É Doce Morrer no Mar escrita por Lori


Capítulo 1
Dale




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“O que está esperando?” a aflição em Dale sempre se desenhava como um pequeno tremor que atravessava sua sobrancelha direita pacientemente, começando pela ponta externa até chegar à outra, onde uma pequena ruga se insinuava. Ben, a quem ele se dirigia, mantinha uma expressão um tanto impenetrável e misteriosa, como fazia às vezes. Parecia contemplar qualquer coisa completamente sua enquanto balançava de leve as duas pernas dentro da água, como se o tempo não corresse, e, despreocupado, pareceu não ouvir a pergunta.

“Ei” Dale insistiu, repousando a mão no joelho do outro. Encarou-o e depois percorreu rapidamente o olhar pelas embarcações vazias, amarradas umas às outras por cordas já envelhecidas e ainda assim resistentes. Aqueles conglomerados pareciam uma espécie de criatura marinha calma e nostálgica, em especial quando estavam abandonados. Bandidos, Dale pensou imaginando os barcos encouraçados formando um círculo que ia se fechando rápido em torno das canoas compridas, pequenos catamarãs e lanchas que balançavam de um lado para o outro nas águas razoavelmente calmas, e sentiu um arrepio percorrer o seu corpo imaginando os pobres desesperados pulando na água e procurando fugir do destino sórdido que os encontraria se ficassem onde estavam. Foi Ben quem o retirou de seu transe, afastando sua mão de seu joelho e olhando-o com um sorriso tranquilo.

“Estou pronto” ele disse, ainda sorrindo. Dale resmungou e nadou para trás, mergulhando parte da cabeça na água e sentido o cabelo suspenso, balançando. Ben mergulhou com graça, como geralmente fazia, e emergiu alguns segundos depois expirando pela boca. Os dois se olharam por um segundo e assentiram, comunicando-se silenciosamente. Mergulharam juntos e, envoltos pelo silêncio familiar da água, começaram a inspecionar as bugigangas espalhadas por cima da grama escura, há poucos metros da superfície.

Pedaços indecifráveis de metal enferrujado, escovas de dentes e de cabelo de plástico, embalagens minúsculas de ziplock, pedaços de papel se desmanchando entre molas, presilhas de cabelo e garrafas de vidro. Quando encontravam qualquer coisa aproveitável ou interessante, carregavam-na nadando até a balsa e a enfiavam numa sacola grande que ali repousava. Trabalhavam rápido e já tinham olhos treinados para identificar o que procuravam com eficiência, pelo tempo que durassem os seus fôlegos.

Nessas horas, Dale era bastante concentrado, sério, e um pouco bruto – um belo reflexo da sua personalidade geral – mas permitia a si mesmo uma dose modesta de auto-indulgência, detendo os olhos apertados por um milésimo de segundo na figura esguia e ágil de Benjamin. O outro, por sua vez, gostava de distrair-se enquanto trabalhava imaginando um grupo de vacas – que só conhecia por imagens e descrições – pastando naquela mesma grama, há incontáveis anos atrás... Uma garrafa chamou sua atenção. Nadou até lá rapidamente e notou que dentro dela havia um pequeno pedaço de papel enrolado, não conseguiu conter um sorriso um pouco debochado. Qualquer tipo de aura romântica e misteriosa que as garrafas com mensagens jogadas ao mar já pudessem ter tido em algum momento na história já havia se perdido completamente, e os dois deviam encontrar pelo menos umas boas dezenas delas a cada mergulho. Mas ele ainda assim se divertia tentando desvendar seus códigos, imaginar quem as haveria lançado e quando. Eram sua pequena coleção – mas uma coleção apenas mental, já que ele as atirava de novo ao mar depois de ler os papeizinhos com cuidado. Não era um tempo para carregar bobagens desnecessárias, não era um tempo para qualquer tipo de peso excessivo.

Depositou a garrafa em cima da balsa com um pequeno baque e apoiou os dois braços na superfície de madeira, deixando as pernas boiarem atrás de si. Tirou a rolha e esticou um dos dedos compridos para tentar buscar dentro do vidro o papelzinho, que estava úmido mas ainda inteiro. No momento em que conseguiu, e em que começava a desdobrá-lo com cuidado, Dale emergiu ao seu lado e encarou-o, balançando a cabeça. Preparava-se para deixa-lo e mergulhar de novo, mas Ben segurou seu braço.

“Espera! Não fica curioso?”

Dale suspirou e se acomodou ao lado dele, esperando. Ben ainda dirigiu-lhe um olhar brincalhão antes de inclinar-se sobre o bilhete para começar a ler em voz alta. O que os meus pés procuram não é o chão, mas um tecido estrelado que balança entre as nuvens.

 

“É só um poema” Dale reclamou, tentando sem muita convicção desvencilhar seu ombro. Ben prosseguiu. Lá, onde chorou-se uma vez toda a água do mundo, vou segurar com minhas duas mãos tudo o que possuo. Lá, para onde peregrinam todas as pobres criaturas de olhos vidrados, de dedos frios e envelhecidos, vou encontrar as respostas para minhas perguntas de um milhão de anos. Lá, em uma das antigas cidades celestes, vou encontrar enfim meu amor e meu descanso.

 

Os dois deixaram que as palavras ecoassem por si só durante alguns segundos. Ben ainda encarava o pedaço de papel, um ar de gravidade fazia uma sombra leve no seu rosto. Dale, um pouco desconcertado, forçou uma risada fraca.

“Essas coisas que as pessoas escrevem” disse, sentindo-se um pouco estúpido. Ben se voltou, não sorria mas seu olhar parecia gentil.

“Eu gostei” ele disse. Notando o constrangimento de Dale, inclinou-se na sua direção e beijou seus lábios suavemente, e fazendo-o relaxar o corpo com alguma hesitação “Vamos continuar?” Já dobrava o papel outra vez para enfiá-lo dentro da garrafa, concentrado, quando algo pareceu imobilizá-lo. Rígido, olhou para a frente com um olhar estranho, vazio, e seu rosto pareceu se contorcer por um segundo. Soltou o papel e a garrafa e mergulhou com uma força desproporcional. Dale, após recuperar-se do susto, balançou a cabeça e mergulhou atrás dele – mas constatou, horrorizado, que Ben não se via em parte alguma. Apertou os olhos e nadou para um lado, para o outro, tentava gritar dentro da água mas só conseguia emitir um som abafado e disforme. Sentiu que estava delirando, emergiu e girou no próprio eixo gritando, mas estava sozinho. Nadou para manter a cabeça à tona por alguns segundos, sem saber direito o que fazer. Sentia o peito subindo e descendo rápido.

“Ben! BEN!” gritou mais uma vez. Com dificuldade, nadou até a balsa e agarrou-a com as mãos trêmulas, içou-se para cima e caiu na madeira de bruços. Levantou-se e tentou olhar ao redor para ter uma visão mais ampla, mas seu corpo já havia entendido que não encontraria ninguém e começou a tremer mais, encolhendo-se. “Uma reza, uma reza-” murmurou, aflito, caindo de joelhos e pressionando as têmporas, procurando lembrar-se de alguma das bobagens que repetiam todos os dias quando crianças... Ben se lembraria, com certeza – “Proteção- e, e- merda- ” balançou a cabeça e depois segurou-a com as duas mãos “Traz de volta, traz de volta, traz de volta, traz de volta”

Cerrou os olhos com força e depois os abriu, esperançoso, mas continuava sozinho. Tapou a boca com a mão e soluçou uma vez, tentando se recompor. “Ben...” foi mais uma súplica que um grito, mas seus braços disciplinados já começavam a amarrar a ponta do saco e pendurá-lo por sobre os ombros. Precisava sair dali. Enfiou a camiseta e passou a mão pelos cabelos, ainda um pouco trêmulo. Já se levantava, com dificuldade, quando reparou no papelzinho com o poema, que ainda estava dobrado ao lado da garrafa. Instintivamente enfiou-o também dentro do saco e começou a atravessar andando as dezenas de embarcações, equilibrando-se quando pulava de uma para a outra. Enfim chegou a uma pequena canoa, os remos amarrados na parte de baixo. Deixou que a sacola caísse sobre o fundo recurvado, desamarrou os remos. Deixou um ao lado da sacola e entre as pernas, e começou a remar com o outro, virando a cabeça para trás algumas vezes.

“Traz de volta, traz de volta...” continuava murmurando como um mantra enquanto chorava baixinho, o tremor voltando a atravessar sua sobrancelha, e ia se afastando da estranha – e agora terrível – criatura de embarcações.


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