As Crônicas de Aethel (II): O Livro das Bruxas escrita por Aldemir94


Capítulo 17
A Lenda de Maeve




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Alguém disse, certa vez, que as palavras de Merlin eram tão poderosas, que os pássaros as levavam pelo vento para terras distantes, no intuito de transmiti-las para os humildes e de coração gentil.

Fosse isso verdade ou não, era de se considerar que a imensa sabedoria do mago, atrelada a uma retórica inigualável, poderia surpreender até os melhores mestres de lei e sábios do mundo.

É um tanto lamentável que em nosso mundo não haja muitos professores com uma “voz de Merlin” para nos ministrar toda sorte de matérias, desde matemática até aritmética e todas aquelas fórmulas químicas que, embora despertem curiosidade em nós, que tanto as estudamos no colégio, quase sempre nos são incompreensíveis.

De qualquer modo, ninguém seria mais adequado para falar sobre quase qualquer assunto, de modo que é fácil entender a razão de Aethel, Atreu e os demais presentes no grande salão de banquetes terem mantido silêncio absoluto: todos ali desejavam ouvir as palavras do grande mago, que lhes contava sobre Maeve, a legendária rainha.

—Boa parte do que restou sobre Maeve é apenas lenda… – disse Merlin – Mas quase todas as lendas possuem alguma base real. Sempre me interessei pela física no voo das aves, a influência dos raios solares sobre as plantas da terra, as relações sociais dos felinos domésticos e toda a sorte do chamado “bom conhecimento”, que pudessem formar materiais para  fascinantes conteúdos que, com o auxílio de minha magia, ajudariam na educação dos povos.

Ajeitando os óculos, Merlin tirou de sua manga uma varinha de madeira e, com movimentos circulares, produziu uma série de cenas que se projetavam acima do salão, impressionando a todos.

Em determinado momento, os olhos castanhos de Aethel se fixaram na imagem de uma mulher muito bela, de cabelos vermelhos como chamas de uma fênix, olhos verdes como esmeraldas, lábios rosados e pele clara.

A mulher usava um vestido verde, cinturão de couro com pequenos medalhões de ouro e trazia na testa uma tiara feita de ferro.

De acordo com Merlin, aquela era Maeve, pouco antes de se arrumar para uma batalha.

—Os autores cristãos escreveram sobre a grande rainha durante a idade média, mas creio que ela viveu em uma época muito mais remota; possivelmente por volta de 3000 a.C., mas acredito que só o senhor Gemma poderia nos dizer com maior precisão – disse Merlin – Maeve entrou em uma série de batalhas violentas, tanto para expandir seus territórios quanto para proteger o povo de Connacht das tribos e reinos bárbaros. Aquela era uma época primitiva; a Irlanda levaria milênios para se unificar no país que conhecemos hoje (peço que o senhor Atreu não pense muito nestas coisas, pois são assuntos das terras além do véu). O temperamento de Maeve oscilava conforme as necessidades exigiam: para com seu amado filho, Maeve era a mais brilhante das mães; para os inimigos, ela era como uma força indômita da natureza.

O mago seguia com suas explicações e as imagens movimentavam-se, mostrando batalhas (em respeito a Sam e Rosa, Merlin mostrou apenas as cenas de guerra onde havia pouco ou nenhum sangue), danças em clareiras de antigas florestas, homens fortes erguendo muros de madeira e forjando metal, crianças com roupas simples de couro ou algodão grosseiro (e frequentemente descalças) brincando de soldados…

Olhar para aquelas imagens era como atravessar o véu que separa um mundo conquistado de algum outro, talvez muito melhor, que foi perdido; para Aethel, a despeito das lanças, escudos, sons de metal se chocando e homens valentes tombando em batalhas, tudo aquilo parecia, de alguma forma, um período glorioso para a história humana.

Era extraordinário poder assistir aqueles homens e mulheres vestindo suas malhas de couro, segurando seus escudos de madeira e fazendo suas espadas de ferro dançarem, enquanto eram movimentadas nos campos de batalha.

De repente, Merlin movimentou sua varinha novamente e as cenas mudaram para Maeve; a bela rainha estava vestida com um tipo de armadura de couro, muito dura, segurava uma espada média com a mão direita e um escudo redondo de madeira com a esquerda, enquanto gritava algo numa língua desconhecida até para Aethel.

Quantos líderes seriam capazes de mostrar aquele olhar cheio de confiança e poder que se estampava na face de Maeve? Mesmo que aquelas cenas fossem de coisas que já se foram, a muito tempo, conseguiam passar uma aura de tamanha grandeza para a rainha, que todos, com exceção de Aethel e Merlin, se intimidaram.

Com os olhos brilhando e o coração batendo forte, Aethel interpretou as palavras indecifráveis da grande rainha como um chamado para o combate: estaria Maeve desafiando Aethel?

Segurando na empunhadura da Excalibur, o jovem imperador sorriu de maneira soberana e disse, na presença de todos:

—Segure a espada, grande rainha, pois aceito seu desafio!

Arquimedes, a instruída coruja, cobriu o rosto com a asa direita e sussurrou “sabia que ele diria algo assim” e segurou o riso.

As cenas mudaram para mais sequências de batalha, onde Maeve mostrava seu impressionante domínio da arte da guerra, defendendo golpes mortais com o escudo e fazendo guerreiros valorosos tombarem por meio de golpes certeiros com sua espada.

Lanças e espadas acertavam a rainha, mas a couraça bloqueava cada um dos ataques, enquanto os soldados da soberana avançavam com a ferocidade de uma faminta alcatéia de lobos.

—Com o sangue dos antigos deuses da floresta – disse Merlin – a grande rainha encheu seu escudo de poder; quem se levantaria contra ela? Sua couraça veio do grande javali, cuja carne serve de sustento aos mortos, no salão do Grande Caolho: quem partira o couro duro, que se regenera, assim como a carne do grande javali, que abastece a mesa dos heróis caídos?

Após uma breve pausa, Merlin apontou o dedo para a espada de Aethel e disse:

—A espada da grande rainha foi forjada pelos antigos deuses da floresta: por Lugh, o forjador de armas; quem fará frente a lâmina da rainha, que tanto sangue derramou nos campos verdes de Connacht? Bem poderia lhes falar do roubo do gado, o amor de Maeve pelo rei Aillil ou da lenda de sua morte na piscina de Inis Cloithreann, pelas mãos vingativas de Furbaide, cuja mãe fora morta pelas mãos de Maeve… Não! Em respeito a senhorita Mabel e aos irmãos aqui reunidos, darei atenção a uma página pouco conhecida de nossa ilustre biografada: o capítulo de “Aengus, Maeve e o Grande Dragão do Norte”.

Movendo a varinha, Merlin fez as cenas mudarem mais uma vez, como se feitas de tinta fresca sobre uma tela que, ao toque da água, dissolvem-se e abandonam o tecido rígido.

Após alguns instantes, as imagens desapareceram por completo, para dar lugar a uma nova sequência da história da grande rainha.

 Alí havia um lindo jardim com flores amarelas e vermelhas, onde Maeve divertia-se a colher ramos para alegrar seus dois pequenos filhos.

De repente, surgiu dos arvoredos um rapaz muito belo, de cabelos loiros radiantes, como se feitos de ouro fino de Ofir, corpo forte e manto feito com pele de animais: “esse era Aengus” explicava Merlin, “o deus celta da juventude e do amor”.

Caminhando descalço pela grama verde e fresca, sorrindo apaixonadamente e fitando os olhos azuis, como lápis-lazúli, na alegre rainha, o deus se aproximou e lhe estendeu a mão, ajudando-a a levantar do jardim.

De acordo com o mago, Maeve e Aengus iniciaram um romance que, tempos depois, ameaçou a relação da rainha com Aillil Mac Máta, o rei de Connacht.

Passados os dias de encontros furtivos e promessas apaixonadas, o casal acabou por descuidar-se em demasia, quando, para infelicidade dos dois, foram vistos.

—Às vezes, nas noites de primavera, um grande dragão vindo da Ghalary primitiva vinha aventurar-se pelo mundo; bastou a fera cruzar o céu noturno de Connacht para avistar os dois apaixonadas: Maeve (que, naquela época antiga já era reconhecida como uma deusa da caça e da guerra) e o gentil Aengus, dançando em meio a relva, enquanto falavam bobagens que gente apaixonada geralmente fala.

Maeve era muito bela. Era de uma beleza tão estonteante que acabou por encher o coração do grande dragão com um sentimento que, mesmo em sua mais tenra mocidade, quando brincava com seus irmãos no ninho da mãe, não sentia em um nível tão notável; “bela rainha” sussurrou o grande dragão, “amo-te como a minha própria vida!"

—Um dragão não é como os seres humanos – disse Merlin – Eles não possuem grande compreensão de sentimentos, especialmente do amor; com o grande dragão não era diferente. Em situações semelhantes, seria natural que um dragão atacasse alguma aldeia para extravasar os sentimentos que não conseguisse entender, porém, o grande dragão preferiu apenas observar sua amada de longe.

As imagens mudaram e deram foco no olhar de um dragão de escamas negras, com olhos verdes, corpo forte, asas, cauda longas e garras poderosas; a criatura deitava-se atrás de um morro e tentava esconder-se próxima às árvores, para observar sua amada.

O semblante da fera era cheio de tristeza: seu coração batia forte quando via a rainha, porém, ela sempre estava nos braços de Aengus.

— O dragão poderia matar Aengus – disse Merlin – Mas isso faria Maeve sofrer; bastaram poucos dias para que a fera entendesse que, por mais que desejasse estar perto de Maeve, ela jamais ficaria próxima a ele.

—Maeve era sedutora e não tinha o costume de ser fiel aos amados – disse o grande mago – sendo essa a razão de Aengus logo perder o interesse por ela. Porém, o grande dragão continuava a ser consumido pelo sentimento… Por quanto tempo mais teria de suportar a dor de jamais ficar perto da mulher que amava?

Merlin explicou que Maeve era uma rainha guerreira e, portanto, o dragão temeu que sua amada levantasse a espada contra ele, caso a fera se apresentasse, de modo que o amor do lagarto alado ficou oculto da estonteante mulher.

Passado algum tempo, Maeve entrou em conflito com Furbaide que, na primeira oportunidade, matou-a por vingança, por essa ter matado sua mãe durante os conflitos em Ulster, nas grandes terras da Irlanda primitiva.

A morte de Maeve foi devastadora para a fera alada que, sedenta por vingança, decidiu atacar o povo de Furbaide e exterminar toda e cada criatura viva de lá.

As lágrimas do dragão criaram riachos e os golpes de sua cauda abriram fendas na terra, enquanto a fera planejava – mergulhada em seu mais profundo sofrimento – planejava a destruição do povo que gerou o assassino da mais bela rainha da Terra.

Porém, antes que o sangue da casa de Furbaide fosse derramado, Aengus interveio e, com a voz doce do campo, conversou com a fera furiosa.

O deus do amor não ficou muito contente em descobrir que seu romance secreto com Maeve fora descoberto, porém, Aengus não era de natureza cruel, de modo que não demorou-se a perdoar o grande lagarto. 

Aengus retirou um pedaço do manto de Maeve e o encantou, entregando o tecido ao grande dragão; “leve o tecido com você”, disse o deus, “seu amor por Maeve fluirá pelo tecido e o levará até o local onde a rainha guardou suas armas preciosas”.

Seguindo os conselhos do deus do amor, o dragão chegou até um grande carvalho oco, onde encontrou uma entrada secreta.

—Havia uma porta – disse Merlin – e atrás dela estavam a couraça, o escudo e a espada de Maeve; com as armas de sua amada, o dragão voou até o lago, onde poderia ver sua amada uma última vez. Foi ali que Aengus lhe prometeu que garantiria a rainha um enterro digno. Após isso, o dragão derramou uma lágrima no corpo caído de sua amada e seguiu para o Oeste, voando de volta para sua terra.

De acordo com Merlin, o dragão seguiu até uma região desconhecida, onde guardou os preciosos tesouros de sua amada falecida, desaparecendo pouco depois.

De acordo com o mago, o choro do grande dragão ainda podia ser ouvido; trazido pelo vento da terra dos dragões.

Quanto a placa de pedra, com certeza Nealie já possuía o texto fúnebre preparado a bastante tempo (sendo uma rainha guerreira, o perigo de morte em combate era constante, logo, pensar em testamentos e epitáfios fazia sentido), então era provável que algum servo leal tivesse registrado a mensagem na placa de pedra.

—Acredito que a placa de pedra tenha vindo parar em Ghalary pelas mãos de Aengus, mas é impossível saber com certeza – disse Merlin.

Após contar a história de Maeve e seu dragão, Merlin fez as cenas desaparecerem e preparou-se para a chuva de perguntas:

—Porque as armas não foram enterradas com Maeve? – perguntou Tucker.

—Não seria boa ideia que objetos tão especiais caíssem nas mãos dos assassinos de Maeve – respondeu Aethel, perspicaz – Seus filhos ainda deviam ser jovens e, por causa disso, Connacht deve ter sofrido com instabilidade política… Talvez tenham ficado em situação pior que Ghalary após a revolução.

—Onde estão agora? – perguntou Rosa – Se Nealie está atrás das armas, deve saber onde estão.

—Não importa se ela sabe ou não – respondeu Arquimedes – o importante é que “nós” não sabemos onde elas estão. Além disso, com certeza a maçã é necessária para acessar as armas.

—É terrível! – disse Sam – Agora está um pouco claro que elas não estão no túmulo de Maeve, porém, como a placa de pedra deixou sugerido, ainda precisamos do pomo de ouro…

—Se não… – completou Dipper – Mabel morrerá; maldita Nealie!

—Jack, você pode se transformar em dragão – disse Trixie – Não pode falar com os outros dragões e perguntar onde estão as armas da Maeve?

—Acho que isso não vai funcionar, Trixie – disse Jack, desanimado – Lembro que o Aethel falou algumas coisas sinistras sobre dragões e em como eles eram perigosos… Os dragões daqui devem ser selvagens; desses que não viram humanos e comem cavaleiros nos filmes.

—Que pena que não temos a quem perguntar – lamentou Spud – Seria legal se o dragão ou o Aengus estivesse aqui e falassem onde as armas estão.

—Não estão – disse Merlin – Mas talvez ainda possamos perguntar para alguém… Mas seria mais perigoso do que enfrentar mil Nealies.

—Cara, tá falando do que? – perguntou Danny – Não acho que vamos encontrar alguém útil na Zona Fantasma.

—”Zona Fantasma”? – questionou Aethel – Onde fica?

—Aethel, agora não – orientou Merlin – depois podemos falar disso, mas o que tenho agora é algo mais urgente; estou falando do “Oráculo da Eternidade”.

—Nunca ouvi falar – disse Aethel – E não acho prudente ficar buscando mitologias ao invés de achar a maçã dourada e pistas mais concretas sobre o paradeiro das armas de Maeve.

—Tem uma ideia melhor? – questionou Sam – Estamos todos ansiosos por uma solução.

—Mas é claro! – disse Aethel, um tanto aborrecido – Abrimos um tribunal inquisitorial, prendemos essas feiticeiras perigosas e as interrogamos; alguma delas deve saber o que Nealie sabe sobre Maeve e suas armas. Além do mais, a rainha das bruxas deve pagar pelo que fez a Mabel e a mim: vou queimar essa bruxa!

—Gente! – interrompeu Jazz – Isso não é solução nenhuma, é só desculpa para orquestrar um massacre! Aethel, como pode sugerir uma monstruosidade dessas depois do que me disse hoje cedo?! Não sei o que existe entre você e essa Mabel, mas os livros de história já mostraram que essa coisa de inquisição é uma péssima ideia. Pensei que isso já estava claro pra você!

—Discurso interessante – disse Atreu que, até aquele momento, permanecera calado – Mas lidar com as feiticeiras talvez não seja uma má ideia… Até porque não sabemos quais delas estão do lado de Nealie. Talvez eu deva propor ao senado uma medida para restringir a liberdade das feiticeiras… não falo isso como castigo a elas; será apenas uma precaução, até porque ainda temos a questão de Juba para resolver…

—JUBA! – exclamou Aethel – Eu já tinha esquecido dos franco-armanianos! Quando o rei deles chegará? Eu solicitei que viesse aqui amanhã.

—Ele virá hoje, senhor Aethel – respondeu Atreu – E o senado já está preparando a recepção.

Aethel ficou muito satisfeito com as palavras do senador, mas antes que se distraísse ainda mais, Merlin explicou um pouco sobre o oráculo de que falava:

—A muito tempo, o rei de Uruk, Gilgamesh, cruzou o mundo em busca da vida eterna, chegando até a casa de Utnapishtim, que ficava no fim do mundo…

—O que é uma bobagem! – disse Arquimedes, logo começando a rir – o mundo não tem um fim; a Terra é redonda, lembra disso, Merlin?.

—Ah, conta outra, cara! – disse Spud – Todo mundo sabe que a Terra é redonda como uma laranja.

—Mas eu não disse o contrário! – respondeu Merlin – O que eu quis dizer com “fim do mundo” era o fim do mundo conhecido por Gilgamesh e seu povo! Francamente, aprendam a ouvir um pouco…

Após ouvir as desculpas de todos, Merlin explicou que o oráculo ficava nas terras de Utnapishtim, ou um pouco além, dizendo também que ele daria as respostas que todos tanto desejavam:

—Ele pode responder a qualquer coisa… Mas também pode se recusar a responder. Aethel, acho que só você poderá ir até ele e perguntar. Você detém o sangue Ryu e a espada de Arthur, então talvez tenha mais chances de ser atendido. Infelizmente precisará resolver essa questão com Juba primeiro, ou as coisas podem se complicar sem você aqui.

A conversa se prolongou um pouco, até que foi decidido que Aethel, Danny e Jack deveriam seguir até a terra que estava no “fim do mundo” e obter as respostas do oráculo. Enquanto isso, Dipper, Beatriz e os outros ficariam em Ghalary, tentando encontrar o fruto de ouro.

Atreu se comprometeu a apaziguar o senado e segurar qualquer medida restritiva para as feiticeiras (embora preferisse, ao menos, adotar medidas para a interrogação delas), enquanto Jazz ajudaria com a parte concernente a diplomacia com os franco-armanianos (Atreu não gostou muito disso, mas a garota insistiu tanto que ele acabou não vendo problemas, desde que ela apenas servisse como ajudante ou auxiliar menor).

Decisões tomadas, todos se retiraram do salão e foram cumprir com seus afazeres: Aethel foi ler a assinar mais alguns documentos, fazendo poucas pausas para atender súditos e averiguar as investigações sobre os incêndios; Dipper prosseguiu e Beatriz seguiram com a leitura do diário de Sophia; Spud planejou uma festa para animar o palácio (e Juba, que chegaria no dia seguinte) e os demais (Tucker, Danny e Jack) ficaram conversando o restante do dia.

Jazz preferiu passar o tempo com Atreu, já que esse precisava ensinar a garota como funcionavam as instituições ghalaryanas, suas leis e também apresentar um pouco sobre a Franco-Armânia, o reino de Juba III.

O dia prosseguiu sem grandes problemas, logo mudando para uma noite estrelada.

Aethel havia trabalhado tanto durante aquelas últimas horas, que não levou mais que 15 minutos para pregar os olhos.

De repente, o imperador ouviu um estrondo e se levantou, um pouco assustado.

O quarto estava escuro, mas foi possível distinguir um vulto que rodeava sua cama e seguia para uma poltrona próxima.

Aethel tentou acender um abajur, mas falhou, o que fez o rei pensar se a luz do palácio não estaria com algum problema.

De repente, a figura na poltrona acendeu uma lamparina a óleo e dirigiu a palavra ao imperador:

—Ainda está dormindo? – Questionou o invasor – Não deveria estar trabalhando por aquela garota inconsciente?

Aethel olhou com atenção e  não pôde deixar de se espantar: tratava-se de um homem magro, vestido com um manto dourado com uma faixa púrpura na cintura, cabelos negros, como o bréu da noite, olhos castanhos e duros, cheios de severidade, nariz um tanto aquilino, bigode arrumado (longo e bem cuidado, lhe transmitindo um ar aristocrático) e uma barca que seguiu pelo quixo e terminava em uma ponta bem escovada.

A primeira vista aquele rosto misterioso lembrava um pirata, mas a coroa dourada em sua cabeça escancarava o equívoco nesse pensamento e, além do mais, Aethel já havia visto aquela figura inúmeras vezes; ela estava em quadros, bustos e até em uma bonita estátua no palácio imperial: era Vladimir III, o sanguinário.

Ele estava sem sua espada vermelha, mas Aethel sentia um cheiro de sangue, como se estivesse dormindo no meio de um campo de batalha.

o jovem imperador não podia acreditar que antigo monarca, cuja saga de vida fora tão conturbada, estava ali, diante dele:

—Não… Você não pode estar aqui, está morto!

—Reverência, seu moleque – pediu Vladimir – Vivo ou morto, ainda sou um imperador. Agora saia logo dessa cama, garoto. Porque não destruiu ainda os franco-armanianos? Porque Nealie ainda está viva? Não se envergonha de ter piedade daqueles que zombam de você? Vamos, levante logo daí; moleque preguiçoso e covarde!

—Não… Você não está aqui, não pode estar aqui!

—Então morri em batalha para isso? – perguntou Vladimir – Proteger o precioso trono ghalaryano para que um dia essa criança o herdasse e destruísse o império? Ainda não se levantou? Saia logo dessa cama, ou vou tirá-lo à força!

Aethel levantou-se em um sobressalto e sacou a Excalibur, enquanto sentia medo pela aparição e raiva pelas ofensas:

—O que quer de mim? Porque está aqui?

—Você ainda não queimou as bruxas nem acabou com aqueles criminosos do Juba… Acho que devo dar uma ajudinha para a “criança coroada”...

Estendendo a mão esquerda, Vladimir fez a janela se abrir e Aethel viu uma luz avermelhada, acompanhada de muita fumaça.

Aproximando-se, o jovem imperador ficou chocado: Havia cruzes espalhadas e centenas de bruxas amarradas a elas, prestes a serem queimadas, gritando “morte ao tirano! Morte ao mal príncipe de Ghalary!”

As bruxas clamavam contra Aethel, rogando para que Deus o punisse e indagando a razão de tamanha crueldade:

—Porque nos faz isso? Que fizemos a você, Aethel?! Que a ira de Deus caia sobre você e toda a sua maldita casa! Aethel… sua criança abominável! Que seu nome seja riscado do Livro!

De repente, Aethel viu sua cidade, a grande capital, em chamas, ouvindo inúmeros gritos de medo e ódio.

O rapaz ficou apavorado, mas o que viu a seguir encheu seu coração de pânico; na frente de Vladimir, Aethel viu a si mesmo, com um semblante cheio de ódio e perversidade.

Aqueles olhos castanhos, sempre cheios de amor e bondade, estavam agora cheios de tamanha maldade, que Aethel quase não se reconheceu; mas, com certeza, era ele sim.

—O mundo é meu – disse aquele Aethel maligno – Então o livrarei daqueles que me forem incômodos. Agora este mundo será guiado pelas pessoas mais extraordinárias e não será ameaçado por ninguém…

De repente, o pobre rapaz viu sua versão alternativa desfazer-se em um nevoeiro e, diante de um espelho que apareceu magicamente, o bom imperador Aethel viu que havia se transformado em sua versão pérfida.

—Está vendo, meu descendente? – perguntou Vladimir III – Você alcançará a glória e massacrará nossos inimigos… Você vale mais do que meu filho fraco; sinta orgulho, Aethel! O novo mundo nasce pelas chamas da sua mão poderosa…

Aethel olhou a cidade em chamas e depois fitou o céu escuro, cheio de uma fumaça que cobria o manto estrelado:

—Não… Não, eu não sou um monstro! – Clamou Aethel, em lágrimas – Isso não vai acontecer.

—Em pouco tempo Mabel Pines estará morta e a culpa é sua! – bradou Vladimir – O sangue da senhorita Pines não estará nas mãos de Nealie; estará nas suas!

—Não, eu não tive nada haver com aquilo… – disse Aethel, já enfraquecido – Mabel, me perdoe.

—Também pedirá perdão ao restante dos seus amigos?

—O que? do que está falando, Vladimir?

—Não olha seu próprio quarto, “meu bom senhor”? 

Olhando ao redor, Aethel viu Danny, Jack, Sam e todos os outros caídos, sem vida; estavam todos cheios de fuligem, com expressões vazias, como se antes de seus momentos derradeiros houvessem sido privados de toda e qualquer fonte de esperanças.

De repente, tudo começou a girar, enquanto Aethel se ajoelhava, em lágrimas…

E acordou. Tudo fora apenas um sonho ruim.

Levantando-se da cama, Aethel olhou ao redor, assustado, sem se esquecer de olhar debaixo da cama (pois nunca se sabe o que podemos encontrar).

Caminhando até a janela, Aethel abriu-a e admirou o céu azul e estrelado, certificando-se de que Galary, a grande cidade, ainda estava calma e inteira.

Encostando na amurada, Aethel fitou os olhos na Lua cheia e depois os fechou:

—Senhor… Oh, Deus… Estou torturando a si mesmo… Cristo… Não sei o que fazer, os problemas não param de se acumular… Encontrei uma cidade de mármore e vou cobri-la de chamas? Senhor… ser imperador e governar tanta gente… esse não é o meu ofício. Sou apenas um adolescente… Mabel, eu estou falhando, não é? nunca devia ter trazido você e Dipper até aqui, foi imprudência minha.

Enquanto fazia sua oração, Aethel começou a chorar, certo de que seu pesadelo era um prenúncio das grandes tragédias que cairiam sobre todos, pelo fracasso dele como imperador:

—Cristo, porque me tornou imperador? Eu teria sido melhor como estudante comum, assim como Dipper e Mabel, ou talvez escudeiro… Senhor, eu nunca entrei numa escola, ainda assim, consegui o ofício mais difícil e perigoso que um dia já existiu: ser imperador!... O que significa ser imperador de alguma coisa? Significa que eu posso fazer tudo o que quiser e sempre serei obedecido?... Não, claro que não. Ninguém pode ter tudo o que quer, especialmente quem nem sabe o que, realmente, quer…

Ainda em lágrimas, o rapaz suspirou:

—Nunca entendi todas as aulas de Merlin… Acho que também nunca tive um sonho para me apegar… Agora tenho um trabalho, inimigos e o peso do mundo nas costas… Cristo, afasta de mim esse cálice, antes que eu o derrame e destrua a vida de todos.

Antes que o rapaz fizesse mais desabafos, um miado tirou sua atenção: um gatinho de pelagem escura e olhinhos verdes havia pulado, sabe-se lá de onde, indo pousar na amurada.

Abrindo os olhos, Aethel olhou seu inesperado visitante e, sentando-se no chão, sorriu para o animalzinho:

—Olá, amiguinho… está com fome?

O gato caminhou garbosamente até Aethel e se aconchegou em seu colo, enquanto o jovem rei ficava em silêncio.

De repente, Aethel se lembrou de algo que trazia consigo a bastante tempo, uma coisa que poderia resolver seus problemas rapidamente: o coracor.

Com a mão esquerda, Aethel pegou de sua roupa o objeto e cogitou usá-lo para dar fim a todas as preocupações, porém, o gato fincou as garras na mão do imperador.

Embora não tenha se ferido, Aethel preferiu guardar o objeto e, enquanto acariciava a pelagem negra do felino, se arrependeu de sua momentânea ideia impulsiva:

—”Nem tudo se resolve com mágica”, como sempre diz Merlin.

Com essa pequena reflexão, o garoto sentiu-se mais leve e, olhando para o gato fofo, acabou por adormecer…


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