Dualitas escrita por EsterNW


Capítulo 16
Capítulo XVI




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― Um garoto mimado, é isso que esse menino será daqui alguns anos, Tina, ouça o que eu digo ― Tibério comentava com a neta, ele montado sobre um dos cavalos dos Tremonti e ela sobre Hera, sua égua. ― É visível como a mãe não consegue impor limites com tantos filhos e você piora a situação dando presentes.

― É apenas um mimo. O aniversário de Francisco foi semana passada ― Betina retrucou, olhando para o casarão da fazenda que ia aos poucos tornando-se mais visível. 

Tibério soltou uma de suas risadas engasgadas e a Sra. Tremonti olhou para ele de canto de olho. Mesmo com seu grosso casaco, ele estava um tanto encolhido em sua posição sobre a sela. Fora escolha dele sair junto da neta na primeira hora da manhã para visitar alguns dos moradores do grande terreno da fazenda.

Betina sabia como o avô estava se sentindo entediado em Mempolis, em uma realidade tão distante da vida a qual se acostumara durante o seu um século inteiro dentro do Conselho de Tantris. Ela em parte o entendia, afinal, também fora um choque quando saíra da agitação de sua vida na cidade para a fazenda, onde o grande acontecimento do dia talvez fosse ficar sabendo de alguma fofoca dos empregados, que entreouvira entre eles. Em parte, sentia que a vida deles era mais movimentada do que a dela.

Mesmo que reticente, Tibério estava aos poucos interagindo mais com os mundanos que os rodeavam e, quando ele propôs acompanhá-la em uma de suas habituais visitas para os trabalhadores que ainda estavam em suas casas, não pôde negar. Todos precisavam de companhia.

― Aquele menino fez-me lembrar um pouco de seu tio Heitor. Ele também era apaixonado por soldadinhos de madeira quando era até mais novo do que aquele menino. ― Betina continuou observando o avô, vendo um sorriso nostálgico formar-se em seu rosto e ficar ali por algum tempo.

Tibério pouco falava dos outros filhos, um tanto ressentido por sentir-se abandonado por eles. Heitor, seu segundo filho, era o mais censurado, por ter se juntado ao exército mundano, em uma perda de tempo e ameaça à própria vida, segundo o ex-líder do Conselho. Porém, afastado de Tantris e de sua antiga vida, o Sr. Salazarte parecia adquirir um outro tom quando comentava sobre o próprio passado.

Betina não podia negar que, de certa forma, o compreendia. 

― A mãe dele ficaria radiante se um dia isso se tornasse realidade.

― Não duvido que ficaria ― ele retorquiu para o comentário da neta, caindo em seguida para alguns minutos de silêncio.

As respirações de ambos continuavam fazendo pequenas nuvens de fumaça espiralar para o ar. O vento acertava-lhes a face e com certeza deviam estar os dois com bochechas coradas pelo frio. A julgar pelo correr da estação, aquele hábito teria que ser interrompido com a aproximação do inverno.

― Sabe, Tina, essa sua visita fez-me pensar... ― Tibério retornou a falar de repente, trazendo a neta de forma súbita para fora dos próprios pensamentos. ― Se faz essas suas visitas para os empregados em busca de companhia, por que não tenta se aproximar dos nossos? De seu marido é compreensível um certo afastamento, ele mal consegue manter uma conversa interessante, agora, você seguir os passos dele é uma surpresa.

― Mempolis não é como Tantris…

― Quem dera fosse pelo menos um pouco como Tantris ― o Sr. Salazarte a interrompeu com uma risada. ― Quem dera tivesse um pouco de ordem ao invés desse primitivismo de zonas ― ele soltou um resmungo pelo nariz, que fez mais uma pequena nuvem de fumaça subir. ― E seu marido é um tanto relapso, porque ouvi dizer que não comparece às reuniões há bons meses...

Betina voltou o rosto para o avô, surpresa com a informação. Diferente de Tantris, onde notícias do Submundo se espalhavam com extrema facilidade no boca a boca, em Mempolis as informações pareciam ter o dobro de dificuldade para chegar. Fosse pela grande distância entre algumas fazendas do quadrante sul ― onde a maioria dos bruxos vivia ― ou pela falta de proximidade entre os membros.

Vez ou outra havia reuniões com os chefes das famílias bruxas, para discutirem assuntos quando havia necessidade, coisa que ela vira acontecer menos de meia dúzia de vezes por ano desde que vivia naquela cidade. No começo, comparecera a algumas reuniões junto do marido, no entanto, ao ver a falta de abertura com que foi recebida, preferira evitar o contato e permanecer junto dos próprios mundanos, onde, para sua surpresa, se sentia mais acolhida. Eles que permanecessem com suas próprias intrigas e suposições.

As coisas realmente mudaram desde que partiu de Tantris para Mempolis.

― Talvez não fosse algo de muito importante e como Saul estava tão preocupado com Ana...

― Isto foi antes ― o Sr. Salazarte a interrompeu. ― Ouvi algumas conversas em minha ida junto de Saul para tentar vender algumas garrafas de vinho. E ele é um homem mais escorregadio do que óleo de baleia para fugir de assuntos, quando lhe perguntei...

― Certamente não era algo muito importante, como eu disse.

― De qualquer forma, seria uma oportunidade para você se aproximar dos nossos em Mempolis, não? ― Ele mais uma vez interrompeu a tentativa de se justificar da neta. Ambos cavalo e égua trotavam de volta para o casarão da fazenda. Um ou outro trabalhador passava pelos dois e acenava, porém, com os bruxos mais entretidos na conversa, eram solenemente ignorados. ― Sei como recorre a eles por se sentir sozinha, minha querida. Imagino como deve ser viver nesse lugar por tantos anos... Mas não deveria deixá-los envolvê-la tanto a ponto de se esquecer de onde veio.

― Em momento algum me esqueci de nossas origens! ― ela exclamou, surpresa pela repreensão e franzindo a testa. Diferente do marido, nenhuma marca de expressão se formou. ― A sociedade do Submundo de Mempolis é diferente da de Tantris, não há muita abertura para estrangeiros.

Aquilo não era exatamente uma mentira, mas também não era o real motivo para a desprezarem tanto, sabia disso. Se o avô já tinha tanto para reclamar de seu marido, talvez fosse melhor mantê-lo no escuro sobre algumas coisas. Mesmo que ela também estivesse quase tão no escuro quanto ele. 

― Um absurdo! ― Tibério exclamou de volta, fazendo com que os olhares de um trio de trabalhadores que passava se voltasse para ele. Em sua indignação, pouco se importou em discutir um assunto como aquele sem baixar a voz em meio aos mundanos. ― A organização de Tantris é usada há mais tempo do que a soma da idade de todos os que frequentam essas reuniõezinhas, tenho certeza, por que não seguir o que sabem ser o mais correto? Essa cidade precisa de ordem, Tina, ordem e alguma cabeça pensante nessa sociedade! 

Betina viu uma outra fumaça sair de seu nariz e finalmente percebeu alguns trabalhadores passando ao seu redor em direção ao casarão e acenou.

Não era a primeira vez que o avô reclamava sobre Mempolis e definitivamente não seria a última. Ela própria concordava que a organização em zonas era extremamente confusa, porém, o que podiam fazer? Fora de Tantris os Salazarte não tinham lá tanta influência e os Tremonti muito menos.

― Censuro mais o seu pai a cada dia que passa, por tê-la feito vir morar nesse lugar. Quantos bons possíveis maridos você não poderia ter tido se seu pai não os recusasse por qualquer coisa... Honestamente, eu não consigo entender o que seu pai viu nesse homem.

― Saul tem qualidades o suficiente para torná-lo um marido desejável para diversas moças. A família Tremonti...

― Para um homem que pouco se importa com a própria filha, de fato ― Tibério a interrompeu mais uma vez naquele intervalo de minutos. Em uma discussão onde o bruxo estava disposto a provar o próprio ponto, Betina sabia que não tinha nenhuma chance. Ele tinha uma retórica com séculos de prática, enquanto a dela era extremamente pobre. ― Dinheiro e uma família de posses compensam ser a Sra. Tremonti, Betina? ― Ela sequer precisou olhar para o avô para deduzir a vermelhidão que provavelmente estaria tomando conta das bochechas dele, ele chamá-la pelo nome era o suficiente. Continuou olhando para a frente e vendo um círculo de homens se tornar mais visível conforme subiam. ― A sua vida aqui compensa você ter saído de Tantris?

― Minha filha compensa qualquer coisa ― a bruxa rebateu com o primeiro pensamento que veio à mente, mesmo sabendo como o argumento não se encaixava muito bem nas perguntas que recebera. ― O que está acontecendo ali? ― questionou junto de um mover de cabeça na direção do círculo de homens, querendo trocar a discussão por outro assunto.

― Mundanos se impressionam por qualquer coisa, não deve ser nada.

A Sra. Tremonti preferiu sequer comentar sobre o desprezo habitual de Tibério para mundanos, estava cansada demais para aquele clima de desavença. Fez a égua acelerar um pouco o trote e logo se aproximou dos trabalhadores reunidos. As cabeças de quase todos se voltaram na direção da patroa.

― É melhor a senhora entrar. ― Um deles saiu de junto dos demais, se aproximando da égua que Betina fez parar.

― O que está acontecendo? ― a bruxa inquiriu enquanto desmontava do animal. Logo atrás vinha o Sr. Salazarte, prestes a repetir os movimentos da neta.

― Mataram uma das cabras, é melhor a senhora não ver isso ― outro trabalhador disse, sem sequer se mexer. ― A coisa foi terrível.

― Deixem-me passar ― Tibério demandou e caminhou até se aproximar do grupo, logo após desmontar de seu cavalo. O senhor parou e Betina tentou ir atrás dele, tendo seu ombro segurado pelo trabalhador que ainda insistia que ela não deveria ver aquilo. ― Levem minha neta para casa e tirem isso daqui. ― Mesmo sem ser o chefe daqueles homens, o Sr. Salazarte ordenou sem nem pensar duas vezes.

― O que está acontecendo aqui? ― Betina questionou novamente, tentando chegar até o círculo de homens, que agora voltavam suas atenções para a patroa.

Tibério virou-se para trás, encarando a neta com gravidade e tentando bloquear a visão dela no espaço que ocupava. A única forma de Betina ver sobre os ombros dos homens mais altos do que ela era ficar na ponta dos pés.

― É melhor que seu marido volte logo dessa viagem, Tina. ― O Sr. Salazarte se afastou dos empregados e, já que nenhum deles estava disposto a guiar a patroa de volta para o casarão, optou por ele mesmo tomá-la pelo braço. ― Os filhotes da Noite chegaram até nós ― ele sussurrou no ouvido dela.

Betina encarou o avô, percebendo pelo olhar assombrado e pela força que ele segurava seu braço que o Sr. Salazarte definitivamente estava com medo.


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