Cinco Vidas escrita por Anna Carolina00


Capítulo 11
Welcome to Western - parte 3




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Mais um dia se encerrou em uma aurora violeta revelando uma imensidão branca radiante entre as nuvens. Enfim atingiram o topo da montanha, dali em diante desceriam entre pedras e relva até encontrarem as primeiras plantações de blueberries. Aquele seria o último local seguro antes da famigerada Floresta Fantasma.

Charlie perguntou há algumas noites passadas sobre a floresta que se aproximavam:

 

—Por que a chamam de Floresta Fantasma?

Nick lhe olhou  com pesar e respondeu:

—Dizem que os assassinos vêem suas vítimas, os traidores vêem seus amantes… É onde os fantasmas de seu passado voltam para lhe atormentar. Pode enlouquecer o mais são dos homens.

O moreno pensou na irmã, em toda a tragédia que foi envolvida para lhe proteger. Diferente dele, adotado para ser criado como um herdeiro de Lange, Victoria foi obrigada a trabalhar nas lavanderias para pagar pelo lugar que deveria chamar de lar. Ele não pôde salvá-la do destino miserável, mas a mais velha não mediu esforços para protegê-lo. Culpa e arrependimento lhe consumem enquanto não puder encontrá-la novamente e cumprir seu papel de irmão de fato.

— Não será um problema para mim. Os fantasmas do meu passado já me aguardam do outro lado da floresta.

 

Charlie já havia aprendido a lidar com o fogo e estava preparando um ensopado com o coelho caçado noite passada. De repente, Nick aparece com um sorriso no rosto vindo de onde os cavalos estavam amarrados.

—Oi!

—Oi…?

— Eu… Bem… É lua cheia. De novo. Nós meio que estamos há um mês viajando sem descanso e… Sobrevivemos bem a maior parte do tempo. Pensei que devíamos celebrar! - o loiro revelou em mãos um licor de mirtilo de aspecto azulado, quase cintilante a luz da lua - Eu estava guardando essa belezinha para uma ocasião especial, mas…Se amanhã já estaremos na floresta que pode nos matar, hoje é um bom dia para uma última bebida.

—É uma ideia maravilhosa, Nick!

Logo a dupla de homens robustos já estava tonteada enquanto riam sentados ao redor da fogueira. Charlie contou a história de quando aprendeu a cavalgar e havia, literalmente, sentado ao contrário no próprio cavalo, enquanto Nick mostrava cicatrizes na pele e revelava com um humor atenuante as várias tragédias nas quais se meteu no oeste.

—Porque se tornou um caçador de recompensas? Digo… Você parece odiar esse trabalho, mesmo que seja bom nele.

Nick estava sentado ao lado de Charlie e escorou a cabeça em seu ombro olhando para cima como se estivesse prestes a contar uma longa história:

—...Eu não devia ter mais de 5 anos quando a carroça da minha família foi atacada. Todos foram mortos, incluindo meu irmão mais velho, David. Por algum milagre, eu sobrevivi. Quando um grupo de abutres foi roubar o que sobrou da carroça abandonada, eles me acharam escondido num baú. Me adotaram. Me criaram como um caçador de recompensas, então eu não conhecia  outra forma de ser além de ser como eles.

—...Mas ainda bem que eles te encontraram, certo?

—Bem… Não sei o quanto isso foi bom. Eu sou grato a eles, claro. Mas as coisas que me ensinaram a fazer… Eles eram minha nova família afinal. E quando as recompensas diminuíram, menos pessoas a procurar, menos dinheiro… Nós estávamos no norte, próximo ao Canadá e uma escola católica ofereceu recompensas por crianças indígenas para serem educadas. Achei que enfim estaríamos fazendo algo honesto para variar… Mas passamos a caçar famílias inteiras de índios. Os adultos mortos valiam  um dinheiro razoável para a coroa britânica, as crianças valiam ainda mais para a Igreja, não importa o estado físico, contato que estivessem vivas .

Nick estava tremendo e ao ver isso, Charlie lhe segurou a mão. Uma breve troca de olhares foi o suficiente para lhe acalmar. O loiro continuou:

—... Havíamos conseguido uma dúzia de crianças que escoltávamos para Nossa Senhora de la Cruz. Os pequenos pareciam aterrorizados, tentavam fugir, mas é claro que um bando como nosso podia lidar com isso. Numa noite, quando foi a minha vez de vigiar as crianças, uma delas fugiu. Eu a vi com meus olhos… Ela pareceu tão feliz e esperançosa, eu não pude prendê-la de novo.  Foi assim que percebi que aquele trabalho não era para mim. 

—...O que você fez? 

—Soltei todas elas. Eu não podia levá-las de volta para a aldeia massacrada, mas podia dar a elas a chance de viver, como eu tive anos atrás. O engraçado é que… Eu vi meus pais mortos por flechas. Sabia que foram caras vermelhas que mataram minha família. Mas não podia continuar isso. Eu rezo para que elas estejam vivas, é o que alivia minha culpa por todos inocentes que eu já…

Não era necessário completar as palavras. Charlie sabia. Os fantasmas que atormentavam Nick lhe acompanhariam pelo resto de sua vida. Entretanto, ele merecia paz de espírito. Uma felicidade ingênua de quem vive um dia de cada vez. O moreno conseguia imaginá-lo em uma cabana modesta de frente pro mar, sentindo a brisa do oceano lhe acariciando o rosto. Nesse devaneio, por um segundo, Charlie imaginou que seria feliz estando ao seu lado, para ouvir suas histórias e lhe fazer companhia…Mas sua irmã…

—Não.

—O quê?

Nick lhe olhava com estranheza. Ali estava ele abrindo seu coração para ouvir uma resposta seca do amigo.

—Desculpe, o não não era para você, mas para mim… Faz sentido?

—...Não.

Ambos riram do diálogo bobo. Se alguém perguntasse para Nick, ele certamente gostaria da ideia de passar mais tempo com Charlie. O resto da vida, quem sabe. Para ouvir aquela risada todos os dias? Valia a pena qualquer desafio.

Pensando nisso, O loiro se concentrou em seus olhos. Um desejo quase irracional lhe levou a colocar a mão em seu ombro, como quem quer diminuir a distância entre seus corpos. De repente, um barulho nos arbustos lhe recobrou a atenção.

—Não se mecha…

Nick sussurrou enquanto pegava sua arma no coldre.

—Boa noite! - Parado!

As duas armas foram apontadas simultaneamente. O estranho parecia sorrir para Nick, como um velho amigo.

—Ainda se lembra das boas rotas… Pistoleiro- O gatilho foi puxado assim que o intruso deu um passo em direção a fogueira - Calma… É assim que trata os convidados? 

Num movimento rápido, sua arma foi entregue para Nick como um sinal de trégua. O loiro aceitou sua ação de bom grado, apesar de manter a arma em mãos.

—Não vai me apresentar sua companhia… Ou devo dizer, companheiro… Nunca imaginei que o pistoleiro Nelson seria chegado a esses… Prazeres noturnos.

Nick estava prestes a apontar a arma mais uma vez quando Charlie interveio segurando sua mão com delicadeza.

—Nick é meu… Amigo. Foi contratado para me levar em segurança pelo Oeste.

— Para onde?

—O quê?

—Para onde, moleque! O oeste não é uma indicação precisa como Nova York ou Nova Orleans. Para onde essa dupla peculiar pretende seguir?

Charlie olhou com receio para o mais velho, pedindo ajuda para não se comprometer como da última vez.

— Não importa para onde vamos, Harry. Isso é entre mim e meu contratante.

—Então foi para isso que largou nosso bando? Para ser segurança de mimados da europa que teimam em brincar de cowboy?! Que lástima!

Nosso bando? A história parecia ainda mais confusa para o moreno diante do provável caçador de recompensas vindo diretamente do passado. Vendo a tensão no ar, Nick decidiu abaixar a guarda em sinal de paz.

—Este é Harry Greene Vulture, velho amigo dos tempos de caçada- o outro loiro estendeu a mão amistosamente para Charlie que aceitou o aperto - Este é Charlie… Hope. Meu cliente. Escritor.

— Hope, hein? É um prazer conhecê-lo, Sr. Hope. Vá me desculpar pela intromissão, mas tenho alguns negócios não resolvidos com o velho pistoleiro aqui… Nick, sabe porquê me mandaram até você, certo?

—Porque sua morte não faria tanta falta, Harry. 

—O quê? Claro que não… Porque somos amigos! E como amigos, posso deixar que você pague pelo prejuízo. Se não quer trabalhar conosco? Tudo bem… Mas atrasar nossos negócios é muita irresponsabilidade. Tudo tem um preço, é claro.

—Minha cabeça não vale tanto assim… O que poderiam querer para cobrir o “prejuízo” ?

—Você sabe muito bem… Nick.

Harry olhou de esgueira para Charlie como quem apontava um segredo. Não era necessário mais nada para saber que o bando já sabia de Charlie e, principalmente, já sabia que ele era uma bússola para Tori Spring e seu generoso prêmio de 2 mil dólares.

—Charlie, fique no acampamento. Preciso ter uma conversa privada com meu velho amigo Harry.

Dizendo isso, ambos os loiros ajeitaram os chapéus como sinal de respeito e saíram mata a dentro. Ali, sozinho, restou a Charlie apenas o som distante de um riacho e os sussurros da noite.

 

Cada minuto parecia interminável. O medo inominável da morte tentava ganhar espaço em sua mente enquanto a confiança em seu amigo lhe mantinha são. Nick pretendia lhe ajudar, certo? Ele não estava enganando… Não estava trabalhando para seu antigo bando… Certo? As incertezas tentavam tomar controle  e como último recurso, o moreno requisitou a garrafa de licor em seus pés como quem fizesse uma prece pedindo por um pouco de paz a sua mente turbulenta. 

Três goles. Quatro.  Logo a garrafa inteira havia sido virada deixando um pouco do líquido azulado escorrer entre seus lábios. O sabor adocicado logo se misturou com a sensação turbulenta e nenhuma ideia negativa conseguia se sustentar.

 Enquanto girava olhando para a lua, o moreno apenas conseguia pensar em como Nick era um bom amigo, como seu abraço era reconfortante e como sentia falta de seus abraços naquele momento.

—Charlie?

Nick voltou sozinho para o acampamento. Havia afastado  Harry…?Ou pior… Ignorando esses pensamentos, Charlie apenas continuava se movendo como um equilibrista e deixando seu corpo cair sobre o loiro.

—Charlie!

—Hey… Não precisa gritar… Gosto quando você… Fala baixinho…Me deixa ouvir sua voz sussurrando… Ni…Cho…Las…

Vendo a garrafa vazia no chão foi fácil encaixar as peças e entender o que aconteceu.

—Você precisa de água, Charlie… E precisa se deitar…

—NÃO QUERO DEITAR! Eu quero… Quero dançar com você, Nick.

Sem esperar resposta, o moreno puxou as mãos do mais velho para que se posicionasse ao redor de sua cintura enquanto se segurava em seus ombros. Os olhos inocentes e entorpecidos pareciam fofos naquela situação e por um momento, Nick se deixou levar por aquela brincadeira e aceitou dar alguns passos de balada. Sentir o corpo de Charlie colado ao seu era bom. Seu cheiro, seu calor. Não poderia resistir a alguns momentos de paz sabendo toda a turbulência que os aguardava no dia seguinte.

Entretanto, não estavam no dia seguinte, mas sim no agora. E agora tudo que estava ao seu alcance era poder se mover enquanto o rosto de Charlie se encaixava perfeitamente em seu ombro.

Sem saber quanto tempo passou, Charlie deu um passo para trás olhando com espanto. Em seguida, levou a mão à boca, mas já era tarde demais. Toda a bebida foi regurgitada em Nick deixando o loiro sujo com uma gigantesca mancha azul.

—Nick! Desculpe, eu… Desculpe.

—Tudo bem, Charlie… Você não é o primeiro bêbado que tenho que lidar.

A camiseta suja logo foi retirada revelando um corpo cheio, mas definido pelo trabalho árduo. Charlie não resistiu em observar com apreço os detalhes de Nick, assim como o loiro gostou da atenção. Não podia negar que ficava encabulado pelo olhar maravilhado  sobre si.

—Precisamos nos lavar.

Guiando o moreno pelas raízes no chão para não tropeçar, alcançaram o detentor do som da água corrente que ouviram outrora. Um riacho que acumulava água suficiente para se lavarem e descia montanha abaixo. Aquele seria o caminho de  ambos no dia seguinte.

Charlie teimava em reclamar, mas aceitou  entrar na água retirando parte de suas roupas. Nick tremia enquanto desafiava seu cinto. Não era a primeira vez que fazia isso por um amigo… Por que agora sentia um misto de ansiedade, vergonha e desejo? Um misto de sentimentos errados, segundo suas crenças…Mas ao mesmo tempo, eram sentimentos inevitáveis quando se tratava do jovem Spring.

—Nick… Não me deixe afogar, por favor…

—Confie em mim, Charlie.

Segurando o moreno, entraram na água para se lavar. A água cristalina era iluminada pela lua e refletia na pele de ambos. Uma última peça de roupa lhes cobria a pele, mas a silhueta era suficiente para deixar o loiro com respiração pesada.

—Nick! - Num pulo, o moreno se jogou em seus braços- Algo… Tocou minha perna…

—Foi um peixe, Charlie. Lua cheia, lembra?

Um pequeno filme passou pelos olhos do moreno, relembrando desde o dia em que se conheceram até a situação que se encontravam. No limiar de sua sanidade, Charlie olhou nos olhos de seu companheiro uma última vez e torceu para que não tivesse entendido os sinais erroneamente, pois o que faria em seguida poderia acabar com todo o laço que criaram até ali.

Charlie beijou Nick. O moreno aproveitou o momento para explorar os carinhos que poderia fazer em seus cabelos molhados e deixou ser levado pelo sabor doce daquele beijo. Por sorte Nick o correspondeu não resistindo a apertar sua pele gelada, como quem  deseja deixar uma marca de seu desejo.

Abrindo os olhos com as testas coladas, o sorriso espontâneo em seus rostos revelavam como o desejo era correspondido por ambos. 

Logo as peças de roupas foram carregadas de volta ao acampamento e não se deram o trabalho de apagar a fogueira, apenas deixaram seu calor os aquecer enquanto se mantinham abraçados sob o mesmo cobertor.

E assim, vivendo um sonho acordado, dormiram juntos.

 

* * *

 

Charlie acordou entusiasmado como nunca antes. Mesmo que parte de si exigisse sentir apenas raiva e culpa enquanto não encontrasse sua irmã, outra parte não podia evitar estar transbordando felicidade. Nick era alguém com quem poderia ser feliz se lhe fosse dada uma chance.

Assim que acordou, notou a ausência do loiro lhe abraçando como na noite passada. Todo acampamento estava desmontado, como se alguém estivesse prestes a desaparecer daquele lugar. 

Sozinho.

Mais uma vez.

Isso o fez ventilar e sentir um peso tremendo sobre si próprio.

—Nick?! Nick! 

Silêncio.

Sob sua cabeça, mais um papel escrito e medo de repetir o evento traumático que viveram com Ben Hope lhe fazia tremer por completo.

Quando o abriu, se tratava de um pedaço de página do livro que Charlie havia lido para Nicholas.

 

“[...]A fala foi cortada pela chegada inesperada do imponente Capitão subindo as escadas para o convés vindo de Deus sabe onde. O loiro fez uma cena teatral dizendo estar impressionado com o famigerado co-capitão e empolgado com a ideia de usarem o tritão para capturar mais sereias. ”

A cena se tratava de um plano, é claro. O capitão fingiu estar interessado na captura de sereias para poder libertar o tritão. Fazendo um paralelo, Charlie acreditava que Nick estava tentando lhe salvar com aquele sumiço.  Precisava acreditar…Depois de todo o tempo juntos, já não acreditava que poderia enfrentar tudo isso sem o apoio de seu cowboy.

Mantendo a esperança, vestiu o par de vestes que ganhara de Nick em seu primeiro dia, guardou os próprios pertences e seguiu em direção ao riacho abaixo. Chegou a hora de descobrir se todo seu aprendizado havia enfim lhe transformado em um homem do oeste.

* * *

Enquanto isso, em um acampamento próximo ao de Charlie, um grupo de caçadores de recompensas recebiam a presença de um velho amigo:

—Bom vê-lo, companheiro.

—O pistoleiro vive!

—Cheguei a duvidar a duvidar de sua lealdade, meu caro, quando cortou fora a língua do Hopeless e o deixou inconsciente no deserto.

—Por que mandaram ele afinal de contas? Eu avisei que o trabalho da Tori Spring era meu!

—Tori? - Harry questionou.

—É como... Hã...Não importa. Confiem em mim. 2 mil dólares e nunca mais me verão por essas terras.

—Você vai acabar se arrependendo, pistoleiro. No fundo você sabe que é um de nós. Uma vez caçador, sempre caçador. -  O mais velho do grupo, Euros Lyn, lhe olhou nos olhos com seriedade - Tem certeza que ele vai conseguir passar pela Floresta Fantasma sozinho? Nem você atravessou aquele lugar.

—Eu confio plenamente em Charlie Spring - quase se entregando em um sorriso bobo, Nick assumiu uma expressão severa - A irmã certamente lhe deixou pistas no caminho na floresta. Só precisamos segui-lo e tudo ficará bem. E lembrem-se, o jovem Spring é meu. Quando chegar a hora, somente eu poderei eliminá-lo.

O resto do bando bradava em satisfação de ver o pistoleiro em pessoa marcando suas vítimas. Nicholas Nelson ainda era a lenda da qual mesmo os mais novos do bando já ouviram falar... Ao menos, era isso que pensavam.

 


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