo a fazer as malas. Ficarei com Saul. 

Tibério virou a cabeça na direção dela em um estalo, chegando a tartamudear. 

— Ficar aqui?! 

— Saul está certo, e-eu — ela gaguejou, puxando o avô para longe sem sequer esconder mais — não posso deixá-lo, ele é meu marido e pai de Ana, não podemos partir.

O Sr. Salazarte continuou a encarar a neta como se ela estivesse dizendo o pior absurdo em eras. Ele ignorou Tremonti e puxou-a pela mão para fora da sala de jantar. Mesmo assim, Saul os seguiu. 

— Você vai subir para seu quarto e pegar algumas peças de roupa para levar, eu aviso a babá para preparar Ana — ele foi orientando, conforme a puxava pelo corredor, ignorando um ou outro empregado pelo meio do caminho. 

— A minha esposa continuará nessa casa. — Tremonti passou quase empurrando os empregados de sua frente, pesando a voz especialmente no "minha esposa". Alcançaram a sala de estar. — Irá soltá-la ou serei obrigado a mostrar qual seu lugar aqui? 

Tibério parou e deu meia volta, soltando a mão da neta e partiu com passos pesados para o dono da fazenda. As mãos quase puxavam as lapelas do casaco para o limite. Ainda trêmula dos pés a cabeça, Betina se interpôs entre os dois. 

— Vô, por favor, faça o que ele mandou — ela quase implorou, voltando-se para Salazarte. 

As sobrancelhas brancas do homem quase foram parar na testa, sua decepção destruindo Betina mais do que qualquer medo que pudesse estar fazendo-a tremer. 

— Ouse fazer qualquer mal para ela e eu mesmo serei juiz e carrasco da sua sentença — Tibério decretou. 

O senhor deu as costas para o casal, as pernas longas e magras provando serem ainda bem capazes enquanto ele sumia rapidamente das vistas deles. 

Betina sentiu um aperto em seu braço e soube que tinha feito a pior escolha. A briga terminava ali, por ora, porém, sabia que ainda não era hora do caos se despedir da fazenda. 


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