Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 25
Capítulo XXV


Notas iniciais do capítulo

Aviso para provável alerta de gatilho para assuntos relacionados à depressão.
Boa leitura ;)



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O barulho da chuva fina contra o telhado era agradável, ao menos nas primeiras horas. Quando se passara a noite, a madrugada e o dia quase inteiro ouvindo o mesmo som, em certo ponto ele se tornava um ruído qualquer. Talvez aquilo fosse algo natural da vida. Tudo e todos tornariam-se apenas um ruído em algum momento. 

Somente o mero pensamento de sair daquele quarto tornava-se desencorajador para Betina, fazendo-a desejar voltar para a cama mais uma vez e encarar o teto por horas que nunca passavam. 

Ninguém precisava dela do lado de fora e a vida corria como se ela sequer existisse. Até mesmo Anastácia conseguia sobreviver sem ela, sob os cuidados constantes de sua babá. Vira a filha somente duas vezes durante aquele intervalo de três dias em que mal saíra do quarto.

Foram mesmo três dias? Tinha certeza que a última vez que saíra de casa fora para ir à residência dos Gusmão na noite de segunda-feira, agora, em que dia estavam? Perguntaria quando a babá ou alguma empregada aparecesse, pois realmente não se lembrava.

Sentada na beirada do lado de dentro da janela, encostou a testa contra o vidro frio. Do lado de fora, o dia estava cinza, paisagem que não se alterou em nenhum momento desde que amanhecera. Para ela, era como se o dia estivesse cinza desde que aquela semana começara.

Há anos tinha a impressão de que via a vida em uma escala de tons frios, como se a vivacidade de antes tivesse desaparecido. Em raras ocasiões, parecia que sua visão voltava ao normal e as cores quentes estavam lá de volta. Ela ria, se divertia e, por alguns instantes, podia jurar que a vida era como antes. Em dias como aqueles, porém, parecia que a vida era cinza. 

Era como se tentasse fazer o mesmo que fazia naquele momento: enxergar a vida através de uma janela embaçada. O que estava lá fora estava lá e ela simplesmente não conseguia se importar, pois havia um vidro os separando. 

Ela queria se importar, sempre passara a vida toda se importando com o que estava lá fora, então, por que tudo mudara?

Ouviu uma batida na porta do quarto e sequer se levantou para abrir ou virou o rosto. Provavelmente era alguma empregada.

― Entre ― pediu com a voz rouca, tanto pela falta de uso daqueles dias como por não beber muita água. O último copo estava quase inteiramente cheio na mesa de cabeceira de um dos lados da cama. 

― Tina? ― Betina lentamente virou-se para trás ao ouvir a voz do avô, vendo-o colocar parte do corpo pelo vão da porta. ― Você está bem, minha querida?

― Creio que eu devo ter pego algum resfriado depois que voltamos da casa dos Gusmão ― ela insistiu na mentira que pedira para as empregadas contarem durante aqueles dias. Ao menos podia usar da voz rouca para tentar sustentar sua falsa doença. ― É melhor que eu continue aqui até melhorar, não quero contaminar o ar do resto da casa.

O Sr. Salazarte entrou e fechou a porta atrás de si. Com a tristeza brilhando nos olhos azuis, tomou algum tempo para olhar a neta de cima a baixo.

Betina sabia que sua aparência deveria estar um belo retrato do desleixo, pois sequer escovara os cabelos na última noite antes de se deitar. Quanto ao rosto, não chegara a se olhar no espelho, mas imaginava que sua exaustão refletisse também do lado de fora.

― Já peguei inúmeros resfriados ao longo dessa vida e creio que não será mais um que irá me derrubar, portanto ― Enquanto falava, o bruxo caminhou até a cama, se sentando na beirada ―, não tenho medo nenhum de ficar nesse quarto até conversarmos tudo o que precisamos. 

Betina respirou fundo, tentando procurar motivos que a levassem de novo para o estado de onde saíra. Passou os olhos pelo quarto, não encontrando nada convincente.

― Bem... ― Tibério começou sem sequer esperar e a ela restou somente virar-se de costas para a janela. ― Eu não sei dizer o que está acontecendo com seu marido e por que ele insiste em não deixar as investigações ao ataque de lobisomem continuarem...

― Inácio não entrou em contato com Saul?

― Ele não apenas entrou em contato, minha querida, como veio em pessoa na quarta-feira para explorar a fazenda. 

― E o que descobriram sobre o lobisomem?

O Sr. Salazarte deu uma de suas risadinhas, fazendo a neta imaginar a série de reclamações que viria em seguida.

― Não descobrimos nada, pois seu marido se recusa a deixar qualquer um explorar a fazenda em busca do lobisomem. ― Ele soltou um resmungo. ― Saul certamente se acha capaz de ser onipotente para saber o que acontece em cada canto da propriedade ou acredita que mundanos seriam capazes de identificar um lobisomem fora da lua cheia. Nem nós conseguimos isso tão fácil!

― Talvez ele acredite que foi um ataque pontual e que o lobisomem não se escondeu em nossas terras.

― A questão, Tina, é a impressão que a atitude de seu marido trará para a reputação da família Tremonti, que já está abaixo da linha do terrível. ― Betina encostou a nuca contra o vidro da janela e relanceou os olhos pelo teto por um instante. Sabia da importância do assunto que seu avô estava falando, no entanto, naquele exato momento era como se fosse algo que estivesse acontecendo longe demais. Ou com outra pessoa que não fosse ela. Ao voltar os olhos para o avô, percebeu que ele a encarava fixamente. ― Agora, vamos ao que realmente importa. ― Deslizou um pouco mais para o lado na cama, na tentativa de sentar-se mais perto da ponta e por consequência mais perto dela. ― O que está acontecendo com você?

A Sra. Tremonti piscou algumas vezes, tentando voltar para a realidade e responder a pergunta. Ou criar algo para não responder a pergunta.

― Não minta para mim que está tudo bem ou que está resfriada, pois eu sei que não está. Ou acha que eu não me lembro de você ardendo em febre e desobedecendo as ordens de seu pai para cuidar de seus irmãos? 

Ela encarou o avô, vendo nele a mistura de tristeza e compaixão. Não, não compaixão, era amor. Sentiu os olhos arderem e virou novamente o rosto na direção da janela.

― Estou cansada.  

Daquela vez não dissera nenhuma mentira, estava realmente cansada. Em todos os sentidos.

― Imagino que esteja, mas já fazem cinco dias que você está nesse quarto, Tina, não acha que há algo de errado?

Engoliu a pergunta que ficou presa na garganta. Realmente se passaram cinco dias que ela estava ali? Podia jurar que ainda era quinta-feira... De qualquer forma, que diferença fazia? Se mal percebera, era porque o tempo não fazia mais diferença nenhuma.

E se ninguém além dele fora atrás dela, era porque não importava tanto assim. Não importava para ninguém. 

― Tina, não acha que é hora de chamarmos um médico? ― Ouviu barulho de passos às suas costas e imaginou que o avô tivesse se levantado. ― Saul pode continuar vivendo a vida como se a esposa não existisse, mas eu não posso continuar aqui e vê-la dessa forma. ― Ele se sentou do outro lado da beirada da janela. Betina mordeu os lábios, querendo se encolher. ― Você está definhando aos poucos. Os seus olhos... Sabe quando a vi com olheiras tão profundas? Nunca. ― Ela encostou o rosto contra a janela, tentando esconder o próprio rosto. ― Eu sabia que havia algo de errado assim que coloquei os olhos em você quando cheguei aqui.

― Um médico não resolverá o problema ― a Sra. Tremonti o interrompeu, olhando a chuva ainda caindo do lado de fora. Ainda completamente cinza, sem nem mesmo os raios de um sol pálido. ― Eu vou estar melhor amanhã, não se preocupe.

Betina forçou um sorriso, descolando o rosto do vidro e encarando o avô, apenas para ver a expressão séria, destacando todas as rugas e marcas de expressão que tinha. Podia fingir que tudo estava bem para qualquer um na fazenda, menos para ele. Tibério a conhecia bem demais para acreditar em quase qualquer mentira que ela contasse.

― Você deveria passar algumas semanas em Tantris.

― O que? ― Ela parou, atordoada pela proposta repentina. Balançou a cabeça em negação. ― Não, eu não posso. O senhor não pode sair daqui e eu não vou deixá-lo sozinho.

― Eu vou estar bem em qualquer lugar, minha querida, não se preocupe comigo. Você é quem não está bem aqui. ― Betina engoliu as considerações de que o avô não estaria bem em qualquer lugar, afinal, para onde ele iria? Passar os dias sozinho em alguma casa vazia em outra cidade? ― Você é outra pessoa em Tantris, Tina, uma pessoa tão diferente que faz com que seu pai e seus irmãos sequer imaginem o que acontece com você aqui. É a solidão, não é? ― Ela encolheu-se contra o pedaço de parede às suas costas, os olhos voltando a arder. ― Eu adivinhei que fosse quando a vi sair pela primeira vez para visitar os empregados mundanos de seu marido. E com um marido como o seu e a reputação que os Tremonti têm... Não é de se espantar que você tenha adoecido.

― Eu não estou doente! ― ela ergueu a voz pela primeira vez, fazendo-a quebrar na última sílaba.

Querendo fugir do olhar do avô, levantou-se e foi até a lateral da cama para beber o copo d’água.

― O seu corpo pode não estar doente, mas sua alma está. E isso começa a afetar o seu corpo como um todo.

Betina virou um longo e lento gole, vendo que sua mão tremia enquanto segurava o copo. Assim que o líquido acabou, colocou o objeto de volta na mesa de cabeceira e viu-se sem motivos para continuar de costas.

― Eu irei pedir para que me preparem um banho ― disse por fim, finalmente encontrando uma desculpa para ficar sozinha novamente. Virou-se de frente para o avô, vendo-o suspirar e se levantar da beirada da janela. ― Ana ainda está dormindo?

― Ana está bem, não se preocupe. ― Tibério caminhou até parar a alguns passos de distância da neta, ainda a analisando com minúcia. Por fim, pareceu-se deixar vencer. ― Não pense que irei deixar essa conversa acabar por aqui. Você está doente...

― Eu não estou doente ― Betina o interrompeu, controlando-se melhor dessa vez.

― Você está doente e precisa ser cuidada, acredite você nisso ou não. ― Após um último e longo olhar para a neta, Tibério voltou-se finalmente em direção à saída. ― Volto mais tarde, para ver se você está se alimentando e fazer companhia durante o jantar.

― Irei descer dessa vez ― ela informou e iria se valer da companhia de Saul para tentar desviar o assunto de si durante a refeição. Contanto que o avô não resolvesse voltar ao mesmo ponto na frente dele, o que era bem capaz de acontecer. Não tinha muito para onde escapar.

Tibério assentiu e abriu a porta do quarto. Assim que ele se foi, Betina se viu sozinha outra vez. E, mais uma vez, seus olhos queimavam com lágrimas que estava cansada de chorar.

 

 

Após uma breve passagem pelo berçário e de ter tomado alguns minutos para amamentar Ana, Betina descia sozinha as escadas para o primeiro andar da casa.

No fundo, sentia-se uma péssima mãe por ter negligenciado a filha por uma semana praticamente inteira. Sabia que a maioria das mães de sua classe costumavam deixar os filhos pequenos sob os cuidados de babás e enfermeiras e os viam poucas vezes durante o dia, mas ela não era assim. Crescera sempre em contato com a mãe e relegar a maior parte das obrigações relacionadas aos filhos para terceiros soava um tanto absurdo.

Mesmo que tivesse finalmente saído do quarto, ainda sentia-se exausta. Destruída por dentro e por fora, mesmo que não houvesse nenhuma razão para isso.

― Tina? ― Ao passar em frente aos arcos que davam acesso para a sala de estar, parou ao ouvir a voz de Saul a chamando. Ao virar-se, viu o marido parado na varanda. ― Pensei que fosse jantar em seu quarto novamente.

― Sinto-me um pouco melhor e decidi fazer companhia para vocês dois no jantar ― mentiu enquanto caminhava na direção da varanda. Saul virou-se para a paisagem que se abria à frente, apoiando as mãos sobre a amurada.

― Não farei companhia para os dois. Estou sem fome ― informou com os olhos fixos no chão iluminado pela luz prateada da lua minguante. Parou de chover em algum momento do início da noite e ela sequer percebeu.

Betina seguiu os olhos do marido e pôde jurar que viu a figura de Leonardo, marido de Débora, ir se afastando ao longe em cima de um cavalo. As árvores quase nuas balançavam, trazendo ainda mais frio depois de mais de vinte e quatro horas de chuva.

― Seu avô conversou com você? ― Ele virou o rosto na direção da esposa, esquecendo-se do que acontecia longe deles.

― Sim. Ele te disse algo?

― Perguntou sobre você. Eu disse para que não a incomodasse, pois sei como prefere paz e sossego nesses dias. ― Ela somente assentiu, vendo o silêncio cair sobre eles.

Nas primeiras vezes de seus dias cinzentos, Saul costumava visitá-la, ao menos para perguntar o que estava acontecendo. Betina sentia-se culpada por negligenciar suas obrigações como senhora da casa e esposa, porém, a culpa misturava-se no maior do entorpecimento cinzento. Passado os anos, Saul parecia ter se acostumado a ficar alguns dias sem ver a esposa.

Assim como Tibério, certa vez ele insistira para que a esposa visse um médico bruxo, mas ao receber o diagnóstico de que não havia nada de errado e a recomendação de beber uma poção qualquer, resignou-se que não havia nada que pudesse fazer. E simplesmente esperava aqueles dias passarem, mesmo que se estendessem para mais de uma semana inteira.

Betina baixou os olhos, vendo as mãos do marido apoiadas sobre a madeira da amurada da sacada. Mesmo com a luz fraca da lua, podia jurar que havia um esfolado nela.

― O que aconteceu com sua mão?

Ao ouvir a pergunta da esposa, Tremonti  no mesmo instante tirou a mão esquerda de onde estava. Sem nem olhar para ela, deu alguns passos para o lado.

― Acabei caindo do cavalo e me machuquei. Não é nada grave. ― Respirou fundo e se afastou ainda mais. Ele não estava mancando ou aparentando qualquer dor, para quem havia caído do cavalo recentemente. ― Irei me retirar. Diga aos empregados que não precisam mandar o jantar para o meu quarto, por favor.

― E não irá comer nada?

― Estou sem vontade.

A Sra. Tremonti virou-se para trás, assistindo o marido se afastar sem mais despedidas. Naqueles dias, era hábito de Saul tentar ser um pouco carinhoso quando a via fora do quarto ― o que incluía beijos na testa e abraços, ele nunca fora muito afetuoso além daquilo ―, o que causava certa estranheza vê-lo sair de forma brusca.

Ergueu o rosto para o céu, sentindo os olhos começarem a arder novamente. Sentia-se como uma figura patética e miserável, um fantasma vazio que caminhava por aquela fazenda. A vida podia continuar, estivesse ela ali ou não. Poderia passar mais quantos dias quisesse no quarto, não faria diferença alguma.

Ao sentir a primeira lágrima descer, decidiu que era hora de voltar para o quarto. Não estava preparada para jantar sozinha com o avô, pois sabia que nenhuma mentira ou máscara funcionaria para ele.

Talvez amanhã ela tentasse descer novamente. Mais dia ou menos dia lá em cima, não importava. 


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