Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 38
Capítulo XXXVIII




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― Isso significa que vocês dois são a garça com asas do meu sonho? ― Ezequiel questionou, abraçando os joelhos contra o peito enquanto as cobertas se enrolavam ao seu redor. 

― As fadas acreditam que eu e Matias somos os enviados para ajudá-las, porque a Luz disse assim ― Irina rebateu, sentada em um espaço próximo ao pé da cama do irmão. — Talvez seja mais provável que representem as duas famílias.

― Mas se encaixa com o começo do meu sonho. As asas estavam ligadas à garça e vocês dois acabaram se juntando por causa do meu sonho... ― Ele parou, olhando por alguns instantes para um ponto aleatório na parede branca. ― Isso significa que todo esse meu sonho estava direcionando vocês até as fadas. 

― Eu acredito que ainda não possamos tirar uma conclusão completa, Ezequiel ― Matias interveio entre os dois. ― Ainda há vários pontos no seu sonho que não conseguimos fechar em uma conclusão. 

E aquilo era algo que sua mente estava há mais de vinte e quatro horas tentando compreender. 

Depois de retirar Irina de dentro d’água, Nygella afirmara que aquilo era tudo o que a Luz tinha para mostrar e que estavam livres para ir. Mostrando mais gentileza do que seu companheiro, que queria matá-lo sem nem pensar duas vezes ― e sequer se surpreendera ao descobrir sobre a atitude do avô. De todos os segredos de sua família, pensar que seu avô condenaria alguém por simples jogo político era o mais fácil de aceitar ―, a fada os guiara de volta para perto da carruagem, deixando que eles dessem um jeito de continuar com suas roupas molhadas. Sua maior preocupação fora Irina pegar um resfriado, encharcada dos pés à cabeça e com o vestido pesando sobre o corpo. Além de marcar-lhe as formas, porém aquilo era problema seu e de seus olhos. 

Passado um dia inteiro da breve aventura dos dois, fora até a casa dos Gutiérrez, onde, para seu alívio, Irina parecia perfeitamente bem de saúde, mesmo que o medo e a preocupação estivessem estampados em seus olhos. Ezequiel passara mais uma noite com febre e ela temia que ele pudesse ter um acesso mais grave da doença a qualquer momento. 

Ao chegar no quarto dele, onde fora convidado por ela a entrar para que discutissem junto dele sobre as novas descobertas, pudera ver por si mesmo como o caçula dos Gutiérrez parecia ainda mais pálido e um pouco mais magro do que a última vez em que o vira. Além de novas manchas terem aparecido em alguns pontos de seu rosto. 

― De fato ― Irina concordou. ― Ainda temos o javali, por exemplo. 

― Se as asas e a garça vieram dos brasões de nossas famílias, então o javali também deve vir da família de alguém ― Ezequiel adicionou e, em um movimento quase sincronizado, os irmãos olharam para o convidado, que estava ocupando sozinho o divã. 

Salazarte tomou alguns segundos em silêncio para revirar a própria memória. Tendo consciência de que sua família possuía inúmeras conexões com tantas pessoas do Submundo, era óbvio que a pessoa mais provável a ter aquela resposta ali seria ele. 

― Não consigo me recordar de nenhuma família bruxa que tenha o javali em seu brasão... Mas conheço alguém que talvez possa nos responder isso. ― Considerando como Bergoy parecia disposto a estabelecer suas conexões para galgar lugares dentro do Conselho, certamente seria a pessoa mais aconselhada a responder aquela pergunta do que ele. ― Mas ainda nos sobra todo o restante do sonho para desvendar. 

― Eu tenho algumas suposições... ― Irina começou. ― As mulheres que vi... Elas eram idênticas, mas não creio que eram as mesmas. Cada uma encarava o corpo da criança de uma forma. 

― Uma com ódio e outra com dor ― Matias completou o raciocínio dela, recordando-se de quando ela contara-lhe a visão que teve dentro d’água, ainda dentro da carruagem na volta para casa. E onde lutara para manter a mente focada no lugar e recordar-se de todos os seus modos de cavalheiro.  

― E se fossem duas irmãs gêmeas? ― Ezequiel adicionou. ― Elas seriam idênticas, mas não seriam as mesmas pessoas. 

― É um raciocínio que teria sentido ― Salazarte concordou com ele, vendo Irina focada demais no próprio colo. 

― Pode ser que nós estejamos tentando forçar uma conexão que não existe entre as duas coisas ― ela declarou por fim. 

― Mas tem que haver uma conexão, Irina! ― Ezequiel engatinhou um pouco sobre a cama para aproximar-se dela. ― A fada disse que era hora de sabermos algumas coisas e mencionaram bruxos e sonhos, como não poderia ter uma conexão? E se as duas mulheres forem gêmeas, explicaria porque eu vejo dois de mim no sonho. Eu me vejo representado como essas duas mulheres e uma delas matou a criança, não consegue ver a conexão entre as duas coisas? ― Ele olhou para Matias em busca de alguém para incentivar sua teoria. O convidado, porém, continuava a observar a Srta. Gutiérrez em sua negação. 

― E qual poderia ser a razão de sabermos disso?

― Irina, lembra-se do que a vidente nos disse quando fomos até ela? ― Com a pergunta, Salazarte conseguiu fazê-la olhar para ele. ― Duas pessoas tentando se alcançar através de um espelho. Um homem e uma mulher, duas mulheres, um irmão e uma irmã. 

Ela franziu as sobrancelhas brevemente. 

― Algumas famílias se parecem mais do que aparentam ― ela disse para ninguém, recordando-se de uma das frases até então sem sentido da vidente. 

― É quase o que o homem disse na sua visão ― Ezequiel comentou. ― “Nossas famílias se parecem mais do que aparentam”, não era isso? ― Ele teve apenas um silencioso mover de cabeça em confirmação. 

― “O presente repetia o passado”, lembro-me de ela também ter dito isso e dado a entender que você poderia tentar se envolver com magia sombria ― Matias adicionou, dirigindo-se para Irina. ― Ela mencionou uma vida por outra para enfatizar isso. 

Irina suspirou e encarou novamente o próprio colo, parecendo desolada. Bastava somente olhar para Ezequiel ao seu lado para entender o que estava passando pela mente dela naquele momento. Talvez aquela vidente não fosse uma charlatã, como estavam tentados a acreditar. 

O sol de inverno que entrava pela janela começava a tocar somente os umbrais, indicando que anoitecia aos poucos. Ele se pôs de pé.

― Acho melhor eu ir. Meu pai deve chegar para atendê-lo a qualquer momento.

― Ah, fique ― Ezequiel pediu. ― Ao menos nossa mãe ficaria feliz de finalmente conseguir convidar seu pai para jantar, depois de um ano inteiro tentando. Mesmo que depois tivéssemos de passar o mês inteiro ouvindo-a falar sobre isso.

Ele riu, enquanto Irina se pôs de pé em silêncio, o rosto sombreado pelo medo. Depois daquele tempo juntos, estava começando a entender o que significava aquele olhar fixo para lugar nenhum.

― Prometo que ainda volto para conversarmos sobre mitologia grega. E talvez Meredith venha comigo, ela apreciou o tempo que passaram juntos. 

A verdade era que, assim como a irmã, Meredith estava passando boa parte do tempo trancada no quarto, ferida demais por ser obrigada a tomar aulas de poções e principalmente pelo irmão não ter apoiado sua causa. Matias estava se corroendo por não saber o que fazer com o silêncio das duas.

Ezequiel deu um sorriso fraco e os dois bruxos se despediram, enquanto Irina os aguardava ainda calada. Ela e o convidado saíram do quarto.

― Acha melhor que visitemos a vidente outra vez? ― Matias questionou assim que a porta foi fechada.

― Não vejo muita razão para isso. ― Ela se virou para ele. ― Tudo o que temos são informações confusas que não elucidam muita coisa.

― Ezequiel parecia empolgado por finalmente começar a entender o sonho. ― Viu-a dar um breve sorriso, que sumiu em questão de segundos. Colocou a mão em seu ombro, contendo a vontade de tocar-lhe o rosto. Queria vê-la sorrir nem que fosse mais um pouquinho, iluminando aquele rosto tão belo. Partia o coração vê-la daquela forma. ― Não podemos perder a esperança ainda, o mistério não está completo.

― Mas não trará a cura ao meu irmão! ― ela exclamou, erguendo a voz no meio do corredor vazio. ― Pouco me importa o que a Luz quer de nós, o que importa é que Ezequiel está cada vez mais perto da morte e eu não posso fazer nada além de assistir!

Matias cedeu à sua vontade e passou a mão do ombro para a lateral do rosto de Irina, envolvendo-o com ambas as mãos. Seus olhos cinzentos continuavam carregados de medo e ela parecia estar a um fio de desabar. Como ele poderia saber? Também se sentia da mesma forma. O mundo estava caindo sobre a cabeça de ambos em formas de problemas sem solução.

― As palavras da vidente estavam certas e há apenas uma única saída. ― Ela deu um passo para trás, dando de costas contra a parede. Matias não a soltou.

― Nós sabemos que você não fará isso...

Irina respirou fundo, fechando os olhos por um instante. Sentindo a textura de sua pele sobre os dedos, Salazarte foi obrigado a conter a vontade de deslizar os dedos sobre ela.

― Sim, eu sei que não... Conseguiria. E Ezequiel nunca mais conseguiria me olhar da mesma forma. ― Ela respirou fundo. ― Eu me pergunto o quão cruel a Mãe Terra é por deixar que uma criança inocente pague por um erro que não é dela. Ezequiel não merece sofrer, ele não merece ter que lidar com o pensamento de que…

Sem perceber, Matias deixou seus dedos deslizarem pelo rosto dela em uma carícia. Não havia mais nenhuma palavra de encorajamento que pudesse dizer, nenhum consolo e nenhuma esperança.

Irina abriu a boca e nada saiu além de ar, ainda tentando ir mais de encontro à parede. Mesmo que não houvesse como.

Os dois ouviram uma porta abrir logo ao lado e viraram as cabeças no mesmo instante. Isaac colocou o corpo para fora do cômodo e, pegos pelo susto, se afastaram. Gutiérrez estreitou os olhos na direção deles e Irina ergueu os ombros em desafio. Matias passou os olhos de um irmão para outro.

― Eu acompanho nosso visitante até a saída, Irina ― Isaac informou.  ― Pode ficar com Ezequiel até o Dr. Salazarte chegar.

Sob o olhar constante do filho mais velho dos Gutiérrez, os dois trocaram despedidas nada além de cordiais e ela voltou para o quarto do irmão caçula. Isaac fez um gesto com a cabeça, indicando as escadas que estavam a alguns passos de distância.

― Por mais que minha mãe goste de você, Salazarte, eu não consigo ver com bons olhos essa sua aproximação da minha irmã ― Gutiérrez começou, enquanto alcançavam o primeiro dos degraus.

― A minha intenção é somente ajudá-los...

― É? ― ele o interrompeu, rindo. ― Sua intenção com minha irmã parece não ser apenas essa. O Submundo começou a falar sobre vocês e ainda não tivemos a oportunidade de conversarmos desde que aquilo aconteceu.

Os dois alcançaram o final da escada e, antes que Matias descesse do último degrau, o outro bruxo parou em sua frente, não permitindo que continuasse.

― Fiquei sabendo que seu pai esteve aqui, tentando comprar minha mãe com dinheiro e palavras suaves. ― Mesmo que Salazarte estivesse em uma posição que lhe conferia mais altura, Isaac estufou o peito e elevou os ombros, tentando soar como um galo de briga.

― Não respondo pelas ações de meu pai, Gutiérrez, apenas pelas minhas. E assumo o erro que cometi naquela noite, mas juro pela Mãe que nunca fiz nada que desonrasse sua irmã. Eu a tenho em mais alta consideração...

― Você pode dizer que tem minha irmã em alta consideração, mas convenhamos que isso não vale de nada quando você deixa que o Submundo faça todas as suposições possíveis sobre ela enquanto você fica calado. ― Matias conteve a vontade de rir ao recordar-se da informação de Bergoy. A própria Sra. Gutiérrez estava colaborando com a reputação da filha. ― E não ache que vou me fazer de sonso para a cena que vi de vocês dois no corredor. Por acaso aquilo fazia parte da sua intenção de ajudar? Os dois estavam quase se beijando. 

― Eu tenho um grande apreço pela sua irmã ― Matias confessou, sentindo que daquela vez era ele que estava contra a parede. Engoliu em seco, ainda sob o olhar cortante de Isaac. Olhos iguais aos de Irina. Aquele definitivamente era o momento, mesmo que não estivesse saindo nem um pouco como imaginara. ― E gostaria de pedir a mão dela em casamento.

― Muito bem. ― Gutiérrez deu um passo para o lado, finalmente deixando-o terminar de descer a escada. ― Acredito que ainda não tenha falado com ela sobre isso, certo? ― Recebendo uma resposta negativa, voltaram a caminhar rumo à saída. ― Nesse caso, te dou mais dois dias para que faça o pedido a ela. Ou talvez tenhamos que agir feito mundanos para resolver isso.

O filho da dona da casa gesticulou para o mordomo que estava passando, fazendo o empregado se apressar para pegar o casaco do convidado no cabide perto da porta. Isaac tocou-lhe o ombro, fazendo-o parar.

― E não pense que dinheiro, um sobrenome conhecido e ser querido pela minha mãe vão me intimidar. É da minha irmã que estamos falando.

Com uma última olhada, Gutiérrez soltou-lhe e virou as costas, deixando-o livre para ir.

 

 

O cinza do céu ia sendo engolido pelo breu da noite e a carruagem fez uma curva, pegando um atalho para evitar as obras e entrando diretamente na rua da orla da praia. Somente alguns corajosos ousavam enfrentar o vento cortante e outros mais corajosos ainda se aproximavam do mar, e ele continuaria a ser um palerma.

Quem diria que um dia seria posto contra a parede pelo irmão de uma mulher para que propusesse casamento pela honra... Conseguiria imaginar Bernardo em seu lugar ― se o pai não abafasse o escândalo com dinheiro, como fizera na realidade ―, mas ele?

Se arrependia? Se fosse de fato ser sincero, a resposta seria não.

Sua vida estava o mais completo caos e, mesmo sem considerar os atritos com o pai e tomando a atitude dele com a Sra. Gutiérrez como palavras, Irina não seria uma noiva que o Dr. Salazarte aprovaria e teria de lutar por suas escolhas. Aquilo definitivamente significava trazer mais problemas para sua cabeça. 

Se arrependia? Não.

Confirmando as palavras de Bernardo, de que tinha o coração de um romântico incorrigível, tivera sua cota de paixões ao longo da vida. Um rosto bonito, um sorriso gentil e conversas agradáveis muitas vezes foram o suficiente para despertar-lhe o interesse. Na maioria das vezes, situações manipuladas por mocinhas que tentavam fisgar seu coração ― sabia que era considerado um bom partido pelas mães delas ― e, na única vez em que de fato a paixão avançara para algum lugar, quebrara a cara de maneira fenomenal, com direito a uma ressaca de dia seguinte.

Acreditara que era correspondido e, incentivado por Bergoy, declarara-se para a irmã de um de seus colegas de universidade e descobrira que a garota não sentia nada por ele que passasse das linhas da amizade. Agora, a situação se desenhava de forma parecida e com ares dramáticos para completar.

Será que era correspondido dessa vez? Irina, assim como ele, tinha tanta coisa passando pela cabeça que talvez sequer pensasse em romances e casamento. Diferente dele, que tentava encontrar um pouco de paz nos pensamentos apaixonados.

Pessoas passeavam pela orla da praia, as ondas quebravam, a lua crescente ia se acentuando com o domínio da escuridão e Matilda caminhava de braços cruzados no meio da areia.

Matias grudou o rosto contra o vidro da janela, tentando ter certeza de que não estava confundindo outra pessoa com sua irmã. Bateu contra o teto da carruagem e ela imediatamente parou. Abriu a porta de supetão e pulou para fora, confirmando que aquela pessoa era mesmo quem pensava ser.

 ― Matilda! ― ele gritou o nome da irmã, atraindo alguns olhares para si, inclusive o dela própria. 

Matilda soltou um gritinho e ergueu as saias, começando a correr com uma bolsa de pano balançando a tiracolo. Matias disparou atrás dela e não teve muitos problemas para alcançá-la, tanto pela dificuldade de correr com as saias pesadas quanto por suas passadas serem mais longas.

― Me solte ou eu faço um escândalo ― ela articulou arfando, sendo segurada pelos braços do irmão. 

― Você sabe que eu apenas quero conversar, Tilda, tente se acalmar ― ele pediu enquanto algumas pessoas começavam a se aproximar dos dois. 

Matilda soltou respirações ruidosas e, subitamente, desabou em um soluço. Matias apertou a irmã contra o peito, tentando acalmar o choro dela.

Ao ver que os desconhecidos se aproximavam, tentou guiá-la para a carruagem da família, não encontrando resistência. Ao fazê-la subir, ainda soluçante, pediu ao cocheiro para que desse uma longa volta pela cidade antes de irem para casa. Fechada a porta, partiram.

Matias deixou que a irmã chorasse o quanto quisesse encostada contra seu peito, tentando tranquilizá-la com carinhos circulares em suas costas e palavras gentis. Com a fala entrecortada, ela conseguiu articular:

― Ele foi embora sem mim. ― E caiu em outro choro, levando mais alguns minutos para que conseguisse dizer palavras coerentes novamente. Torcia para que o cocheiro estivesse tomando o caminho mais longo possível. ― Ele disse que me encontraria no cais, mas o navio partiu e ele não veio. 

― Baltazar pediu que você o encontrasse no cais? ― Ela assentiu, finalmente se afastando dele e tentando limpar o rosto, mesmo que não adiantasse nada, as marcas de lágrimas perfeitamente visíveis no rouge das bochechas. ― Você planejava fugir com ele?

― Vocês nunca me deixariam ficar com ele! ― a garota trovejou, finalmente recobrando o tom que a acompanhou durante todos os seus dias trancada. ― Ele iria conseguir o dinheiro e voltaríamos casados. E nenhum de vocês poderia nos impedir.

Matias sentiu um gosto amargo surgir junto da saliva na boca.

― Tilda, eu sei o quanto você gosta do Baltazar, mas não é assim que iremos resolver a situação. Como você acha que nosso pai ficaria quando soubesse? ― Antes que ela pudesse dar sequência a um de seus argumentos de ódio recente contra o pai, ele continuou. ― E quanto a mim? Como eu ficaria sem saber o que aconteceu com você?

Ela mordeu o lábio, parecendo ter se dado conta, nem que fosse um pouquinho, da realidade. Matias não gostava de usar aquele tipo de apelo emocional, contudo, não via outra solução. 

― Eu sei que errei por não ter passado mais tempo com você e esses últimos dias me fizeram perceber o quanto senti sua falta. ― Ele não estava de fato mentindo, mesmo que não concordasse nem um pouco com as petições egoístas que sua irmã fizera. A tentativa de ganhar a confiança dela outra vez, quando finalmente tinha a oportunidade, não podia ser perdida. ― Eu sinto muito. 

Matilda o encarou com os olhos escuros ― tão iguais aos da mãe ― sem a sombra das lágrimas. Apesar de contida, percebia a confusão de emoções que lhe causara. 

― Mas foi por sua culpa que nosso pai...

― Você acha que é certo para uma moça da sua idade viver um romance às escondidas? ― ele a interrompeu. 

― Eu nunca fiz nada de errado!

― Ainda assim. Você acha que está fazendo algo certo?

― Você sabe que nosso pai nunca me deixaria nem falar com ele. 

Matilda se afastou para a outra ponta do assento, a bolsa de pano largada entre eles. Matias estava patinando em sua tentativa de ganhar outra vez a confiança da irmã. Infelizmente, teria que continuar jogando para o lado emocional. 

― Você acha que eu faria isso? 

― Você o odeia!

― Isso porque nos conhecemos da forma errada. Você acha que eu não ficaria do seu lado se os dois não tivessem procedido dessa forma? ― A mentira acentuava o gosto amargo na boca, ainda mais ao lembrar as palavras que Baltazar usara para se referir a Matilda. Que canalha.

― Como eu poderia saber? Nós não nos víamos há tanto tempo...

― Eu sei, e sinto muito por isso. ― Com poucos movimentos, conseguiu passar um braço pelos ombros dela, trazendo-a para mais perto. ― Vocês se conhecem há muito tempo?

― Foi em um dos últimos bailes que eu e mamãe fomos... ― A voz foi morrendo aos poucos, contudo, de repente ela voltou o rosto para ele. Os olhos substituindo o brilho das lágrimas pela empolgação. ― Você sabia que ele é amigo de algumas pessoas de nosso clã? Foi assim que nos conhecemos. ― Matias soltou apenas um “hum”, aproveitando para absorver algumas poucas informações sobre o desconhecido Baltazar. ― Nós dançamos e não nos vimos mais até nos encontrarmos algumas semanas após a morte de mamãe... Ele foi muito gentil prestando as condolências, sabia?

― Imagino...

― E um tempo depois começaram as cartas, pois ele dizia que não conseguia parar de pensar em mim. ― Ela riu, enquanto o irmão franziu o cenho. Engoliu a saliva amarga. ― É tão romântico. 

― E ele conseguiu mandar uma carta para que o encontrasse no cais? ― A garota o encarou de canto de olho, parecendo desconfiada. ― Nosso pai sabe do seu esconderijo no jardim. 

― Ele pagou para uma das criadas me entregar um bilhete. ― Em outro momento, preocuparia-se com o tipo de gente que trabalhava em sua casa para aceitar uma oferta como aquela, naquele momento, contudo, precisava aproveitar que ela continuava falante o suficiente. ― Eu sinto muito... ― Matilda começou, hesitando enquanto brincava com a saia do vestido. ― Eu não pensei quando aceitei o plano dele, eu apenas...

― Eu quero que você me prometa uma coisa ― ele a interrompeu, vendo-a assentir ainda sem prestar atenção nele. ― Prometa-me que você não irá fazer isso outra vez.

― Você promete que tentará falar com nosso pai a respeito dele?

Matias engoliu em seco, sentindo a saliva descer tão pesada quanto álcool. 

― Prometo. 

Ela largou o tecido, envolvendo-o num abraço. Matias depositou um beijo sobre os cabelos escuros da irmã, aliviado. 

― O que você e nosso pai estavam discutindo na semana passada?

Matias engoliu novamente a saliva com um pouco de dificuldade, sentindo a sensação de alívio ir embora. Que ao menos o cocheiro tivesse escolhido a rota mais curta...


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