Zuri e a Lança de Ganga Zumba escrita por Aldemir94


Capítulo 1
Capítulo 1




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O sol iluminando uma velha árvore com galhos secos e sem vida, firmemente enraizada às margens de um lago também seco que, séculos antes, deveria ter sido a visão mais maravilhosa para viajantes fatigados em busca de água fresca.

Sentado aos pés da árvore seca se achava um senhor idoso de idade indeterminada (embora seu semblante transparecesse tamanha sabedoria, que qualquer um poderia dizer que ele nascera junto com as próprias estrelas).

Ninguém sabia como ele se chamava – embora todos se dirigissem a ele como "Babou Olhos de Falcão" –, nem a razão de sempre usar uma simples túnica vermelha e surrada, com desenhos simples de triângulos e quadrados, porém, em seus velhos olhos castanhos, pele negra e enrugada, cabelos crespos e brancos como a neve das montanhas, se achava a mais respeitável dos filhos da Terra.

Babou pertencia a linhagem gloriosa dos antigos "griots", que cantavam poemas, contos e histórias da velha terra, sempre buscando transmitir o legado de seu povo.

Sua vida correu desde a mais tenra mocidade na gloriosa cidade de Tombuctu que, outrora, pertencera ao poderoso império de Mali.

Nos tempos atuais alguns dos palácios garbosos não eram mais que ruínas, os antigos reis tinham seus nomes preservados apenas em materiais do passado (como manuscritos, pedras e nos cânticos de Babou) e o lento processo de desertificação era um grave problema para o governo de Mali.

Apesar de tudo, é da natureza do homem vencer as adversidades da natureza e do tempo, independente das dificuldades que poderiam cair sobre seus ombros, sendo essa percepção que, a seu próprio modo era "otimista", que Babou permanecia sentado debaixo de sua árvore, ainda cantando os feitos de heróis queridos para seu povo.

Ás vezes, conforme era ouvido por viajantes das mais diferentes partes da África Ocidental, o griot também obtinha relatos dos mais interessantes, que se ás vezes soavam como fantasiosos, nunca pareciam tediosos (o que já é suficiente para qualquer bom contador de histórias).

Embora raramente, o velho Olhos De Falcão também caminhava pelos arredores da madraça de Sankore, pois gostava de observar com atenção os viajantes (a maior parte europeus ou vindos do Novo Mundo), cujos semblantes se enchiam de estupefação e ante a diferente arquitetura do edifício.

Atualmente uma universidade, a grande madraça de Sankore havia crescido e prosperado muito durante o governo do rico Muça I, o mansa do império Mali.

Babou tinha o coração de uma criança, sendo desejoso de aprender e conhecer os relatos fantásticos daqueles filhos de outras terras, por isso decidiu, naquele dia especial – assim como o eram todos os dias, aos olhos do sábio griot – caminhar próximo aquela grande universidade, pensando no que poderia aprender de novo.

Havia tantas cores, tantos rostos, tantas expressões fascinantes (de jovens e adultos), sempre carregando uma história grandiosa, que Babou já começava a se sentir alguns anos mais jovem.

Suas sandálias talvez estivessem um tanto empoeiradas, assim como seu velho cajado de madeira de acácia (um presente do honorável pai), porém, assim que seus conterrâneos o viam, davam-lhe passagem sem pestanejar: um griot é o guardião da sabedoria antiga, dos costumes, dos mitos fundadores de sua terra! Ninguém se atreveria a barrar o caminho do pacífico Babou.

De repente, um som tímido tocou a audição do velho sábio, assim como as lanças do príncipe Leão devem ter feito com os soldados de Sumanguru, o rei:

—Me conte uma história. – disse a vozinha.

—É claro, garotinha – respondeu Babou – Por favor, sentem-se todos e eu lhes contarei uma história que ouvi de um amigo, vindo das terras além do grande mar.

A multidão logo se sentou ao redor do griot, desde os estudantes da grande Sankore aos turistas e professores.

Sentando-se em um degrau da universidade, Babou tirou de seu manto um pano de linho e o desembrulhou, mostrando o que parecia ser uma ponta de lança antiga, o que fomentou ainda mais a curiosidade daquela multidão.

Fazendo sinal para que a garotinha se aproximasse, o sábio perguntou o nome da menina, ao que ela respondeu timidamente "Zuri".

A menininha deveria ter em torno de 8 anos, mais ou menos, com pele negra, cabelos escuros e crespos, divididos em mechas, olhos castanhos e usava uma camisa verde acompanhada de uma saia longa e florida.

Sempre com seu olhar gentil, o griot perguntou a Zuri de onde ela vinha, ao que ela disse-lhe que vinha do Brasil:

—Ah! Eu conheço histórias de lá – disse Babou – Gostaria de ouvir uma delas?

—Sim - disse a menina com um sorriso – qual o senhor vai contar?

—Vejamos... – pensou o sábio – está vendo essa ponta de lança que tenho aqui? – disse ele, mostrando o objeto – a história que vou contar a todos tem haver com esta ponta de lança e com esse "Brasil".

Não havia nada demais naquele artefato: se tratava de uma ponta de metal com cerca de 18 cm, mais ou menos enferrujada, sem vestígios de madeira e com um tufo colorido que deveria ter sido uma pena, em alguma época remota.

"Ouçam bem", dizia o mestre contador de histórias, "vou lhes contar a origem desta lança e a saga que ela guarda.

E o relato começou, da melhor forma possível:

—Todos vocês se lembram do senhor de Mali, Sundjata, "o príncipe Leão", cuja força e coragem triunfaram sobre o malévolo Sumanguru... pois saibam que esta ponta de metal pertenceu a lança de madeira deste grande Leão do Mali, porém, seus descendentes acabaram por perder a ponta de lança durante uma das inúmeras batalhas desta terra, fazendo o objeto ir parar na nobre casa real de Quinzala (aquela dos reis do Congo, dos quais lhes tenho falado a algumas luas).

Prosseguindo com o relato, Babou segurou a ponta de lança com cuidado e falou dos séculos de prosperidade que o reino do Congo havia usufruído, dos tempos de ouro, dos reis católicos Quinzala e, por fim, falou da batalha de Ambuíla e da queda do rei António:

—Além do grande mar, vocês sabem que há uma terra chamada Portugal, de onde vieram chefes poderosos e viajantes que cruzaram esse mar em grandes barcos que chamavam "caravelas e naus"... foi em luta contra esses homens de Portugal que o rei António perdeu a vida – e a lança –, além de ter perdido também a liberdade de seus valentes irmão: sim, meus ouvintes! A derrota de António trouxe os grilhões para muitos do reino do Congo.

Zuri ouvia tudo com atenção, imaginando a batalha, as armaduras dos portugueses, os tiros de canhão, os valentes soldados congoleses e pensando se algum lusitano havia roubado a lança do rei:

—Por favor, senhor Babou, os portugueses roubaram a lança? – perguntou a curiosa menina, um pouco apreensiva.

—Não, minha jovem – respondeu o sábio, tranquilizando-a – A lança foi quebrada pela princesa Aqualtune. a guerreira valente, que alguns pensam ter sido irmã de António... o viajante que me contou sobre a batalha de Ambuíla teve um antepassado que nela lutou, mas não soube me dizer o parentesco da princesa e do rei.

—Que pena... – disse Zuri – Mas acho que eram irmãos. Gosto da ideia de uma princesa que tem um irmão que também é rei, pois assim ela pode dizer "meu pai foi rei e meu irmão também"... e seria como se ela fosse princesa duas vezes.

—É uma bonita observação – sorriu o griot – Mas essa princesa em especial não podia ficar como as outras de sua posição social, dentro de palácios e aprendendo sobre as lendas de sua terra natal... Aqualtune foi acorrentada e levada em um grande navio, junto de seus súditos, para viver a escravidão naquela terra que os filhos de Portugal diziam estar no "Novo Mundo" (o que eu mesmo não entendo bem, mas sei que se tratava dessa terra do Brasil). Felizmente, ela conseguiu esconder a ponta de lança com a ajuda de seus seguidores.

continuando com sua história, Babou contou sobre como o grande navio levou Aqualtune até a terra além do oceano, onde ela deveria ser escrava nas mãos de seu captor:

—Mas ela tinha o sangue dos antigos reis do Congo, que é tão valente quanto o dos guerreiros de Mali – disse o griot – por isso ela fugiu e se juntou com outros de seus irmãos prisioneiros: eles não seriam mais cativos e lutariam pela liberdade até o fim.

Seguindo o interessante relato, Babou contou a Zuri e ao restante da multidão como a princesa se tornou líder de um tipo de reino africano além do oceano, o chamado "quilombo dos Palmares".

—Nem todos aqui sabem – disse o griot – mas quilombos eram comunidades onde as pessoas podiam viver em paz, longe da escravidão de Portugal e de qualquer outro reino além do oceano. Lá, em Palmares, a princesa governou com sabedoria e gravou na ponta de lança o nome de seu filho, Ganga Zumba, para que ele jamais se esquecesse de seu sangue nobre e do dever que teria em comandar o povo de Palmares, quando os dias dela acabassem... e assim foi: Ganga Zumba se tornou o "rei" de Palmares.

De acordo com o griot, Ganga Zumba prosperou em Palmares e travou batalhas contra os colonos do Brasil, sendo bem sucedido, porém, cansado de tantas batalhas intermináveis (além de ter sofrido ataque de um certo Fernão Carrilho, que chegou a capturar muitos prisioneiros, incluídos filhos de Ganga Zumba), o chamado "Rei dos Palmares" resolveu aceitar um acordo de paz entre Palmares e os colonos.

O griot fez uma pausa, prosseguindo com o relato:

—O chefe governador daquela terra não foi honesto. Ganga Zumba, o rei, aceitou os termos do acordo e decidiu se mudar junto dos seus para um lugar chamado Vale do Cucaú... Mas a terra de lá não era boa, ela não dava muitos grãos... ele só queria paz, mas o acordo trouxe infelicidade para alguns dos seus.

—O que aconteceu com o rei? – Perguntou Zuri.

—Ele terminou seus dias e foi viver com seus antepassados – disse o griot – mas aqueles que o sucederam não queriam paz e conversa... e continuaram lutando contra os portugueses. Ganga Zumba foi um bom homem... mas quando antes que seus olhos se fechassem para sempre, ele entregou a ponta de lança para um de seus filhos e disse "se voltar para nossa terra ancestral, leve ela com você".

—Então o homem voltou para a África? – perguntou Zuri.

—Não – disse o griot – Durante muitos anos ele teve de fugir, pois Palmares acabou sendo destruído por um homem chamado Domingos Jorge Velho, de forma que apenas seu filho conseguiu voltar ao Reino do Congo... Lá, ele passou a ponta de lança de geração a geração, até que seu último descendente – um tal griot a quem chamavam Babou – a levou consigo, embrulhada em um pano velho, sem jamais esquecer da história que ela carrega.

Neste momento, o sábio griot se levantou e fez uma pergunta:

—Zuri, filha do Brasil... você me fez um pedido e eu o atendi. Pode atender o meu pedido?

—Qual? – Perguntou a menina.

—Leve esta ponta lança até sua terra natal, o Brasil... e conte ao seu povo a história de Ganga Zumba, Aqualtune e toda a gloriosa história da qual eles fazem parte, pois os que vem do Brasil talvez não saibam muito sobre o quanto nossa terra está ligada a deles, como dois irmãos que não conhecem muito um do outro, mas que, ainda assim, são família.

Entregando o embrulho para a menina, ele encerrou suas palavras com os dizeres:

—O conhecimento foi compartilhado com você e esta multidão... mas caberá a você, minha querida Zuri, passá-lo adiante, para que todos saibam e possam, por fim, aprender...

 


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