Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 32
Capítulo XXXII




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Matias assistiu Irina descer as escadas da frente de sua casa e, antes que ela fosse em direção ao coche estacionado dentro da propriedade, a porta foi fechada pelo mordomo, lhe dando somente a visão da madeira escura.

― Visitou os inquilinos essa tarde? ― A voz de Leônidas chegou antes dele, que vinha da direção do corredor, a borda do casaco preto esvoaçando com seus passos largos.

Matias girou nos calcanhares para ver o pai, soltando uma respiração profunda. Sua paz acabara de ficar do outro lado da porta. Ali, era obrigado a encarar a realidade da qual tentava fugir. 

― Resta Vermont e seu clã e a família Medeiros. Os demais precisam pagar apenas juros ou o último mês.

― Acredito que seja prudente tomarmos providências desde já ― o médico retorquiu, parando a alguns metros de distância do filho. Mediu-o friamente com os olhos.  ― Sirva o jantar mais cedo dessa vez. ― Sem sequer se virar, dirigiu-se para o mordomo que passava ao lado dos dois e, junto de um aceno de cabeça, o empregado sumiu, antes dando instruções para uma criada começar a acender as velas.  O tempo passara mais rápido do que Matias pensara. ― Conseguiu falar com sua irmã?

Ele negou, vendo o pai soltar uma respiração pela boca e acariciar o queixo liso, em um gesto que o fazia lembrar a si mesmo. Assim como ele, Leônidas estava completamente perdido com a situação. E, quase por um milagre, passando mais tempo em casa naquela semana, tentando inutilmente se comunicar com a filha mais nova. 

Passava manhã e passava noite, Leônidas batia à porta da filha e falava com uma voz tão gentil que Matias sequer lembrava de ter ouvido o pai usar alguma vez. Meredith provocava, dizendo que Matilda somente fizera por merecer, e ele sequer censurava, surpreendendo-o mais uma vez. 

― Hoje ainda é dia dezessete, acho um pouco cedo para começarmos a tomar providências para despejo ― o filho retomou o assunto anterior. Pouco se importava com o clã dos vampiros e sabia que eram inquilinos um tanto problemáticos. Quanto aos Medeiros... Ali estava o ponto sensível naquela questão. Tinham um filho pequeno para criar e se perguntava como iriam conseguir o dinheiro em um mês.

― Acha mesmo que irão conseguir pagar até dia trinta? ― O médico devolveu com desdém. ― Ao menos finalmente iremos nos livrar de Vermont.

― Preocupo-me com os Medeiros. Eles não têm condições…

Matias sequer pôde tentar começar a argumentar, pois o pai o cortou com rispidez:

― Você sabe que não podemos abrir exceções. 

De fato, aquilo era algo lógico, contudo, difícil de engolir.

― E também não podemos despejar uma família com um filho pequeno em pleno inverno! ― ele exclamou e abriu os braços, vendo o pai erguer as sobrancelhas, novamente em uma expressão muito parecida com a sua. ― É cruel!

― Eu sei. E você deveria aprender a não agir por sentimentalismo. ―  Leônidas balançou a cabeça, enquanto as velas às costas dos dois projetavam as sombras longilíneas para o chão que quase refletia de tão limpo. ― Vicente possui uma grande família e deve conseguir algum parente para abrigá-los até o fim do mês.

― Abrir uma exceção dessa vez não seria sentimentalismo, mas humanidade ― Matias cuspiu as palavras, vendo o pai novamente erguer as sobrancelhas à acusação. ― Nem tudo se resume a dinheiro.

Leônidas estreitou os olhos na direção do filho.

― Por acaso está querendo insinuar algo, Matias? 

― Suponho que o senhor saiba do que estou falando, se acredita que pretendo insinuar algo quando estamos apenas conversando sobre nossos inquilinos. ― Ele devolveu um olhar carregado de sua fúria fria para o pai, que, novamente, estreitou os olhos, inabalável. 

― Impressiona-me saber que é tão influenciável a ponto de se contagiar pela petulância de uma mulher...

As provocações veladas foram interrompidas pela porta da frente sendo aberta de supetão, onde uma Meredith de bochechas e ponta do nariz vermelho apareceu.

― Matilda recebeu mais uma carta! 

Leônidas avançou, ignorando a aura tensa ainda presente, e pegou o papel já aberto que a filha trazia em mãos. Matias se aproximou do ombro do pai para poder ler.

 

Ma Belle,

Sinto o peito angustiado ao saber que terei de ficar mais uma semana sem vê-la, mas lembre-se que grandes amantes sempre têm percalços em sua história de amor. 

Infelizmente não fui capaz de resolver aqueles assuntos relacionados às minhas terras e a única solução que resta no horizonte é partir do país. Meu coração não deseja afastar-se de ti por meses que sejam, portanto, adiarei minha partida até poder vê-la uma última vez.

B.M

 

― Onde encontrou isso? ― o pai inquiriu ao terminar de passar os olhos pela carta.

Matias ainda repassava as linhas escritas, tentando absorver o romantismo barato envolvido em mentiras que aquele homem usava para seduzir sua irmã. Arrependia-se por não ter se juntado a Rui para socá-lo quando teve a oportunidade.

― Debaixo de um vaso no jardim ― Meredith explicou enquanto desabotoava o casaco para entregá-lo a um empregado, que já aguardava ao seu lado. ― Foi assim que eu descobri que ela trocava cartas com esse B.M. E o senhor teria descoberto há muito mais tempo se ouvisse as coisas que falo!

― Meredith, agora não. ― Leônidas amassou o papel e colocou-o no bolso do casaco, as linhas de expressão se tornando visíveis em sua testa. ― Preparem-se para o jantar, será servido mais cedo. E quanto a você ― Voltou o rosto na direção da garota ―, esteja aqui amanhã à tarde ou a próxima que ficará trancada em casa será você. Estou farto de ter que me desculpar pela sua ausência com o Sr. Floros.

― Eu não vou estudar poções! ― a jovem gritou no corredor, enquanto o empregado se afastava com seu casaco e o pai seguia na direção oposta, rumo à escada que levava ao segundo andar. ― Não é justo ele fazer isso comigo! ― ela choramingou na direção do irmão, o pai aos poucos sumindo silenciosamente para o andar dos quartos.

Matias passou um braço sobre os ombros da irmã e guiou-a também em direção às escadas, na intenção de se arrumarem para o jantar. 

― São apenas algumas aulas ― ele consolou, mesmo sabendo que tentar equilibrar a balança naquela briga seria impossível ―, e o Sr. Floros é um bruxo muito gentil, tenho certeza de que é um ótimo mestre.

― Mas isso não é justo! ― ela continuou, enquanto eles subiam os degraus juntos. ― Ele sabe que eu já estou estudando magia elemental, mas tudo sempre tem que ser como ele quer!

― Apenas algumas aulas ― Matias continuou em seu argumento, levando-a em direção à porta do quarto ―, para evitar castigos. E você poderá conversar com o Sr. Floros sobre seus estudos em magia elemental, por que não tentar?

Meredith não respondeu e se afastou, abrindo a porta do próprio quarto e batendo-a sem sequer se despedir do irmão. O bruxo encarou o ponto onde antes a irmã estivera, sabendo que pouco poderiam fazer para evitar aquela situação. 

Ao menos se a mãe ainda estivesse ali...

Girou nos calcanhares para o outro lado do corredor, onde estava a porta de seu quarto e o de Matilda logo ao lado. 

Fazia quatro dias desde que o pai descobrira as cartas da filha e, após a leitura de cada uma delas e de uma conversa a portas fechadas, Matilda se trancara no quarto, sem contato com qualquer um. Em todas as noites, Matias batia e tentava convencer a irmã a deixá-lo vê-la por um pouco que fosse. Nenhum tipo de tentativa surtiu efeito.

Repetindo o gesto das últimas noites, bateu levemente o punho contra a madeira e chamou o nome da irmã. Nada além do silêncio.

― Tilda? ― chamou outra vez, pensando no que usaria como argumento daquela vez. Nem a voz mais suave, leitura, proposta de um tempo juntos ou o que fosse fê-la sequer abrir a porta. Havia apenas mais uma tentativa em que conseguia pensar. ― Baltazar mandou mais uma carta. ― Encostou o ouvido contra a porta, continuando a ouvir apenas o silêncio. ― Ele diz que infelizmente não teve sucesso em resolver as questões relacionadas às terras. ― Aguardou mais um pouco e teve certeza que ouviu um ruído metálico do outro lado. ― E precisará partir em algum momento para fora do país.

O ruído era a porta sendo destrancada do outro lado e Matias viu-se obrigado a desgrudar-se dela assim que uma fresta foi aberta. Diferente de seus melhores dias, Matilda o espantou com os olhos inchados e o rosto limpo de qualquer rastro de maquiagem. Os cabelos estavam soltos e bagunçados e sequer trocara sua roupa de dormir.

― Onde está? ― ela sussurrou com a voz rouca, talvez pela falta de uso.

― Nosso pai a pegou. ― Ela mordeu o lábio e, percebendo qual seria o próximo gesto da irmã, jogou o peso do corpo contra a porta. ― Precisamos conversar. Cinco minutos, Tilda, por favor.

― Vá embora! ― ela conseguiu gritar ainda rouca, tentando usar a força para fechar a porta novamente.

― Apenas cinco minutos. Eu preciso conversar com você sobre Baltazar.

― Isso é tudo culpa sua! Nosso pai não teria acreditado em Meredith se não fosse você! ― Matilda perdeu a batalha contra o irmão e simplesmente soltou a madeira, dando um passo para trás. ― Vá embora ou eu vou gritar.

― Eu e Rui nos encontramos com Baltazar. Ele disse coisas terríveis contra você. 

― Mentiroso! Saía daqui! ― Ela apontou o dedo trêmulo para a porta por onde o irmão acabara de entrar e que fechou atrás de si.

― Baltazar é mais alto do que nosso primo e tem cabelos pretos e compridos, além de ser bem forte e ter porte para ser algo como um marinheiro. ― Viu-a abaixar a mão, parecendo hesitante.

― Onde você o viu? ― Por segundos, ela voltou a soar como uma menina. E uma menina que aquele desgraçado estava tentando corromper.

Matias sequer teve problemas em pensar rápido em uma resposta, usando a mentira que estava contando para quase todo mundo:

― Eu e Rui o encontramos em uma taberna do Submundo nesta segunda. Rui se irritou com algumas coisas que ele estava dizendo de você e os dois brigaram.

― Foi assim que você se machucou? ― ela questionou, apontando para o hematoma que finalmente estava começando a desaparecer. Matias assentiu. ― Mas ele não faria isso sem motivo. Vocês o provocaram!

Ele suspirou e encostou-se contra a porta. Teve de pensar rápido novamente, ou seria expulso de uma vez. 

― A questão não é quem provocou quem, Tilda, mas... ― Matias começou gentilmente, patinando pelas palavras na conversa que tanto esperara para ter com a irmã naquela semana. Matilda o encarava de braços cruzados, ainda parecendo alerta para qualquer mínima coisa. Ou pronta para gritar por qualquer mínima coisa. ― A questão é que você é muito nova para certas coisas.

― Moças mundanas da minha idade estão cheias de rapazes as cortejando, por que eu não poderia? ― ela jogou o questionamento e sentou na beira da cama. ― O problema de vocês é que Baltazar é mundano. Não importa se ele é rico ou não, o problema é ele não ser um de nós.

Ainda encostado contra a porta, Matias analisou a irmã. Mesmo que Matilda estivesse sendo enganada, Baltazar não seria capaz de esconder por tanto tempo ser um ser do Submundo, ao menos aquilo deveria ser verdade. A questão que se formava era: se ele era um mundano, o que estava fazendo em um local escondido magicamente até de seres do Submundo? Porque sabia que a dificuldade para ver a reentrância na pedra não era normal.

― Tilda, você acredita que eu seria contra um relacionamento com um mundano? ― Matias se aproximou da cama da irmã, onde sentou-se ao lado dela. Aguardou em silêncio por uma resposta que não veio, enquanto ela encarava fixamente a porta fechada. ― A questão não é a qual clã Baltazar pertence ou se faz parte do Submundo ou não, mas você.

― Mas as moças... ― ela começou elevando a voz, soando ofendida.

Matias a parou, colocando uma mão sobre a dela.

― Acredito que você tenha ouvido histórias sobre casamentos mundanos infelizes, não?

― Nós não temos casamentos infelizes como os mundanos porque não temos pressa para escolher. Nós não morremos jovens como eles ― ela repetiu em uma única respiração a frase que tantas jovens bruxas sabiam de cor. ― Se isso fosse verdade, por que nossos pais teriam um casamento infeliz? Por que Tina teve que se casar com um homem que ela sequer conhecia?

― Nossos pais não tiveram um casamento infeliz ― Matias tentou defender o ponto, mesmo que não tivesse argumentos nenhum para isso.

― Então por que nossa mãe chorava tanto nos últimos meses? Por que eles não se falavam mais? ― Ela se pôs de pé, ignorando a tentativa de consolo do irmão. ― Nosso pai nunca foi romântico com ela como Baltazar é comigo.

― Nós não sabemos como nossos pais eram quando estavam sozinhos. E cada um tem uma forma diferente de demonstrar amor.

― E Baltazar sabe demonstrar amor do jeito que eu gosto! ― Ela elevou a voz, parando muito próxima da porta. ― Diferente de você, que acha que apenas a Meredith existe, Baltazar sempre ouve tudo o que eu tenho a dizer e sempre faz o que pode para passar o tempo livre comigo. Ele me ama e diz que me ama.

Matias colocou-se de pé e caminhou na direção da irmã, colocando as mãos sobre seus ombros.

― Eu também te amo, Tilda, mesmo que não seja do jeito que você goste de ser amada. Assim como nosso pai.

Matilda riu.

― Se ele me amasse, não teria me trancado em casa para eu não poder ver o homem que eu amo. ― Ainda de costas, ela tateou pela madeira até encontrar a maçaneta, abrindo a porta. ― Vá embora.

O bruxo tirou as mãos dos ombros da irmã, vendo que, daquela vez, qualquer argumento seria inútil. Apenas o tempo e as evidências poderiam quebrar o encanto de Baltazar sobre a filha mais nova dos Salazarte.

Desistindo de usar qualquer palavra, Matias depositou um beijo na testa de Matilda e saiu do quarto.

 

 

Matias observava o subir e descer das chamas das velas em um dos candelabros da sala de estar. O fogo tingia levemente de tons alaranjados o cômodo de cortinas abertas. Do lado de fora, ainda era uma escura noite de lua nova. Podia ouvir passos vez ou outra, indicando que algum criado passava pelo corredor, mas nada de vozes humanas. Esperava sozinho para jantar com o pai.

Sentia um incômodo em um ponto acima das sobrancelhas e talvez se retirasse mais cedo, depois de cumprido a formalidade do jantar. Somente se questionava como seria jantar totalmente a sós com alguém que aparentava ser quase um desconhecido. 

Um desconhecido que sabia muito bem como atingi-lo com palavras e cobranças cortantes. 

Ouviu passos novamente e sequer olhou para a porta, acreditando ser mais um empregado. A figura do pai avançou alguns passos para dentro do cômodo, a sombra sendo projetada para o chão.

― Onde está Meredith?

― Pediu para que lhe servissem a refeição no quarto ― o filho respondeu, pondo-se de pé e passando a acompanhar o pai rumo à sala de jantar. ― Talvez o senhor devesse reconsiderar uma forma de conciliar os dois estudos dela, assim ela ainda estudaria poções.

― Não posso ceder a todas as vontades de sua irmã ― Leônidas respondeu seco e ambos entraram no outro cômodo, a mesa posta apenas para dois. ― Meredith já provou que não tem idade o suficiente para estudar magia elemental. Quem sabe no futuro, quando ela tiver um pouco mais de cuidado com as próprias ações.

― O que quer dizer com isso?

Os lacaios puxaram as cadeiras e ambos se sentaram, o pai na cabeceira e o filho à sua direita. Os pratos foram destampados e um leve vapor subiu, indicando que ainda estava quente.

― Sua irmã se enfiou onde não devia e se envolveu com quem não devia no ano passado, em busca de livros de magia elemental. ― Matias ignorou a comida, olhando para o pai que começava a pegar os talheres ao lado do prato, seguindo a rotina de etiqueta de sempre. ― Mas creio que isso seja algo que ela prefira ocultar de você, para mantê-lo do lado dela.

O filho continuou a ignorar a comida, assistindo o pai colocar o guardanapo sobre o colo e começar a comer.

― É impossível conseguir lidar com as duas se me mantém no escuro. Nem uma esposa poderia melhorar a situação se não sabemos de todos os detalhes. ― Leônidas tirou os olhos do prato e pousou-o ao seu lado, ainda mastigando. ― Eu mereço saber o que está acontecendo com essa família.

Silêncio enquanto o pai engolia. Talheres tiniram contra a porcelana, ao serem posto de volta para dentro do prato. 

― Eu lhe conto o que você precisa saber ― Leônidas retrucou lacônico, usando o guardanapo.

Lacaios e mordomo sequer pareciam respirar, imóveis contra a parede. O ar da sala de jantar estava pesado e Matias soltou uma respiração quente ao lançar de uma vez sua réplica:

― O senhor me conta o que acha que eu preciso saber! Ou eu não precisava saber que Matilda estava frequentando bailes mundanos? Ou que Bernardo decidiu sair de casa e se tornou um inconsequente? 

― Você não pode querer que eu fosse capaz de lhe contar tudo o que acontecia em menos de meia dúzia de cartas que trocávamos ao longo do ano ― o médico argumentou após tomar um gole de água, como se fosse hábito discutir à mesa do jantar. ― Eu lhe contava o que você precisava saber.

― E eu não precisava saber que minha mãe e minha tia brigaram uma com a outra? Eu não precisava saber que ela se envolveu com magia sombria? ― Ele atirou como tréplica, vendo o pai bater com força a taça de volta para onde estivera. ― Eu não precisava saber que o senhor tentou subornar Rui para que ficasse calado sobre o sótão carregado de magia sombria de tia Inês? Eu não precisava saber que a relação entre a minha família estava ruindo?

No mesmo instante, Leônidas empalideceu como a cera das velas nos castiçais. Matias pouco se importou, não conseguindo mais conter a própria raiva de tudo que se acumulara naquele dia. Ou naquelas semanas.

― Seria escandaloso e problemático vir a público a notícia de que sua tia estava envolvida com magia sombria. Rui irá trazer problemas para a própria família e a nós se continuar insistindo nisso.

― Ele está em uma casa com um cômodo que fede a magia sombria!

― E de que adiantará revirar o passado? ― o mestre de poções elevou a voz, enquanto os empregados continuavam a assistir como sombras na parede e a chama das velas tremulavam. Ele fez um sinal com a cabeça para eles, em uma ordem para que saíssem. ― Rui precisava de um pouco de bom senso e de alguém que pudesse orientá-lo como resolver o problema.

Matias riu sem humor.

― O senhor não quer revirar o passado porque estava envolvido no que minha tia fez.

― Pare de inventar suposições tolas!

― Pare de mentir! Eu vi a carta que ela escreveu para minha mãe.

― Onde está? 

O médico atirou o guardanapo sobre a mesa, esquecendo-se completamente da etiqueta presente até instantes antes. 

― Ela tentava aliviar a sua culpa em algo que os dois fizeram! O senhor quer me manter no escuro para esconder a sua culpa!

― Onde está essa carta?! ― Leônidas gritou, pondo-se de pé, a palidez dando lugar ao rubor. O filho sabia que deveria estar igual.  ― Responda, onde está?!

― Nas coisas dela! ― Matias respondeu no ímpeto, sem nem pensar direito, e viu o pai começar a deixar a sala de jantar. Num pulo, tentou segui-lo. ― Eu tenho o direito de saber a verdade!

― Isso não é assunto seu para se meter! ― o médico berrou para trás, subindo as escadas e continuando a ser seguido.

Os passos que eram constantes minutos atrás deram lugar a um silêncio sublime, quebrado pelas vozes alteradas. 

― É a minha família! Eu tenho o direito de saber! ― Matias gritou de volta, perdendo o pouco controle que ainda sobrava ao alcançarem o segundo andar. ― É sobre a morte da minha tia que está tentando me esconder!

― É à sua família que você irá arruinar! ― o médico berrou, caminhando pelo corredor onde Meredith abriu a porta e colocou a cabeça para fora.

Por fim, ele bateu a porta do quarto que costumava dividir com a esposa, ao lado da porta de seu próprio dormitório, conjugado ao outro. Matias ouviu o barulho da chave sendo passada e virou-se para ver que as duas irmãs o assistiam espantadas às portas de seus respectivos quartos.

Irritado demais, bateu a porta do próprio quarto e se trancou.

 

 

Nem mesmo o sono lhe traria paz naquela noite. 

Matias se revirava na cama ao ouvir um relógio bater três da manhã. Encarou a parede, onde a fraca luz prateada entrava pela janela. Sentira o sono tentar tragar-lhe diversas vezes naquela madrugada e quis mergulhar de uma vez, no entanto, a realidade não o deixava descansar.

Perdera a paciência que conservava tão bem, ao mesmo tempo em que se munira de coragem para confrontar o pai. Ou talvez não fosse coragem, mas ele que estava chegando ao limite. 

Realmente, nem o sono seria capaz de lhe trazer paz.

Teve a impressão de ter ouvido algo vindo do corredor, porém, continuou encarando fixamente a parede. Fechou os olhos e ignorou o ruído que foi diminuindo. Sentia seu corpo ainda carregado de tensão.

Abriu os olhos e olhou para o pouco da escuridão da noite que as cortinas permitiam ver. Tentou seguir outra vez a luz com o olhar, no entanto, parou-o na sombra ao pé da cama. Fechou os olhos e sorriu, por um instante sabendo que teria seu único momento de paz, como os dias que se passaram naquela e nas últimas semanas.

Ou as madrugadas daquela e das últimas semanas. 

Sentia a tensão ir escapando e dar lugar à vontade de se levantar para alcançar o mais rápido possível a figura que se aproximava. Precisava dela.

Tentou abrir os olhos e admirou a face à sua frente. 

Um sonho.

Estava sonhando e sequer percebeu quando adormecera. Deixou que ela se aproximasse e, por conta própria, o arrebatasse em um beijo tímido. Segurou seus ombros, não querendo que ela desvanecesse.

Quando amanhecesse, não teria importância o quanto a segurou ou não, pois tudo não passaria de um sonho. O único sonho que lhe trazia paz no meio dos pesadelos.


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