After Light escrita por Kundaime


Capítulo 1
After Light




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Suspiro.

Um suspiro profundo, pesado. Aquele quarto enorme estava escuro, e Sayu tinha certeza de que ouvia um gotejo não muito longe. Sentia, também, a nuca suada e um calafrio atrás do outro percorrer a sua espinha.

— Olá?

A voz ecoou. Sem resposta.

— Olá? Tem alguém aí?

Sayu levantou-se, encarando aquele extenso corredor negro a sua frente. Ao tentar dar um passo, porém, rebateu contra uma porta de vidro grosso. Estava presa. Não sabia exatamente onde estava e sentia-se um pouco claustrofóbica com o curto espaço que tinha para se mexer. Ela colocou as mãos no vidro e continuou fitando o escuro do corredor, até perceber, mais distante, uma silhueta. Uma pessoa alta, magra, que parecia estar com as mãos no bolso ou algo do tipo.

— Olá! Me ajuda! Por favor!

Foi quando, encarando fixamente a figura, percebeu ela abrir aos olhos e a encarar de volta. Olhos vermelhos, brilhantes, quase que como um rubi dentro de um grande vão branco.

Sayu conhecia muito bem aquele olhar. O desespero tomou conta do seu corpo.

— AAAAAAAAAAAAAAAH! – Sayu gritou, acordando desesperada. Seu corpo estava quente, a cama molhada de suor. O quarto ainda estava escuro, indicando que ainda era madrugada.

Sentou-se na cama, tentando respirar. O ar – que parecia pesado, consumido – entrava com um esforço descomunal nos seus pulmões e saia rapidamente. Secou, com o pulso, o suor da testa, que estava prestes a escorrer para as pálpebras. Pegou o celular na cabeceira ao lado da cama e observou o horário: 04h19. Teria de acordar em poucas horas.

Entrou em seu aplicativo de mensagens.

Matsuda ♥
online

Tat, vc tá ai?
04h20

Sayu-chan! Já está acordada?
04h25

Digo... Shiori-chan! Ainda não me acostumei :D
04h25

Aconteceu alguma coisa? Tá tudo bem?
04h26

Não... eu...
04h26

Pq tá acordado tão cedo?
04h26

Temos uma reunião cedo com o Near hoje.
04h26

Aizawa me pediu para adiantar alguns relatórios, sabe como é...
04h27

Eu sonhei com ele. De novo.
04h27

Matsuda começou a digitar e apagou. Digitou... e apagou. De novo. E de novo.

Sayu, eu sinto muito. Você tá bem? Como foi o sonho?
04h30

Eu estava presa em um lugar escuro, assustador. Não conseguia sair.
04h30
E ele estava lá, me encarando. No fundo dos meus olhos, Tat.
04h30

Fica calma. Onde você tá agr?
04h30

No meu quarto. Não consigo levantar. Estou com medo.
04h31

Toma uma água. Foi só um sonho, tá tudo bem. 
04h31

Onde tá sua mãe?
04h31

Dormindo. Eu berrei, mas não acordei ela, eu acho.
04h31

Quer que eu vá te ver?
04h31

Não, eu só... preciso descansar. Precisava falar com alguém.
04h31

Certeza?
04h32

Sim, sim... e você tem sua reunião daqui a pouco, tbm... não
quero te atrapalhar.
04h32

Você precisa deixar o passado pra trás, Sayu. Ele já se foi.
Ele não pode mais te fazer mal. Nunca mais.
04h32

Sayu respirou fundo, olhando para a tela do celular. O suor já havia secado junto ao corpo e, agora, a respiração parecia mais leve.

Eu preciso ir. Vc vai ficar bem?
04h32

Vou sim. Obrigada por me ajudar, Mat.
04h32

Eu sempre vou estar aqui para você,
Sayu-chan! Qualquer coisa, me liga.
04h33

Quando viu Matsuda ficar offline, desligou a tela do celular, colocando-o de volta na cabeceira. Deitou a cabeça, que parecia doer um pouco, no travesseiro e encarou o teto. Não era a primeira – certamente, nem a última – vez que pesadelos com seu irmão a atormentavam. Mesmo depois de anos, as lembranças e os pensamentos do terror que a família e o mundo haviam vivido ainda não saiam de sua cabeça.

Sayu fechou os olhos e sentiu o sono chegando.

OoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoO

Sayu se encarava no espelho. Dessa vez, o quarto já estava iluminado pela luz do dia, porém levemente escurecido devido as nuvens que escondiam o sol, deixando a manhã nublada. Podia-se ouvir, baixinho, o som das gotículas da breve garoa que caia na região de Kanto. Estava vestindo uma camiseta de botão branca quadriculada e uma saia preta tecido blazer que batia até o joelho, o uniforme padrão da Universidade To-Oh. Os longos cabelos marrons, apesar de bem alisados, tinham um coque discreto na nuca, prendendo o excesso. Voltar para a faculdade tinha sido um esforço e tanto após ter saído do centro psiquiátrico, afinal, havia acontecido pouco tempo após a morte de Light e todos conheciam o rosto do irmão, o aluno mais inteligente da história da To-Oh.

Ao sair do quarto, desceu as escadas direto rumo a cozinha. Colocou a água para ferver na cafeteira, pegando sua xícara preferida. Ou a de sempre, afinal. Não fazia diferença.

Após terminar de adoçar o café, virou-se para a mesa e fitou a papelada acima dela. Não era muito comum, mas após uma lida rápida, identificou as contas do mês. E, na verdade, não só deste mês. Havia contas atrasadas de, pelo menos, dois meses ali.

A verdade é que, após a morte de Soichiro, o pai, a família teve dificuldades financeiras para poder manter suas condições e pagar, às vezes, até o básico. Foi um dos motivos que fez Sayu decidir voltar a estudar: queria terminar logo o curso para poder ajudar a mãe.

Após pensar um pouco, Sayu pegou outra xícara e a encheu também com café. Não colocou açúcar, sabia que Sachiko gostava assim. Colocou a xícara em um pírex e retornou a subir as escadas, dessa vez virando à esquerda no corredor, indo até a última porta.

Ao abri-la, a mãe estava deitada na cama box sozinha, no lado próximo a porta, de costas. O quarto, apesar do cheiro de mofo, parecia bem arrumado, até porque era pouco o movimento no cômodo. O que a mãe mais fazia era ficar na cama, então a casa constantemente ficava completamente parada.

— Mamãe?

A mulher respondeu com um gemido.

— Preparei um café. Vou deixar em cima do bidê.

— Hmmm... obrigada, querida. – Respondeu, sem se virar.

— Estou indo para a faculdade. À noite, estarei em casa. Se precisar, me liga.

— Ok... boa aula.

Fechou a porta, respirando fundo. A mãe ainda não havia superado a morte do filho e do marido. Se recusava a fazer terapia e, quando não estava assistindo jornais falando sobre o Kira, estava deitada na cama, nem sempre dormindo.

Sayu virou-se e, antes de voltar a descer as escadas, encarou a porta a sua esquerda. Aquela porta quase que a hipnotizava. O quarto do irmão não era trancado, mas a porta nunca se abria. E podia sentir que, a qualquer momento, ele sairia dali, cumprimentando-a como sempre fazia, ou lhe perguntando sobre a escola.

Mas nunca aconteceria. Light estava morto.

Sayu desceu as escadas e pegou sua bolsa.

OoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoO

— Peguem seus livros e abram na página 60. 

Não demorou muito para os alunos, quase que completamente sincronizados, retirarem os livros da bolsa e abrirem na respectiva página, uns mais adiantados do que outros. O dia continuava nublado, com o céu quase que completamente preto, recheado de nuvens parecendo embargadas de chuva.

— O tema da aula de sociologia liquida hoje será sobre a pena de morte.

Sayu arregalou os olhos. E logo começaram os murmúrios dos alunos na sala, vozes baixas cochichando alguma coisa sobre.

— Quem aqui é contra a pena de morte?

Uma porção de alunos da sala levantou a mão. Mais murmúrios.

— Certo, abaixem as mãos. – As mãos se abaixaram, acompanhando a fala da professora. Sayu continuou olhando pela janela, quase que implorando para que o céu a tirasse dali ou algo do tipo. Não sabia por que, mas sentia que estava sendo perseguida por todos os olhares da sala, ou da cidade, naquele momento. – Agora, levantem as mãos quem aqui é a favor da pena de morte.

Como oposto, uma porção diferente de alunos levantou a mão. Sayu não se mexeu durante as duas.

— Ok, ok... abaixem suas mãos. Agora, eu gostaria de questionar aos que apoiam a pena de morte: por que vocês são a favor?

Um silêncio breve se estabeleceu na sala, até uma voz aleatória romper a pausa.

— Porque isso reduz a criminalidade.

— Reduz a criminalidade? Então por que ainda existe crime nos países com pena de morte? – Outra voz rebateu quase que na mesma hora.

— É claro que reduz! – Uma terceira voz, mais ao fundo da sala, entoou em resposta. – Não vê como está o Japão após a morte do Kira? Esse país voltou a ser um inferno!

O estômago de Sayu embrulhou. O céu, que não havia sido do campo de visão da mesma, parecia agora mais escuro ainda.

— O Kira era um assassino! Uma pessoa só não pode decidir o destino de outra. Todos temos direito ao livre arbítrio! – Neste momento, várias vozes já tomavam conta da sala de aula, matizadas de argumentos para defender a respectiva visão de cada um naquele projeto de debate.

Tudo parecia pesar para Sayu. O clima parecia esfriar e o céu parecia se emburrecer com ela cada vez mais. O livro na mesa, aberto, parecia empurrar a mesa para baixo e a prensar contra a cadeira. Uma falta de ar breve tomava conta do seu corpo.

— O Kira salvou o Japão. O Japão não, o mundo! E nem me venham falar de Deus, Kira era o Deus do mundo. Era a única pessoa com poder para matar esses criminosos nojentos, e o mundo ficou muito melhor depois que ele surgiu!

— Pelo amor de Deus, o Kira tirou várias vidas inocentes! Um cara que sai matando quem ele quer por aí é psicopata!

— Sim, Shiori? – Disse a professora, desviando rapidamente a atenção do debate.

— Preciso ir ao banheiro.

— Claro, querida. Fique à vontade. – Sayu saiu da sala em passos rápidos. Se sentia tonta. Sentia como se o mundo estivesse sob sua cabeça e... como se não aguentasse carregá-lo.

Ao entrar no banheiro, correu até a segunda cabine e enfiou a cara no vaso. Deixou o corpo expelir. Após, respirou fundo. Apesar de todo o tempo que havia passado, o legado do Kira não havia morrido – pelo contrário, parecia aumentar cada vez mais e mais.

Sentou-se no vaso, abraçou as pernas e ficou até o sinal tocar para a próxima aula.

OoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoOoO

Ao sair da sala, Sayu segurava delicadamente a alça da bolsa de couro com os dedos pequenos brancos sob o ombro enquanto dirigia-se até seu armário. Com alguns movimentos rápidos para lá e para cá, destrancou o armário e, antes de começar a guardar os livros, percebeu uma carta sob os pertences guardados.

Pegou o cartão rosa e o abriu. Ao retirar o outro papel de dentro, sentiu as palavras baterem como um soco no seu peito.

“ASSASSINA”

“O ASSASSINO DO SEU IRMÃO MATOU O MERDA DO SEU PAI”

“ESPERO QUE VOCÊ NÃO MATE NINGUÉM COMO ELE, SUA VAGABUNDA”

Ao olhar para o canto próximo ao seu lote de armários, viu um grupo de adolescentes rindo e olhando pra ela, alguns até jogando bolinhas de papel em sua direção. Mesmo depois de mudar o nome, era impossível fugir de todo mundo que havia conhecido Sayu antes de todo o incidente e que, com certeza, espalhavam a fofoca pela escola na primeira oportunidade.

Sayu sentiu tremer o lábio em um estalo de raiva. Jogou a carta, guardou os livros e bateu a porta, trancando-o rapidamente e saindo da universidade em passos pesados.

Sua casa não era longe, mas pegava o metrô todo dia para evitar voltar sozinha a pé tarde da noite.

“Uma mulher de 27 anos foi assassinada brutalmente a facadas hoje na região de Nishikata. Testemunhas teriam dito que a mulher foi agredida violentamente após se recusar a ter relações com o agressor, que a matou logo depois”.

De fato, os alunos não estavam errados. Não só no Japão, mas no mundo todo a violência havia aumentado muito após a morte de Kira.

O trem balançava a cada trilho mal encaixado. Sayu encarava a face de pessoas dormindo, outras conversando, outras quietas, apenas refletindo.

“Homem é morto em assalto na região de Nozawamachi. O suspeito fugiu sem deixar rastros, além de levar todo o dinheiro do estabelecimento.”

“Segundo a polícia japonesa, L não deve se pronunciar pela aparição do homem conhecido como “C-Kira”. Apesar da comoção da população, a polícia confirmou não ter indícios para acreditar que possa ser uma ameaça real, e sim apenas mais um farsante tentando se passar pelo assassino”.

A estação de Kanto foi anunciada no alto-falante e Sayu se preparou a frente da porta. Ao sair do trem, perto da escada, deu de cara com um pequeno grupo de pessoas vestidas de branco, liderados por uma mulher loira, que gritava emocionadamente.

— Os sinais são claros, KIRA ESTÁ VOLTANDO! – A encarou fixamente. A mulher estava empenhada em trabalhar seus gestos corporais, estendendo o braço para frente e para trás enquanto olhava de rosto em rosto das pessoas, que passavam despercebidas como se ela sequer estivesse ali. – Tudo isso é só um teste, arrependam-se e o Deus Kira irá perdoar a alma de vocês!

Sayu esfregou a mão no rosto, começando a subir as escadas. Estava cansada. Realmente cansada. Todo dia parecia igual, extremamente pesados e desgastantes. Tudo parecia uma grande bola de neve que dava sempre no mesmo lugar, sempre no seu passado infernal.

Ao chegar em casa, destrancou a porta e entrou. A casa estava escura. Era rotineiro e Sayu sabia: a mãe não havia saído da cama.

Jogou sua bolsa no chão e seguiu para o banheiro. Lá, lavou o rosto rapidamente, se encarou no espelho e saiu.

Não acendeu nenhuma luz.

Ao invés de seguir a direita, na direção de seu quarto, virou-se rumo à esquerda, ao quarto da mãe. A casa toda estava escura, era difícil ter certeza de que não ia pisar em falso e cair de cara no chão.

Ao abrir a porta, a mãe continuava deitada, dessa vez, virada para a porta, porém de olhos fechados. Varrendo o local rapidamente com o olhar, percebeu a xícara de café. Sabia que havia sido pelo menos tocada por ver algumas gotas discretas de café manchadas no pirex. Mas, em grande parte, o café continuava ali. Se questionou se, fora os minúsculos goles, a mãe havia se alimentado. Suspirou.

Voltou a fechar a porta, com delicadeza, e virou-se para ir ao seu quarto, até que travou o olho nela. Aquela porta. Aquela outra porta. Aquela maldita porta. Hipnotizante. Amaldiçoada.

Continuou encarando. Parecia chamá-la. E sentia, aos poucos, uma raiva descomunal a consumindo.

Não era trancada, mas a porta nunca se abria.

Ela abriu a porta.

Podia jurar que ele estaria lá. Fosse Light ou Kira. Parado no meio do quarto, a encarando com os olhos vermelhos que a perseguiam toda noite. Estaria ali, rindo maldito da desgraça que a vida da família havia se tornado.

Mas não. O quarto estava vazio. Estaria completamente escuro, não fosse a luz da lua trazendo iluminação suficiente para que Sayu pudesse enxergar o quarto todo e examinar os detalhes. A cama estava arrumada. A mesa, impecável, como sempre foi. Sob a cabeceira, o antigo uniforme do trabalho, terno e gravata; nem mesmo ela, que ajudou a quase que exumar o antigo cômodo, se lembrava daquilo, talvez completamente em choque diante de tudo que havia acontecido. Os sapatos posicionados logo abaixo, quase como se Light fosse vestir no dia seguinte. Em alguns cantos, bagunça rotineira daquele alguém que estava morto faz anos.

O quarto, afinal, era o quarto de Light. Do mesmo jeito da primeira lembrança de Sayu, quando pequenina, e do mesmo jeito da última vez que viu o irmão fechar aquela porta. O irmão não, Kira. O assassino. O Deus do novo mundo.

O homem que causou seu sequestro.

O homem que causou a morte do seu pai.

O homem que matou milhares de pessoas.

Que matou inocentes.

Kira.

Light Yagami.

Sentiu o sangue ferver. Sentiu os olhos encherem de lágrimas. O coração acelerar. O punho cerrar, sozinho, quente fermentado pelo sangue que ia para as mãos.

— LIGHT! – Gritou. Alto para que seu ódio pudesse ser extravasado. – LIIIIIIIIGHT!

Queria que ele respondesse. Que ele entrasse no quarto. Ou que ele acordasse, sei lá.

Sayu Yagami apenas nunca quis que sua vida virasse aquele inferno.

Chorava. Muito. Os olhos estavam marejados. A mente, numa disputa ferrenha entre o ódio e a tristeza. O céu e o inferno. Deus... e o diabo.

Saiu do quarto. Não fechou a porta.

Ao entrar no seu, deitou na cama.

Suspirou.


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