A chaleira da Bruxa escrita por Roseane


Capítulo 1
A chaleira da Bruxa - O conto


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem e boa leitura!



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Houve um tempo em Linbel que magia era coisa permitida somente aos homens. Em cortejo, os magos da Ordem sagrada chegavam, inspecionavam os garotos em idade fértil para a magia, é claro, algo que lhes acontecia entre os sete e oitos anos, juntos dos primeiros sinais e comichões da puberdade, e escolhiam aqueles que de fato possuíam talento para a coisa. Os escolhidos eram levados à Torre do Sol, onde permaneciam em exilio por quase dez anos, aprendendo as práticas secretas e elementais junto de seus mestres. Após esse tempo, recebiam a benção para sair pelo mundo executando os deveres da ordem aos quais eram juramentados.

 

Muitos voltavam para casa e utilizavam as habilidades adquiridas para desenvolver novos e antigos anseios. E foi assim que Linbel prosperou, pois cada jovem mago retornava com uma ideia mais mirabolante que o outro. Construíam artefatos que ajudavam a melhor arar a terra, semear os grãos e até colhe-los. Instrumentos que permitiam marcar o tempo, evitando que o prefeito se atrasasse aos comícios, feito pelo qual ficou tão agradecido que ordenou a construção de uma torre no centro da praça com um enorme relógio no centro, para que ninguém jamais se atrasasse, fidalgo ou plebeu.

 

Muitas jovens desejavam ardentemente desposar tais magos, na esperança de receber como presente de matrimonio uma vassoura que varresse a casa sozinha, ou uma chaleira que desse conta do chá por si mesma. Ou por que qualquer mago que soubesse o mínimo, quer fosse encantar vassouras e chaleiras, era bem pago pela burguesia da cidade para ajudar a executar até os trabalhos mais ridículos. Como impedir que a grama dos jardins crescesse demais, ou erguer paredes um tantinho mais rápido e mais tortas que pedreiros comuns.

 

Também eram contratados para executar tarefas mais complexas, como desvendar segredos, coisa que com o passar do tempo se tornou exclusividade dos magos. Descobrir onde, como e porque as coisas funcionavam, ou meramente existiam, era sua principal função. Muitos enriqueciam ao descobrir como abrir baús encantados, repletos de tesouros, ou como transformar metal em ouro, ainda que isso exigisse uma habilidade muito além do convencional para uma cidade tão pequena e repleta de egos inflados.

 

Acontece que certo dia, um caçador alarmou a todos ao encontrar um peculiar artefato na floresta. Se tratava de um bloquinho maciço e pesado, como um porta joias feito de prata, mas sem qualquer abertura, ou buraco para chave. Levaram-no imediatamente até o mago mais competente da cidade. Com mais de quarenta anos de experiencia na profissão, ele já havia encantado e desencantado mais artefatos que qualquer outro, desfeito feitiços muitíssimo complicados, e até salvo a vida do prefeito de uma enfermidade aparentemente além das capacidades de qualquer médico.

 

O mago, muito confiante de suas capacidades, disse:

 

—Deixem-no aqui e em dois dias saberemos de que se trata.

 

—Está coisa pode trazer perigos a nossa cidade, senhor mago? - Indagou o prefeito, preocupado.

 

—Não precisa temer mal algum, meu caro prefeito, pois mesmo que haja nesta caixa a pior das feitiçarias, eu certamente a transformarei em nada mais que o miar de um gato assustado e despacharei o vadio.

 

Naquela noite, então, muitíssimo concentrado em seu dever, o mago examinou a bugiganga. Flutuando-a com os dedos, girando-a de um lado para o outro e de ponta a cabeça. Não parecia diferente de qualquer bloco metálico, certamente feito de prata, tal confirmação obtida após o complexo ato de compara-la à uma colher de mesmo material. Com a diferença de não se deixar abrir, dobrar, achatar, ou deformar, não importa quanta força o mago fizesse, quer utilizando sua habilidade magica, ou, no fim, cansado de tudo tentar, rendendo-se a um miserável martelo.

 

Decidiu que estava cansado demais, após incontáveis dias de árduos trabalhos para os quais sempre era procurado e permitiu-se dormir, com a promessa de que no dia seguinte abriria a maldita caixa. Eis que o segundo dia chegou e ao raiar da alvorada pôs-se a trabalhar na coisa. O sol, executando lá fora no alto do céu a manobra para qual fora projetado pelo Deus da Luz, alcançou a metade de seu arco antes que o mago descobrisse se quer por onde começar, e estava pronto para se pôr antes que o mesmo fizesse qualquer avanço.

 

A essa altura, desnorteado, descabelado e furioso, o mago espalmou as mãos na mesa e berrou consigo mesmo:

 

—Em nome do Deus Sol, do que diabos é feita essa coisa?!

 

As paredes da casa eram encantadas, é claro, então ninguém que passasse na calçada podia ouvir a frustação do tão aclamado mago.

 

Contudo, duas fortes batidas na porta o fizeram rodopiar e agarrar os cabelos, assustado. E se fosse o prefeito querendo saber enfim o que era o artefato e quais segredos escondia? Ou pior, seus curiosos rivais, sempre invejosos de seus exímios ofícios? Seu nome seria jogado a lama e suas riquezas não bastariam para apagar a vergonha do fracasso.

 

Mais duas fortes batidas revelaram a urgência da visita.

 

Precisava abrir a porta, ou acabariam desconfiando que havia algo errado.

 

O mago penteou então os cabelos grisalhos com os dedos, atirando-os elegantemente para trás, ajeitou o paletó amassado e elaborou uma brilhante mentira enquanto marchava até a porta.

 

Diria que grande maleficio se escondia dentro da caixa e que abri-la libertaria uma poderosa maldição sobre a cidade. Por isso ele mesmo precisava leva-la até a Torre do Sol mais próxima, para que a ordem soubesse imediatamente de sua existência. Desta forma preservaria sua reputação e com um pouco fé se tornaria ainda o salvador de Linbel.

 

Mas ao abrir a porta, não encontrou o prefeito, ou seus compatriotas, e sim uma velha encarquilhada, de feições rubras e murchas, de cabelos emaranhados e corcunda. Debruçava-se sobre uma bengala de madeira, apoiando nela todo o peso do corpo rechonchudo. Fitou-o com os olhos remelentos, negros e profundos, e que por um instante fizeram o mago estremecer dos pés à cabeça.

 

—O que deseja a essa hora, minha senhora? Deve saber que ando muitíssimo ocupado prestando serviços à cidade.

 

E tentou fechar a porta, mas a velha o impediu usando o pé largo.

 

—A caixinha de prata, onde está? - Indagou ela, sem rodeios.

 

—E por que isso seria da sua conta, mulher? Foi traga a mim, por que sou o único em Linbel que pode desvendar seus segredos! - Disse o mago, inflando o peito para defender-se do olhar julgador. - Agora vá! Tenho revelações a fazer e talvez tenha até que impedir uma maldição, ou seja lá o que existe dentro daquela coisa! Xô! Volte para seu tear, ou procure outro mago para lhe fazer agulhas magicas!

 

E deu com a porta na cara da velhota.

 

Mais tarde, com o cair da noite, veio uma chuva fina e insistente, que só serviu para ampliar a angustia e frustação do mago, que por nada conseguia abrir a caixa. Dois dias inteiros haviam se passado e ele se quer sabia do que se tratava, para que servia, ou se, como de fato indagara o prefeito, representava algum perigo. Havia aprendido a propriedade de todos os elementos metálicos em seu treinamento e sabia que a prata, dentre todos, era um dos mais frágeis metais. Inútil para forjar armas, mas belíssimo para adornos e talheres devido ao seu brilho. Entretanto, aquela prata não era comum, não cedia ao fogo, à pressão, se quer era maleável como deveria de ser.

 

Derrotado e envergonhado, o mago debruçou-se sobre a mesa de trabalho.

 

Fugiria com a caixa pelo amanhecer, deixando para trás uma carta relatando a mentira elaborada mais cedo. Depois a deixaria em alguma Torre do Sol, onde os altos sacerdotes da Ordem a manteriam em segurança e, quiçá, descobririam como abri-la e de que se trata. Poderia se restabelecer em outra cidade bem distante dali, com outro nome e aparência. Possuía ouro o bastante para isso, acumulado em incontáveis serviços prestados ao prefeito. Deus haveria de perdoa-lo por essa única mentira em tantos anos.

 

Arrumava as malas para partir quando novamente bateram-lhe a porta. Seu coração saltou no peito. E se fosse o prefeito? Ou os outros magos da cidade? Estava perdido! Seu nome seria mesmo atirado a lama! Quem sabe ele mesmo não fosse jogado na praça pelos guardas para que todos vissem sua desgraça.

 

Tomou coragem apenas para afastar uma fresta na cortina e ver quem teria de enfrentar, vendo apenas uma jovem donzela envolta em roupas delicadas e esperando na chuva que a porta lhe fosse aberta.

 

—Em nome do Deus Sol, o que faz aqui a essa hora mocinha? - Indagou o mago, surpreso e aliviado. - Entre de uma vez, antes que se enxarque.

 

Sorrindo-lhe graciosamente a jovem retirou os sapatos enlameados e entrou. Seus cabelos eram castanhos e caiam numa cascata de cachos até a cintura. Não era tão jovem, quanto a primeira impressão lhe causara, mas certamente não havia ainda passado dos vinte. Tinha quadris largos, seios fartos e lábios carnudos. Um alivio aos cansados olhos do mago, que nos últimos dois dias ficara enclausurado quebrando a cabeça e tendo de lidar com velhas xeretas.

 

—Então, em que posso ajuda-la? - Disse ele, em tom grave e galante, ainda que não estivesse no momento com a melhor das aparências.

 

—Sinto-me doente de tanto trabalhar, meu bom mago. - Ela começou, em voz de mel e cílios tristes a tocar as maçãs do rosto. - Soube que o senhor é o melhor entre os melhores, por isso decidi procura-lo.

 

—E do que precisa, jovem donzela? Por acaso uma vassoura encantada?

 

—Uma chaleira, meu bom mago, é tudo que preciso. Assim não terei que queimar as mãos nunca mais ao retira-la do fogão.

 

Ela estendeu as mãos e mostrou-lhe as cicatrizes de queimadura feitas a ferro.

 

—Ora, é um pedido bem simples, nem ei de cobra-la por isso! - Afirmou o mago, virando-se para procurar em meio a bagunça de livros e utensílios mágicos uma chaleira comum que pudesse encantar. - Tenho certeza que tenho uma aqui em algum lugar. Certa vez uma jovenzinha como você me trouxe duas chaleiras e fez o mesmo pedido, mas uma única foi o bastante para suprir suas necessidades.

 

Enquanto o Mago cavava sua pilha de coisas inúteis praguejando baixinho contra a própria desorganização, a jovem atravessou a sala e caminhou até a mesa onde se encontrava a intocada caixinha de prata. Tocou o objeto com a ponta dos dedos e, aos poucos, entre se retorcer e dobrar sobre si mesmo várias vezes, a caixinha se transformou numa chaleira de prata.

 

—Acho que encontrei o que procurava, senhor mago. - Disse ela.

 

O Mago se virou abruptamente, dando de cara com a velha que mais cedo havia lhe batido a porta. Seus olhos se esbugalharam enquanto a compreensão esmigalhava sua mente e o restante de sua dignidade.

 

—Você! - Ele apontou um dedo acusatório.

 

—Muito prazer, me chamam de A Bruxa de Linbel.

 

—Eu sei muito bem quem você é! - Disse ele, ultrajado. - Como ousa entrar em minha casa disfarçada de donzela, sua... hunf...hunf...

 

Com um gesto dos dedos cumpridos e enrugados a Bruxa calou a boca do mago, que passou a murmurar coisas incompreensíveis pelos lábios selados.

 

—Isso, senhor mago, não é nenhum artefato raro, ou perigoso, como confabularam você e o prefeito. É apenas a chaleira encantada que perdi na floresta dias atrás. - Ela voltou a toca-la com as pontas dos dedos, imediatamente ela se transformou na compacta caixa de prata. - Acontece que é muito tímida e não gosta muito de homens como o senhor.

 

Mais alguns “Hunfs, hunfs” ultrajados vieram do mago, mas a Bruxa o ignorou.

 

—Agora se me permite, - Continuou – Vou leva-la de volta. Os deuses sabem como uma mulher da minha idade precisa de seu chá. E o senhor deveria se apressar em fazer as malas.

 

Com a chaleira de baixo do braço a bruxa caminhou até a porta, abrindo-a com a ponta da bengala. Antes de sair lançou lhe um sorriso, por um instante parecendo a jovem donzela e desaparecendo no instante seguinte. Quando ela se foi, o mago pode voltar a falar, mas não tinha palavras para o tamanho da humilhação que sentia. Fugiu da cidade no mesmo dia, levando apenas as roupas e o ouro, deixando até seus mais importantes livros para trás.

 

Alguns diziam que foi devorado pelo que quer que houvesse dentro da caixa. Outros que foi possuído por um demônio que lhe destituirá a boa aparência, por isso deixou a cidade. Qualquer que fosse a verdade, seus livros foram a leilão e outros magos os compraram, assim como o restante de utensílios encantados e sua casa. Ninguém nunca mais viu o Mago ou ouvir falar nele, apenas pelas histórias cada vez mais mirabolantes e engraçadas que se contava nas tavernas ao som de risadas.


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Notas finais do capítulo

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