A Dama dos Bosques Selvagens escrita por Aldemir94


Capítulo 1
Capítulo 1




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“Era uma vez…"

Muitas das mais belas histórias tiveram início com estas três humildes palavras; elas não remetem a uma data ou lugar específico, apenas nos dizem que algo aconteceu no passado, seja ele distante ou recente.

Infelizmente, o meu “era uma vez” tinha um prazo, 15 de julho, quando meu editor, Nobre Sevílio (carinhosamente me acostumei a chamá-lo de “calendário humano”), solicitaria meu manuscrito final.

Meu livro carecia de um último conto, algo que fosse sensível e mágico, como minha formatura no colégio ou meu primeiro beijo; não, eu me recusava a entregar um livro que, na falta de um texto final, ainda se encontrava imperfeito.

Sem inspiração, olhei ao redor de meu humilde escritório; escrivania, papéis avulsos, tinteiro e pincéis, canetas e outros materiais de escrita, livros abertos e uma estante que, tenho orgulho de dizer, encontrava-se limpa, organizada e cheia das melhores edições de Mark Twain, Maquiavel e J. M. Barrie.

De repente, como se inspirado por Deus, resolvi pegar minha edição de “Um Conto de Natal”, do velho Dickens, que tanto me alegrara nas noites frias de inverno, para folheá-la e olhar as belas ilustrações de John Leech.

Foi na página 76 que vi a imagem do “Fantasma do Natal Presente”, cheia de elementos representando a fartura da terra, a paz, o clima festivo do fim de ano; o bonito desenho me trouxe um desejo de sair de meu escritório, daquela solidão que acomete os escritores…

“Escrever requer inspiração, mas essa só virá no momento em que meus olhos vislumbrarem novas realidades, cenário, ideias!”

Com tais pensamentos, ajeitei o paletó, coloquei meu par de óculos, lustrei os sapatos e saí daquele recinto que, apesar dos ótimos livros, não me ajudava a superar o bloqueio criativo.

Na verdade foi bom sair um pouco de casa, ver as pessoas bem arrumadas, ouvir suas conversas cotidianas, etc., pois eu já estava enfurnado naquele escritório por tempo demais, porém, meu objetivo era claro, buscar inspiração para meu conto final (que, admito, nem tinha um título, ainda).

Pegando meu bloco de notas, fui anotando rapidamente as maravilhas que encontrava pelo caminho, a saber, mulheres trajadas com vestidos coloridos (importados do velho mundo), crianças segurando uma pipa com as cores da nação (amarelo, branco e azul) e comentando como ela voaria alto no céu e dançaria com os pássaros, um rapaz segurando as mãos de uma moça que, ruborizada, ria docemente …

Mas nada disso foi suficiente, eu precisava de mais.

Sentindo a fome apertar, fui até a padaria do bairro para comprar alguns brioches e um pouco de geléia de morangos (a loja de geléias ficava, convenientemente, ao lado da padaria; claramente havia um esquema de camaradagem entre os dois comerciantes; Marcelo, o padeiro, e Caterina, a fabricante de geléias).

Os brioches haviam acabado de ser confeitados com aquele delicioso creme de chocolate quando, no momento em que eu os apreciava, um garoto pegou minha carteira e saiu correndo, junto de mais três crianças; um pequeno “rei dos ladrões”, pensei, mas não fiquei furioso, já que o destino se movia para me trazer a inspiração necessária.

Corri atrás dos “pequenos capetas”, quer dizer, “pequenos abandonados”, sendo seguido pelo padeiro (que já conhecia aquela jovem gangue) e uma guarda que, em seu bonito uniforme preto com botões dourados e botas lustradas, percebera o ocorrido, enquanto apreciava sua rosquinha de chocolate (também comprada naquela padaria; estaria o padeiro tentando garantir a integridade de seu comércio?).

O padeiro preferiu voltar à padaria, temendo roubos, mas a guarda Isabel continuou comigo; ambos perseguimos as crianças quando, de repente, fomos parados por uma fumaça alaranjada de onde, como se fosse um djin a procura de seu mestre, emergiu uma figura muito agradável.

Tratava-se de um homem que já vivia seus 60 anos de idade (e muito bem vividos, como não poderiam deixar de ser), olhos castanhos e gentis, óculos com lentes retangulares, cabelos grisalhos e muito bem penteados, casaco verde com belos detalhes em ouro, abotoaduras douradas e um inigualável lenço vermelho no pescoço que, com toda certeza, encheria Marat de inveja.

Para completar, calças esverdeadas e sapatos pretos tão lustrados que, para minha surpresa, refletiam o rosto de quem os admirasse, tal qual um espelho de madame (digo isso com todo o respeito, pois o homem era detentor de um caráter impecável, digno de nosso glorioso império e do novo imperador (que, pela graça de Deus, assumiria suas prerrogativas reais em breve – eis o motivo da pressa de meu editor, que desejava publicar meu livro antes da coroação)).

De qualquer modo, o distinto senhor era Túlio Severo, nobre senador a serviço do parlamento que, desde os tempos da mocidade, adorava brincar com as pessoas e pregar peças animadas; naturalmente, nenhuma de suas travessuras era motivo de ressentimento entre as pessoas, pois todos eram cientes da inocência delas, assim como elogiavam seu dedicado trabalho a serviço de nossa grande nação.

Não viajo muito para afirmar se, em outras terras, os políticos são tão bem humorados e gentis quanto Túlio, mas me alegro em dizer que, caso nossa pátria seja única neste quesito, vivo nela e, portanto, sou grato aos meus pais.

Eu ainda pensava no esboço de meu conto final, então entrei no jogo do velho senador (certamente ele me guiaria para uma aventura):

—Túlio Severo! Porque nos atrapalha na perseguição? Esses garotos roubaram minha carteira!

—Acalme-se, José de Montenegro, pois venho das terras encantadas, dos bosques profundos, para lhe entregar o mapa do pequeno aventureiro, o garoto que levou sua fortuna embora – e me entregou um mapa toscamente desenhado que, sem sombra de dúvida, havia sido desenhado pelas crianças – agora vá, meu amigo, que o império aguarda a conclusão de seu livro e a dama dos bosques selvagens o espera, para dançar ao luar!

Fiquei mudo, mas toda aquela situação já havia me ajudado a fazer várias anotações em meu caderninho, então segui a “brincadeira”, digo, “convite à aventura" que meu amigo senador havia feito.

A guarda assistiu tudo, meio perdida, mas se divertiu tanto com a apresentação de Túlio que me desejou boa sorte e voltou ao trabalho; “eu gostaria de ir com você, parece que vai ser divertido”, disse ela, “mas dever é dever” (uma pena, pois a mulher parecia tão cansada de seu trabalho que um passeio pelo bosque poderia lhe fazer bem).

Seguindo pela trilha na floresta (pois a parte da cidade em que eu vivia ficava muito próxima aos bosques imperiais), comecei a atentar para o belo canto das aves, o som dos grilos e os arbustos, por vezes carregados das mais deliciosas amoras silvestres que alguém poderia colher.

A terra estava um pouco húmida, devido a chuva do dia anterior, então o cheiro no ar era fresco e revigorante, me lembrando dos tempos do colégio quando, para impressionar uma certa amiga, eu costumava ajudar com os cuidados do jardim escolar (depois eu seguia para a biblioteca, nunca me esquecendo de trazer uma flor para Dona Gertrudes, nossa querida bibliotecária de 70 anos; se sou escritor hoje, devo muito a suas recomendações de leituras).

Ouvindo um som que era diferente dos demais, segui para uma clareira onde, surpreendido, assisti um grupo de crianças brincado com um balanço de pneu, suspendido em uma árvore, rodas de dançarinos para uma antiga dança de meu país, chamada “dança do peixinho”, toalhas para piqueniques com os mais diversos quitutes, uma menininha (que deveria ter 8 ou 9 anos) tocando flauta doce (eis o som que eu havia ouvido) e, por fim, garotos brincando de cavaleiros…

Os garotos que haviam me furtado na padaria!

Caminhando até aqueles “pivetes”, quer dizer, “pequenos cavaleiros valentes”, pedi que me devolvesse a carteira, quando disseram “corram! o mágico voltou!” e correram novamente, sendo  perseguidos por mim, até que cheguei…

Em um lago tranquilo (agora eu sabia a razão das crianças estarem brincando justo naquela parte do bosque).

As águas eram tão límpidas que se podia ver o fundo, como aqueles chãos de vidro que, de vez em quando, se veem em edifícios, além de terem peixinhos multicoloridos e um clima de serenidade tão maravilhoso (e, de certo modo, “exótico”, devido aos peixes) que não pude resistir e tirei meus sapatos e meias, indo até a margem e mergulhando os pés nas águas.

Sentei-me em uma rocha e, com os pés ainda mergulhados, comecei a rir de toda a situação; o tédio me tirou do escritório e levou até a padaria, mas foi o furto que me levou até aquele lago.

Comecei a esboçar uma história em meu caderninho, enquanto sentia os peixes acariciarem meus pés, provocando cócegas, pensando o porquê de o mundo inteiro não ser tão tranquilo quanto aquele lago, ou tão alegre quanto a clareira do bosque; ah! Como as coisas seriam melhores se assim o fossem! 

Minha inspiração já havia me conduzido para um belo esboço de história, mas faltava algo (além de minha carteira); onde estavam aqueles malandrinhos e, acima de tudo, quem era a dama dos bosques?

Saindo da pedra, deitei às margens do lago e adormeci como um bebê, graças àquele ambiente idílico e encantador.

Despertei sentindo algo no nariz, uma coisa incômoda que me provocou um espirro; aqueles garotos haviam me acordado com uma pena de águia!

“Voltem aqui!”, gritei a eles, “já se divertiram o suficiente, não acham?”, mas os garotos me ignoraram e disseram, “se quer o carregamento de ouro, venha com a gente!”, o que me obrigou a secar os pés com uma flanela, colocar os calçados e perseguir as crianças até uma nova clareira com um bonito quiosque, onde uma mulher belíssima, como as estrelas do céu, esperava nossa chegada.

Ela trajava um vestido branco com uma fita azul na cintura, um bonito chapéu (também branco) com mais uma fita azulada e sapatinhos pretos que combinavam bem com sua figura.

Ela tinha pele clara, lábios rosados, olhos verdes, cabelos longos, ondulados e castanhos; em síntese, era a “dama dos bosques selvagens”...

Minha noiva, Ágata Mastroiani Severus.

Fez-me sinal para me aproximar e mostrou minha carteira, mas devolveu aos quatro garotos e disse “cavaleiros, protejam o tesouro até que eu restitua a alegria ao coração do mago!”, sendo seguida por uma reverência das crianças que, na posse do objeto precioso, se retiraram (devem ter ido ao  lago nadar ou voltado aquele piquenique para comer algo).

Perguntei o que era aquilo tudo, mas ela fez sinal para que eu me calasse:

—Quando a alegria voltar, você terá suas respostas, mago das palavras.

Com isso, convidou-me para uma valsa (embora eu estivesse com as roupas um pouco empoeiradas), que aceitei, curvando-me educadamente, segundo o costume de nossas famílias.

Segurando em sua cintura com minha mão esquerda (não era costume começar a dança com a mão esquerda, mas sou canhoto, então…), comecei guiar nossos passos, ainda que eu jamais houvesse sido bom dançarino; tudo bem não ser muito bom em dança, pois os olhos de Ágata me enchiam de confiança.

Em questão de poucos minutos, eu já não demonstrava mais a hesitação inicial, o que muito agradou minha parceira de valsa, então veio o belo som de flauta; a menininha com sua flautinha doce fora trazida por meus “batedores de carteira” para tocar uma melodia especial.

Em meio a rodopios mágicos, passos delicados como os de um casal de bailarinos do Bolshoi, Ágata e eu desfrutamos daquele momento como se fossemos príncipe e princesa que, já na conclusão de um belo conto de fadas, podíamos festejar a vitória heróica sobre os percalços.

Ela me olhou com seus olhos reluzentes e disse:

—Ainda falta inspiração?

—Não, minha querida Ágata. Agora sei o que escrever.

—Fico feliz – disse ela – mas você só sai daqui depois que terminarmos a dança. – e começou a rir.

Estávamos em sintonia e, em um gesto garboso, ergui Ágata no ar para, em seguida, girá-la mais uma vez…

E a música acabou.

Ela me olhou admirada e se afastou três passos, curvando-se, enquanto segurava o vestido, como as garotas normalmente fazem após uma valsa, sendo seguida por mim, que curvei-me educadamente.

Os garotos devolveram minha carteira e então agradeci-os, dando a cada um 4 florins imperiais; minha carteira ficou vazia, mas sinto que valeu a pena.

“Já temos o tesouro! Homens, avante pra matar o dragão!”, gritou um dos meninos, sendo seguido alegremente pelos outros.

Perguntei a Ágata se era seguro eles perambularem pelo bosque sozinhos, pois já começava a anoitecer, ao que ela me respondeu:

—Os pais deles estão próximos, amor. Eu nunca deixaria crianças participarem de um piquenique sem ter a presença dos pais delas.

—Espere… então foi você que organizou tudo?

—Amor, o padeiro, Túlio, a guarda… todos eles sabiam e me ajudaram. Na verdade, o nosso bairro inteiro estava preocupado com você, que não saia do escritório, então todos me ajudaram com o dia de hoje.

Olhei para Ágata, estupefato:

—Você é incrível, Ágata. E nossos amigos do bairro são maravilhosos.

Ela sorriu, então, enquanto caminhávamos de volta a minha casa, perguntou como estava meu manuscrito, ao que peguei meu bloco de anotações e comecei a ler:

—”Era uma vez, a muito tempo, durante a Era dos antigos reis ghalarianos, um mago bondoso que governava um bonito reino, onde a sabedoria era cultivada à exaustão. Porém, o bondoso mago começou a sentir tristeza e solidão, então seu reino mergulhou na tristeza, junto com ele. Seguindo a trilha de um reino iluminado, o mago desejava encontrar a alegria, mas um grupo de ladrões furtou um carregamento de ouro e a bolsa mágica do mago”.

De repente, os pais das crianças, junto a elas, começaram a nos seguir, Ágata e eu, pois minha história as interessava, de modo que continuei.

Narrei como uma valente general protegeu o mago para que ele encontrasse um feiticeiro poderoso e sábio, que lhe deu um mapa para guiá-lo até o bosque encantado e a clareira da juventude eterna; “em seus arredores”, disse o grande feiticeiro, está a “dama dos bosques selvagens.”

Prosseguindo com o conto, disse a meus ouvintes que os ladrões o enganaram para que o mago chegasse ao lago dos sonhos, onde recordou seus tempos de criança e adormeceu, como um gato em um tapete felpudo, próximo a lareira.

Despertando com uma águia, que lhe disse para segui-la, o mago caminho em meio ao bosque até chegar a uma clareira, onde a águia assumiu forma humana e saudou a dama dos bosques selvagens; uma mulher tão bela quanto misteriosa, que a muito esperava a chegada do mago.

A Dama apaixonara-se pelo mago porque ele tinha o poder de transformar sonhos em realidade com o poder de uma pena de escrita; nada na terra, nem o dedo de um rei poderia tornar o extraordinário em concreto da forma que o bondoso mago conseguia, mas, como ele entristeceu-se em sua solidão, aquela mulher cheia de mistérios decidiu que precisava ajudar.

Com a música da flauta mágica de uma ninfa em treinamento, o mago e a dama dançaram por muitos minutos, em um momento mágico.

O coração do mágico se preencheu de alegria e, em agradecimento, o mago fez crescer a fortuna dos jovens ladrões que, para sua surpresa, eram na verdade heróis e aventureiros; o roubo era para ajudar os mais necessitados, pois os rapazes estavam em uma luta épica contra as forças do mal de um tirano que, aliado ao seu dragão cuspidor de fogo, espoliava os mais pobres.

Juntos, o mago e a dama seguiram para a terra de tristeza, pois agora a felicidade podia ser restaurada.

Ágata me deu um beijo e as crianças disseram em alto e bom tom, “eca!”, sendo acompanhadas por seus pais, que também disseram “eca!” e, por fim, sendo seguidos por mim e minha “dama dos bosques selvagens”; todos dissemos, em risos, “eca!”

Todos aplaudiram minha história e disseram que ela estava perfeita para ser incluída em meu livro quando, de repente, a menina da flauta disse que eu esqueci de algo; quando perguntei o que faltava, ela me respondeu:

—”Eles viveram felizes para sempre”.

E me alegro em dizer que sim, todos viveram felizes para sempre.


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