Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 30
Capítulo XXX




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Irina apertou os livros contra o peito, torcendo para que o de folhas soltas não se desfizesse de uma vez. Ainda podia ver as costas do casaco vermelho e a cabeça com a peruca branca do mordomo dos Salazarte se afastando pelo corredor. Olhou para o teto alto.

Podia simplesmente ter mandado um dos empregados dos Gutiérrez devolver os livros emprestados para os Salazarte ou, se fosse para ir até ali, deixar com o mordomo e ir embora. Mas não podia fazer isso, mesmo que estivesse fugindo do decoro. Primeiro, porque devia um agradecimento formal ao Sr. Salazarte ou Meredith ― quem estivesse em casa ― e, segundo, não iria parar de falar com eles pelo pai dos dois ter pago ― evitava a palavra subornar, já que sua mãe aceitara de tão bom grado ― para que os filhos das duas famílias rompessem qualquer laço. 

Em parte, sabia que estava fazendo aquilo pelo prazer de contrariar os dois e, em boa parte, porque não queria perder a amizade. 

Ezequiel evitava ver Meredith desde o seu rompante após a visita da garota e não o forçaria a encontrá-la se não quisesse. Talvez ele ainda precisasse de tempo para processar certas coisas... Seu coração doía ao pensar que Ezequiel estava tentando se acostumar com o pensamento de que iria morrer em breve. Não, ele era jovem demais para pensar naquilo e, se houvesse alguém para se preocupar com isso, que fosse ela, então. 

E também havia o Sr. Salazarte. Arriscava-se a dizer que eles tinham uma amizade, principalmente ao considerar os momentos que passaram juntos na estalagem, quando não podiam voltar para casa. 

E a cada vez que pensava nele, o mesmo sonho vinha-lhe à mente e sentia a súbita vontade para que lhe tocasse mais uma vez. 

Céus, apenas tocaram as mãos por alguns minutos naquele dia e agora era como se estivesse... 

Fora um sonho e somente isso. Um sonho. Não importava que se repetisse de diferentes formas naquele intervalo de uma semana, era um sonho e nada mais.

― O Sr. Salazarte a aguarda na biblioteca ― o mordomo anunciou ao retornar, fazendo Irina respirar fundo para recobrar o controle sobre si.

Os dois atravessaram o grande hall da mansão dos Salazarte e um corredor de portas fechadas, até entrarem na última, que estava aberta. O cômodo era de um papel de parede anil com detalhes marrom, combinando com boa parte da decoração da casa que vira até ali. Os detalhes marrons também combinavam com a madeira das altas estantes, que tomavam uma parede inteira. Na outra, estava uma escrivaninha com alguns livros sobre ela e o Sr. Salazarte ocupando sua cadeira, que foi afastada assim que a visitante chegou.

― Srta. Gutiérrez, que surpresa vê-la ― o bruxo soltou enquanto se levantava. 

― Vim lhe devolver os livros de seu avô. ― Ela lhe estendeu os quatro exemplares, recordando-se que eles não estavam fundidos com as pontas de suas unhas. Esperava que não tivesse marcado a capa. ― Decidi entregá-los pessoalmente para ver como o senhor e sua irmã... 

Irina interrompeu sua frase de súbito ao erguer os olhos para o bruxo à sua frente. Havia um belo de um hematoma começando a desaparecer ― em uma cor meio marrom meio esverdeada ― logo abaixo do olho direito. Percebendo em que os olhos dela estavam travados, ele se dirigiu ao mordomo:

― Poderia trazer algo para nós dois? ― Em seguida, voltou o rosto para ela outra vez. ― Se a senhorita preferir ir para a sala de visitas...

― Eu vim apenas para uma visita breve ― ela adicionou de forma sucinta.

Após uma reverência, o empregado se retirou e o filho do dono da casa fez um gesto em direção aos sofás ao redor de uma mesa ao centro, onde também havia alguns livros sobre o tampo.

― Eu... Tive alguns problemas relacionados à família. ― Enquanto caminhava na direção apontada, Irina virou o rosto na direção dele, surpresa pela resposta à sua pergunta implícita. A continuação veio em um quase murmúrio. ― Meu primo acabou se metendo em uma confusão.

― Compreendo ― ela murmurou e cada um ocupou uma das pontas de um dos sofás. ― Confesso que estava um pouco preocupada pela falta de notícias suas. ― Com a sua fala, viu-o erguer as sobrancelhas. De forma inconsciente, começou a torcer as mãos sobre o colo. ― No domingo, seu pai veio à minha casa para pagar à minha mãe para que o senhor e Meredith se afastassem de nós.

O Sr. Salazarte soltou uma respiração pela boca e começou a batucar os dedos sobre o braço do sofá. Irina se questionou se fora mesmo uma boa escolha relevar aquilo sobre o pai do bruxo ao seu lado, contudo, se estivesse em seu lugar, era algo que não gostaria que escondessem dela.

― Sua mãe aceitou?

― Sim. ― Viu-o erguer as sobrancelhas outra vez e logo emendou, sabendo a pergunta que viria. ― Não irei aceitar desfazer minha amizade com o senhor e sua irmã por uma quantia de dinheiro. Ainda mais quanto devo tanto aos dois. Não. ― Terminou apertando os dedos sobre o colo e o bruxo ao seu lado se endireitou, apoiando o braço sobre o encosto do móvel para estar de frente para ela. ― Se o senhor e sua irmã estiverem dispostos, gostaria de continuar a amizade, independente de quanto seu pai tente pagar.

― Sinto muito pela atitude de meu pai.

O mordomo apareceu, trazendo uma jarra com suco de laranja, copos e biscoitos. 

― Por favor, Sr. Salazarte...

Ele desviou os olhos por um instante para dizer ao empregado que não precisariam de mais nada e, no mesmo instante, voltou-se para ela. O acordo entre eles era parar de se desculparem por tudo. 

― Certo. Desculpe-me ― Salazarte pediu com um sorriso fraco, serviu um copo com suco e aproximou-se dela, enquanto Irina segurou uma risada pelo que parecia ser a força do hábito para ele. ― Fico feliz que a senhorita me considere como seu amigo. Gostaria?

Ela negou os biscoitos que lhe eram oferecidos e aceitou apenas a bebida. 

― Bem, eu considero o senhor como amigo, depois do que passamos juntos. Bem como sua irmã ― acrescentou antes de tomar um gole. Foi-lhe estendido um guardanapo. ― Obrigada.

― Espero que a senhorita não tenha tido problemas depois daquela noite... ― Com a visita à vontade, o Sr. Salazarte permitiu-se servir um copo para si e pegar um biscoito.

― Seu pai também pagou à minha mãe para que não dissesse nada sobre o que aconteceu. Creio que o silêncio no Submundo deva-se em boa parte a isso. ― Ele balançou a cabeça, parecendo desgostoso. ― Não sei se o senhor se recorda de algo que lhe disse uma vez, mas, por mais que minha mãe pense de forma diferente, eu não sou responsável pelo que Isaac deixa ou não de fazer. Da mesma forma, não vejo como o senhor seja responsável pela atitude de seu pai.

― Nesse caso, eu de certa forma sou. ― Ele mordeu o biscoito, poupando-se de continuar por alguns instantes.

― Ao menos de minha parte, garanto ao senhor que não o vejo como responsável pela atitude de seu pai. Se há alguém culpada pelo que aconteceu, esse alguém seria eu. ― Irina viu-se obrigada a continuar o mais rápido possível, já que o bruxo parecia tentar engolir o mais rápido possível para rebatê-la. ― O senhor já tem responsabilidades o suficiente para se preocupar... Faz-me sentir um tanto egoísta, mesmo que o senhor diga que o faz por sua própria escolha.

― Em minha opinião, a senhorita está longe de ser alguém egoísta.

― Creio que todos nós tenhamos algum momento em que somos um tanto egoístas, não? 

Ele murmurou algo de boca fechada enquanto mastigava e os dois caíram para o silêncio novamente, dessa vez fitando um ao outro. Irina sabia que dissera ser somente uma breve visita e, tirando o fato de que ainda precisava agradecer por tantas coisas, havia cumprido o que intencionava fazer ali, porém, ainda sentia vontade de permanecer mais um pouco. Podiam ao menos terminar de comer.

― A senhorita conseguiu algo dos livros? ― o Sr. Salazarte questionou, esticando o braço para pegar os exemplares que a convidada trouxera, deixados ao lado dos outros que já estavam sobre a mesa.

― Ezequiel apreciou muito a leitura sobre os oneiros segundo Hesíodo. ― Irina sorriu ao recordar-se da alegria com que o irmão contara a ela sobre suas novas descobertas. Naqueles momentos, adquiria um ar febril no olhar, tão diferente daquela noite sob as estrelas... Olhou para o bruxo ao seu lado, percebendo que ele a encarava como se perguntasse o que estava acontecendo. Respirou fundo e continuou. ― Mas creio que não conseguiremos nada muito além disso. Eu... Agradeço ao senhor e sua irmã pela ajuda.

― Ainda podemos continuar tentando... ― Ele balançou a cabeça, parecendo incomodado com o livro que devolvera para a pilha. Corpora Maledicta. ― O conteúdo desse livro é um tanto... Perturbador.

― O autor não se deteve em ilustrar o que acontece com vítimas de certas maldições. Creio ser necessário para conseguir transmitir o que ele queria. 

― Bem... ― O Sr. Salazarte, de súbito, pegou-lhe uma das mãos sobre o colo. Os dois se encararam e, parecendo constranger-se pelo gesto, ele tentou retirar sua mão de sobre a dela. Ela, no entanto, virou sua palma para tentar segurar a dele. Fixou seus olhos cinzentos nos azuis para de forma muda pedir que continuasse. Esperava que compreendesse. ― Ainda podemos descobrir alguma forma de impedir que a maldição...

― O mate? ― ela sussurrou, percebendo que saíra mais ar do que voz. Apertou a mão que estava na sua, sem sequer perceber. ― Eu daria qualquer coisa para salvar Ezequiel dessa doença maldita, maldição ou o que quer que seja, Sr. Salazarte, qualquer coisa… Mas estamos sem saída.

― Deixe-me ajudar, Srta. Gutiérrez, porque, talvez... ― Ele parou e por um instante, olhou para baixo, as mãos unidas e sua outra que ainda segurava o copo.

― Talvez?

― Se isso for de fato uma maldição e envolver magia sombria, talvez... Possamos descobrir juntos onde encontrar respostas.

― Sr. Salazarte, por favor, o senhor já está fazendo tanto, que não quero fazê-lo... ― Ela parou, ao vê-lo encarar o chão de maneira perdida. ― O senhor disse que está tendo alguns problemas com a família, talvez seja melhor que o senhor poupe suas energias e deixe que eu continue...

― Isso não é o tipo de coisa que a senhorita deveria procurar sozinha.

No exato instante, ele esqueceu o chão e voltou-se para ela. Fosse por sentir a pressão em seus dedos começando a incomodar ou não, Irina sabia que havia algo de errado ali. 

― Agradeço pela preocupação, mas essa é a única opção. 

Frente a ele, tentou parecer um pouco mais confiante do que de fato estava, contudo, no fundo, continuava a se sentir exatamente como os últimos dias. Havia uma única opção e não fazia a mínima ideia de como alcançá-la. Mesmo com a ajuda de Estevão, dos Salazarte ou de quem quer que fosse, não era como se pudessem abertamente procurar qualquer assunto relacionado à magia sombria.

Não querendo perder a máscara de confiança que tentava manter, Irina se levantou, vendo-se obrigada a deixar o calor dos dedos do Sr. Salazarte. Ele pareceu surpreso ao vê-la se levantar de repente. 

― Acredito que seja hora de ir. ― Deixou o copo sobre a bandeja, onde ainda estava o outro, completamente vazio. 

O bruxo ainda sentado fechou a mão e os olhos por alguns instantes, respirando fundo. 

― Eu mantenho minha proposta de pé. ― Ela chegou a abrir a boca, preparada com os argumentos para recusá-la. Aceitar aquilo seria passar um pouco dos limites com a boa vontade dele. ― Eu também preciso de respostas, Srta. Gutiérrez ― a confissão saiu junto de uma bela quantidade de ar, que fez os ombros dele se encolherem um pouco. Irina voltou o rosto para trás e, mesmo que as olheiras estivessem um tanto mais discretas, e brigando pela atenção junto do hematoma, era como se ele estivesse ainda mais exaurido. 

Alisando o tecido da saia, voltou a se sentar.

― Eu poderia ajudá-lo?  

O Sr. Salazarte pareceu pensativo por alguns instantes, um tanto longe dali. 

— Não acho…

— Sei que o senhor acredita que não é o tipo de assunto para alguém como eu, mas se isto envolve a doença de meu irmão, eu não me importo. É a única possibilidade que nos resta. 

— Apenas adianto que para isso teremos que ir a lugares um tanto perigosos — ele a interrompeu, o semblante tornando-se grave. — Aconselho chamar seu outro irmão para nos ajudar. 

Irina viu que teria de se dar por vencida naquele momento e somente assentiu. 

― A Srta. Matilda pediu para que lhe devolvesse o livro. ― O mordomo subitamente reapareceu, sobressaltando os dois. A Srta. Gutiérrez levou uma mão em torno do pescoço enquanto via o homem se aproximar e estender um objeto. Sequer tinha percebido que estava tão imersa. 

― Matilda ainda insiste em não querer ver ninguém? ― o bruxo questionou, recebendo uma negativa do mordomo. Junto de um breve olhar para baixo, que Irina estava começando a associar a alguns sentimentos em específico, deu um sorriso amarelo. ― Obrigado.

Após inquirir se não precisavam de mais nada e receber uma negativa, o mordomo se retirou junto de uma reverência. O Sr. Salazarte observou o título do livro por alguns instantes, até deixá-lo sobre a pilha com o livro sobre maldições. Irina apenas foi capaz de identificar letras no alfabeto grego na capa. 

― Sei como às vezes é difícil a relação entre irmãos ― ela começou, numa tentativa de consolo. ― Mas Matilda parece gostar muito do senhor, creio que a raiva não durará muito, independente do que tenha acontecido.

Ele deu um riso sem humor, pegando outro biscoito depois de vários minutos. 

― Dessa vez, creio que a senhorita é quem está sendo um tanto otimista ― opinou antes de dar a primeira mordida. ― Matilda estava se envolvendo com um mundano.

― Céus... ― Irina murmurou, deixando a mão que estava envolta do pescoço cair para o colo. ― Matilda pode vê-lo como um carrasco agora, mas daqui a algum tempo talvez seja capaz de compreender a sua atitude.

― Assim eu espero. ― O Sr. Salazarte continuava a encarar o chão, o biscoito mordido esquecido na mão. ― É um tanto difícil me acostumar com a ideia de que minhas irmãs não são mais as garotas que deixei quando parti. 

Irina ofereceu um sorriso triste, numa tentativa inconsciente de se mostrar compadecida. 

― O senhor passou muito tempo na Nova Inglaterra?

― Cinco anos ― ele respondeu, acabando com o biscoito em uma mordida só. Seus olhos subiram para alguns livros da pilha sobre a mesa e os trouxe para mais perto. ― Às vezes tenho a impressão de que não reconheço mais minha própria família após esses cinco anos. ― De súbito, seus olhos se voltaram para a convidada. ― Perdoe-me, creio que estou fugindo um pouco do assunto que estávamos falando...

― Às vezes, Sr. Salazarte, faz-nos bem desabafar sobre nossas aflições. Sei que é algo um tanto batido de se dizer, mas... Provei algumas vezes que isso pode ser verdade. 

Ele sorriu com o canto dos lábios, unindo uma mão com a outra enquanto voltava a encarar o chão. 

― Um grande amigo disse-me algo semelhante quando estava na Nova Inglaterra. ― Mais uma vez, passou os olhos nos livros sobre a mesa. ― Creio que minha carta com perguntas sobre o senhor oniromante ainda esteja a caminho, mas, como um presente por não poder se despedir pela minha partida repentina, mandou-me esses livros. Infelizmente, creio que a comunicação será um pouco complicada daqui em diante. ― Ele deu outra de suas risadas que pareciam não achar graça da própria frase e pegou um dos livros, entregando-o para sua convidada ao seu lado. ― Sabe falar inglês, Srta. Gutiérrez?

― Sei apenas francês e latim, infelizmente.

Irina passou a maior parte do tempo aprendendo “habilidades que boas moças tinham para se casar”, segundo sua mãe dizia. Não achava que saber tocar cravo, harpa, cantar e pintar se encaixassem em qualidades para uma boa esposa, porém, tão jovem naquela época, acabou apenas obedecendo. 

― Gostaria de saber mais, então? ― Salazarte questionou, parecendo interessado pela resposta. Manteve o livro na mão e encostou-o sobre o colo.

― Confesso que tenho interesse em idiomas derivados do gaélico, além do francês. Também tenho um certo interesse em grego, acredito que por convivência com Ezequiel. ― Ela riu e viu-o mover os olhos para si no exato instante. Um sorriso se formou nos lábios finos dele e Irina tomou alguns segundos para observar. ― E quanto ao senhor? Sei que tem domínio em grego e inglês.

― Infelizmente sei apenas os dois, além do latim que todos sabemos. Mas confesso que tenho interesse pelo francês.

― Nunca é tarde para aprendermos — ela comentou. 

― De fato não é. Ao menos teremos alguns séculos para isso ― ele brincou pela primeira vez e ambos se permitiram rir juntos. As sombras dos problemas começavam a se afastar. ― Teremos alguns séculos para aprender muitas coisas.

― De fato teremos. — Seus lábios formaram um sorriso triste, provando que mesmo um pouco de diversão não durava muito entre seus pensamentos. 

A Srta. Gutiérrez subiu os olhos pela primeira vez para a janela na parede à frente. Entre as cortinas, era visível pelo vidro o que parecia ser uma estufa, o pálido da estrutura de vidro misturado com a palidez do céu de quase inverno. Ao redor deles, talvez algumas centenas de livros o assistissem em silêncio.

Teriam séculos para aprender o que quisessem. 

Eles teriam séculos. 

Os bruxos tinham séculos para aprender o que quisessem.

Daquela vez, foi ela quem teve vontade de rir sem humor, porque ela ainda teria séculos para viver. E Ezequiel, não.

― Gostaria de ouvir um soneto? ― o Sr. Salazarte propôs de repente, trazendo-a de volta para o tempo presente. Percebeu que estava sendo observada por ele, após ter repentinamente se calado. ― A fonética inglesa não costuma ser elogiada como a francesa, mas confesso que gosto da sonoridade em versos.

― Claro ― ela respondeu junto de um sorriso gentil. 

O bruxo abriu aleatoriamente o livro que estava em seu colo e se pôs a ler uma das páginas em voz alta:

When most I wink, then do mine eyes best see, for all the day they view things unrespected; but when I sleep, in dreams they look on thee¹. ― Subitamente, ele riu. Após uma breve passada de olhos pela página, continuou. ― How would, I say, mine eyes be blessed made by looking on thee in the living day, when in dead night thy fair imperfect shade through heavy sleep on sightless eyes doth stay! All days are nights to see till I see thee, and nights bright days when dreams do show thee me. ― Por fim, ergueu os olhos para ela, ainda rindo.

― O que quer dizer? 

― O poeta diz que vê a sombra de sua amada em seus sonhos e deseja vê-la à luz do dia, e todos os dias serão noites até que ele a veja à luz. ― Irina soltou um “oh”, enquanto ele riu novamente. ― Ri porque achei uma incrível coincidência eu ter aberto justamente em um soneto sobre sonhos.

― Algumas pessoas menos céticas talvez acreditem em coincidências ― ela comentou. ― Mas o senhor deixou-me curiosa pela tradução. E confesso que tenho que concordar com o senhor quanto à beleza da fonética inglesa em versos.

Ele respirou fundo e, fixando seus olhos nos dela, traduziu os versos lidos em voz alta:

― Quanto mais eu pisco, então melhor vejo. Pois durante o dia os olhos vêem coisas que não interessam; mas, em sonhando, eles te vêem ― o Sr. Salazarte quase murmurou, fitando os olhos azuis nos dela e tornando qualquer decoração ambiente meramente esquecível. ― Como, eu digo, ficariam os meus olhos tão felizes, te fitando debaixo da luz solar, quando na noite profunda tua sombra somente sugerida, através do sono pesado em olhos que não vêem, assombram ainda? Todos os dias são noites para se ver, até que eu te veja. E noites, dias brilhantes, quando os sonhos te revelam ante mim.

A última frase terminou quase soprada e Irina não foi capaz de impedir que a mente a guiasse para a lembrança do sonho que a visitou algumas noites daquela última semana. Jurava que a lembrança da sensação daquele beijo em seu rosto era quase real. A mera lembrança…

Era cética demais para acreditar em coincidências, mas, daquela vez, podia dizer que a própria Mãe Terra armou para que acontecesse. 

Uma das mãos apertou o tecido do vestido enquanto tentava livrar-se das memórias da noite e focar-se no que estava acontecendo em plena luz do dia. Engoliu em seco e forçou-se a sorrir.

― São versos lindos.

― Concordo com a senhorita, independente do idioma. ― Ela assentiu em silêncio, ainda esquecendo todo o foco do ambiente comparado a ele. ― Lembro-me que cheguei a comentar sobre esse soneto com esse meu amigo, certa vez. Foi uma longa conversa onde concordamos em como somos vulneráveis em nossos sonhos. — Ele sorriu, e Irina podia afirmar que, daquela vez, viu novas nuances por ali. — Nossos desejos, nossos temores... Somos confrontados com eles quase todas as noites. 

Ela olhou para o livro aberto sobre o colo dele, brigando para recuperar o foco. 

― Eu ainda acrescentaria ao ponto do senhor e de seu amigo que os sonhos são um bálsamo, Sr. Salazarte. Às vezes, são nosso refúgio em meio aos problemas da vida.

Ele fechou o livro, fazendo a página marcada se perder e ela ser obrigada a olhar para seu rosto. Mesmo que houvesse muita coisa a se observar naquela biblioteca.

― Infelizmente, às vezes não encontramos refúgio dos nossos problemas nem em nossos sonhos.

― Um refúgio, Sr. Salazarte ― Irina continuou seu argumento ―, não um esconderijo. Esconder-nos de nossos problemas não trará a solução. Apenas fará com que continuemos a ser atormentados por eles.

― Srta. Gutiérrez, que surpresa encontrá-la em minha casa. ― A voz do Dr. Salazarte foi se aproximando, antes mesmo que ele aparecesse na soleira da porta. ― Foi uma surpresa a informação de que a senhorita não estava na sala de estar. ― O médico finalmente apareceu sob o umbral da porta e, por alguns segundos, dirigiu um olhar gelado para o filho, que lentamente se pôs de pé. 

― Vim apenas para uma breve visita, Dr. Salazarte ― Irina anunciou e se levantou, avançando na direção do homem parado na porta. ― Não era minha intenção ficar, mas não podia negar o convite tão educado de seu filho para ficar mais um pouco. Não queria incomodá-lo e fazê-lo se mover para a sala de visitas apenas para uma breve visita. ― Ela parou a alguns passos de distância do mestre de poções, erguendo levemente a cabeça para encará-lo nos olhos. ― Mas, particularmente, confesso que não me importo muito em ser recebida com grandes formalidades na casa de meus amigos. 

Irina notou as marcas de expressão se formando na testa do Dr. Salazarte e sabia que, se o homem à sua frente não fosse um poço de educação, teria que ouvir algumas palavras nada agradáveis ou alfinetadas escondidas em frases cordiais. Ao em vez de se manifestar, ele sorriu, claramente notando o desafio que a filha dos Gutiérrez lhe lançava.

― Eu a acompanho até a saída, Srta. Gutiérrez ― o outro bruxo se manifestou às costas dos dois. Ela virou o rosto em sua direção, ofertando-lhe um sorriso. 

― Apenas peço que nos avise antes da próxima visita, Srta. Gutiérrez ― o doutor retomou a palavra. ― Pois eu faço questão de preparar a sala para que meus convidados sejam recebidos da melhor maneira.

Irina somente assentiu, escondendo sua vontade de sorrir de satisfação ao ver que a tentativa de alfinetar fora bem sucedida. E ao deixar claro que, da parte dela, aquela amizade não terminaria por uma quantia de dinheiro. 

Após uma despedida polida, os bruxos mais novos saíram da biblioteca, deixando o dono da casa para trás. Caminharam em silêncio ao longo do corredor e, de canto de olho, a Srta. Gutiérrez percebeu que era observada em busca de uma reação. 

― Não irei deixar seu pai culpá-lo por nada do que aconteceu, Sr. Salazarte. Desta vez, eu assumo a responsabilidade...

― Bem ― ele a interrompeu e passaram pelo hall de entrada ―, eu também gostaria de assumir minha responsabilidade, Srta. Gutiérrez, pois também não desejo encerrar essa amizade por uma quantia de dinheiro.

Ao olharem para a porta a alguma distância, viram o mordomo já a segurando aberta.

― Neste caso, creio que possamos passar de algumas formalidades, Sr. Salazarte ― ela declarou e ambos pararam, na intenção de deixar aquela conversa somente para seus ouvidos. ― Irina. 

Ela estendeu a mão e, em um hábito de cumprimento, ele depositou um beijo sobre os nós dos dedos. Suspirou, deixando memórias de toques para outra hora.

― Matias. ― Ao erguer o rosto, ele sorriu em sua direção. Ao menos entre os dois, o Srta. Gutiérrez e Sr. Salazarte ficaria para trás.

Irina devolveu o sorriso e, percebendo que lhe soltara a mão, sabia que era hora de ir. E deixar lembranças para outra hora.

― Até breve.

Com a despedida, viu Matias sorrir e seguiu em direção à saída porque realmente sabia que não podia mais ficar. Mesmo que desejasse permanecer por mais cinco minutos que fosse. E principalmente que ele lhe tocasse novamente.

Infelizmente não poderia se deixar mover sempre por sonhos e desejos.


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Notas finais do capítulo

1: Soneto 43 de William Shakespeare. A tradução completa é:
"Quanto mais eu pisco, então melhor vejo.
Pois durante o dia os olhos vêem coisas que não interessam;
Mas, em sonhando, eles te vêem
E obscuramente luminosos, no escuro se dirigem sozinhos;
Então tu, cuja sombra das sombras torna luminoso,
Como faria a forma da tua sombra um espetáculo feliz,
Ao dia claro com a tua mais límpida luz,
Quando para olhos que não vêem, tua sombra de tal forma brilha!
Como (eu digo) ficariam os meus olhos tão felizes,
Te fitando debaixo da luz solar,
Quando na noite profunda tua sombra somente sugerida,
Através do sono pesado em olhos que não vêem, assombram ainda?
Todos os dias são noites para se ver, até que eu te veja,
E noites, dias brilhantes, quando os sonhos te revelam ante mim."



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