“So sad, so sad. Your Highness, look at yourself, look what they’ve done to you.” TGCF, capítulo 187.

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Track 2: Poles Apart

Did you know

It was all going to go, so wrong for you?

And did you see

It was all going to be so right for me?

Why did we tell you then

You were always the Golden boy then?

And that you’d never lose that light in your eyes?

“Xie Lian!”

A voz que o chamava pareceu soar distante, ainda que a pessoa em questão estivesse bem na sua frente. Xie Lian ergueu lentamente os olhos do livro aberto em cima de sua carteira, e piscou algumas vezes antes de focar sua visão no garoto que estava parado diante dele.

Ele vestia um moletom verde menta e calças brancas, e tinha uma expressão amigável, o rosto estampado com um sorriso largo. Seu porte físico era delicado, um pouco andrógino, e ele deveria ter uma altura similar a de Xie Lian. Em geral, a partir de uma primeira avaliação, sua aparência era acolhedora e parecia indicar alguém comunicativo e de fácil interação.

Xie Lian não queria interagir. Desde o instante que ele pisou na escola nova, tomou todo o cuidado possível para não chamar atenção, se movendo apenas o estritamente necessário. Ele fez questão de vestir roupas simples que passassem despercebidas pela multidão de adolescentes: uma camiseta de algodão coberta por um suéter bege bastante largo, calças de moletom brancas e um tênis velho. O único acessório que ele usava era uma gargantilha larga de veludo preto no pescoço.

Sem trocar palavras com ninguém, Xie Lian ocupou seu assento designado na sala de aula, colocou fones de ouvido e abriu um livro. Seu objetivo principal era passar despercebido, evitando assim boatos indesejados.

Porém, sua tentativa de se isolar não era apenas por querer se manter anônimo.

Desde muito jovem, Xie Lian tinha aptidão para identificar até as menores mudanças de emoção nas expressões faciais das pessoas. Em especial, ele conseguia captar aquelas emoções que não deveriam aparecer, aquelas que tentavam ser ocultadas. Tal habilidade certamente fora refinada por seu ambiente familiar, que exigia excessiva atenção a flutuações de humores para evitar desdobramentos desagradáveis, e por seu ambiente social, que valorizava as pessoas por se portarem apropriadamente — isto é, não tocarem em um dos múltiplos assuntos que gerassem algum mínimo mal-estar no grupo.

Durante a infância, ele foi muitas vezes elogiado por sua atenção aos detalhes e sua capacidade de deixar todos à sua volta confortáveis. Seu carisma era tamanho que todas as crianças de sua idade queriam se aproximar, e todos os adultos o cobriam louvores e expectativas. No entanto, reconhecer as mais sutis expressões faciais não o permitia entender qual fenômeno psicológico interno estava por trás delas, nem quais raciocínios ou convenções sociais as influenciavam. Por mais que fosse uma habilidade útil, ela havia se provado também uma fonte de inúmeras amarguras. Conforme crescia, ele aprendeu que ser capaz de observar as manifestações externas das emoções das pessoas não significava ser capaz de entende-las.

Ele tinha dezessete anos e estava exausto. Fazia muito tempo que Xie Lian não se sentia confortável perto de outras pessoas. Havia sempre uma sensação basal de perigo, uma ansiedade que aflorava como eletricidade por baixo de sua pele. Sua habilidade prévia em agradar todos à sua volta parecia ter sido substituída por um talento para escolher as piores palavras nos momentos mais delicados. Quanto mais ele procurava analisar e avaliar as expressões alheias, em uma tentativa desesperada de remediar conflitos prévios e não gerar novos desconfortos, mais ele sentia o peso excruciante de suas falhas.

Era sufocante.

Em algum momento, ele não sabia bem quando, algo nele começou a mudar. Sua antiga atenção aos arredores foi substituída por uma inclinação a se desligar de seus entornos, e uma abastada concentração para efetivamente conseguir. Em espaços ocupados por muitas pessoas, era mais fácil. Assim, no instante em que ele pisou na escola, sua consciência começou a se afastar dos sons que o cercavam, até eles se tornarem não mais do que um eco abafado e muito distante. Nesses momentos, Xie Lian se sentia submerso por uma fina camada de seda, que o tornava transparente para todos do lado de fora.

No entanto, era mais difícil manter esse estado de transe confortável quando o abordavam diretamente. E era exatamente isso que o garoto à sua frente fazia agora.

“Xie Lian, não é? Nosso professor me pediu para te mostrar a escola. Eu sou Shi Qingxuan.”

O garoto sorridente estendeu a mão, e ele instintivamente a apertou. Quando os seus dedos se tocaram, Xie Lian sentiu um leve desconforto percorrer seu braço.

O sorriso de Shi Qingxuan se alargou.

“Oh, olá.” Xie Lian respondeu, tímido. “Obrigado pela oferta atenciosa, mas... eu não quero incomodá-lo.”

“Não é incômodo nenhum!” Sua empolgação parecia sincera, “Vamos, vamos! Não temos muito tempo de intervalo de almoço.”

Shi Qingxuan o agarrou pelo braço. Xie Lian deixou escapar um pequeno suspiro, e, percebendo que não conseguiria escapar daquela situação, se deixou levar pelo garoto animado.

“O que está achando da nova escola?”, perguntou ele enquanto guiava Xie Lian para fora da sala de aula.

“Por enquanto tudo bem, eu acho.” Xie Lian respondeu com honestidade. Ele não tinha passado tempo suficiente ali para formar muitas opiniões. “O professor de história parece simpático.”

“Não se engane, ele adora dar provas gigantescas.”

Os dois caminharam pelos corredores do colégio. Shi Qingxuan falava muito, descrevendo empolgado cada um dos lugares que eles passavam, assim como os professores responsáveis por cada matéria. Sua personalidade era como o vento: leve, espontânea, desprendida. Além de ser muito amigável, ele parecia ser uma figura popular por ali. Os dois foram interrompidos diversas vezes, na maioria delas por garotas que queriam trocar palavras com Shi Qingxuan. Elas lançavam olhares curiosos para Xie Lian, e cada vez que isso acontecia ele sentia sua ansiedade disparar nas alturas. Logo ele percebeu que se continuasse andando com aquele garoto, com certeza chamaria atenções indesejadas.

Shi Qingxuan não parecia preocupado com a enorme quantidade de garotas o cercando. Ele sorria, gesticulava e fazia piadas, tratando todas com excessiva intimidade. No entanto, todas as vezes que elas tentaram perguntar quem era a pessoa que o acompanhava, ele habilmente trocava de assunto e arrastava Xie Lian para longe delas. Talvez ele tivesse percebido que Xie Lian não queria chamar atenção? Se fosse esse o caso, Shi Qingxuan era uma pessoa muito muito atenciosa.

Mas... será que ele já o reconhecera? A ideia veio acompanhada com um calafrio.

Xie Lian foi guiado pelas múltiplas salas de aula da escola, passando pelos laboratórios, sala de música e de artes, quadras, até os dois chegarem no refeitório. Eles compraram sanduíches com uma aparência medíocre, e Shi Qingxuan anunciou que as mesas do refeitório eram desconfortáveis demais e eles deveriam comer no pátio. Xie Lian assentiu, pensando que o pátio provavelmente teria menos pessoas, e assim haveria menos chances das fãs de Shi Qingxuan os emboscarem.

Os dois pisaram fora do prédio, e Xie Lian passou os olhos pelo espaço aberto. O piso era de concreto velho, com trincas aqui e ali, e havia bancos também de concreto espalhados nas laterais do pátio. De um lado ficava o prédio da escola, e de outro um jardim malcuidado, preenchido principalmente por grama e árvores, e apenas alguns arbustos de camélias para decoração. Havia alunos sentados no gramado, comendo e rindo, atirando coisas uns nos outros, jogando baralho e copiando o dever de casa às pressas, certamente para a aula que estava por vir após o intervalo. A quantidade de pessoas não era pequena, mas ainda assim, era bem menos cheio e apertado do que o refeitório.

Os olhos de Xie Lian pararam em uma figura sentada em um dos bancos de concreto, e ele sentiu as batidas do seu coração pausarem por um instante.

O garoto estava sentado sozinho, olhando distraidamente para o céu, enquanto girava um pirulito na boca. Ele usava uma calça jeans preta rasgada com correntes na cintura, uma camiseta vermelha e um casaco de couro aberto por cima. Seu cabelo, solto em suas costas, era comprido e preto como as asas de corvos. Havia uma pequena mecha trançada na frente com uma fita vermelha, e diversos piercings em suas orelhas. Seu rosto era atraente, com traços afiados e uma expressão rebelde.

San Lang.

Sua expressão era diferente da que Xie Lian havia visto no dia anterior. Ele parecia menos solitário, e mais... aborrecido. Talvez entediado? Havia também algum sinal de desdém, mas sua postura parecia despreocupada, como se ele estivesse acima do que quer que estivesse acontecendo em seus entornos.

Shi Qingxuan percebeu que Xie Lian havia parado para observar alguma coisa.

“O que você está olhando?”

 Seus olhos rapidamente encontraram a direção para a qual Xie Lian olhava. Ele deixou escapar um assobio, antes de começar a falar novamente sem esperar pela resposta:

“Hua Cheng? A-Lian, eu não sei por que ele chamou sua atenção, mas você deveria manter a distância.”

A-Lian? A intimidade de tratamento o surpreendeu e tirou do foco. Xie Lian precisou piscar algumas vezes antes de entender o que ele tinha dito.

“Hua Cheng?”, ele perguntou, curioso.

“Sim, aquele cara ali.” Ele gesticulou na direção de San Lang,  “Ele é encrenca, eu te garanto.” Shi Qingxuan respondeu com ares de especialista, como quem conhece todas as pessoas da escola. Provavelmente conhecia mesmo.

Ah, então o nome dele era Hua Cheng. Xie Lian não pôde deixar de pensar que combinava com ele.

“Por que?” Ele franziu as sobrancelhas, tentando imaginar qual seria a origem da má fama daquele jovem com ares de delinquente. Sua aparência já dava alguma pista.

“Há todo tipo de boato, a maioria com certeza falsa. Por exemplo, que ele vende drogas, que anda com uma faca na cintura, que a mãe dele era uma prostituta, que ele já mandou várias pessoas para o hospital, e assim por diante. Sabe como essas coisas ficam gigantes conforme circulam, né? Mas alguns são indiscutivelmente verdade. Ele é uma pessoa antissocial e agressiva, propensa a ofender os outros, sem o menor respeito por autoridades, e eu já o vi envolvido em diversas brigas violentas desde criança.”

Xie Lian sentiu sua expressão se fechar ainda mais. San Lang não lhe parecia nada disso. Xie Lian se considerava bastante competente em avaliar pessoas. O jovem com quem ele havia conversado no dia anterior era agradável, atencioso, inteligente e interessante. Ele tinha um ar brincalhão um pouco malicioso, mas afora isso, Xie Lian o achou genuinamente gentil e cativante.

Mas de que adiantaria dizer isso a Shi Qingxuan? Parte de sua conversa com San Lang lhe veio à cabeça:

“Você está tentando ganhar elogios?”

“Não, de forma alguma. Só é raro encontrar alguém que aprecie minha companhia.”

“Não vejo como isso seria possível.”

“Gege se surpreenderia.”

Será que era a isso que San Lang se referia?

Shi Qingxuan continuou:

“Ele não gosta de interagir com pessoas, então desde que você mantenha distância, não deve haver nenhum problema. Eu nunca o vi começar uma briga, mas as reações dele sempre são muito mais violentas do que as provocações. Até os professores têm medo dele. Muito assustador.”

Quando Shi Qingxuan terminou sua frase, algum adolescente gritou um palavrão no pátio. O som foi alto e ecoou por todos os lados, fazendo com que as outras pessoas dessem risadinhas e procurassem a origem do barulho. Hua Cheng foi arrancado de sua contemplação distraída do céu. Ele levantou as sobrancelhas e olhou em volta com uma expressão aborrecida, até sua visão pousar na direção de Shi Qingxuan e Xie Lian.

Seus olhos encontraram os de Xie Lian, e um sorriso malandro se alargou em seu rosto. Ele segurou o palito do pirulito que estava em sua boca, mordeu o doce e atirou o palito para o lado enquanto se levantava e andava a passos largos na direção deles.

Xie Lian conseguiu perceber que a postura de Shi Qingxuan enrijeceu, e ouviu um som baixo escapar dos lábios do garoto: “Ai caralho.”

Hua Cheng os alcançou em poucos segundos. Ele sorriu de forma mais calorosa, e Xie Lian se viu retribuindo o sorriso.

“Gege.”, disse ele com sua voz grave e atraente.

A boca de Shi Qingxuan despencou em uma expressão estúpida. Todas as conversas do pátio pareceram cessar subitamente, e olhares assustados foram direcionados aos dois.

“San Lang.” Xie Lian respondeu, sentindo-se à vontade pela primeira vez no dia, sem perceber que todos ao seu redor o encaravam em choque. “Então nós estamos no mesmo colégio.”

“Bem, é o único colégio da cidade.” Hua Cheng respondeu, levantando as sobrancelhas.

Xie Lian sentiu seu rosto corar e se lembrou da dificuldade de olhar diretamente para o rosto de Hua Cheng.

“Oh. É claro, como eu sou bobo.”

“De forma alguma. Gege não tinha como saber.” Hua Cheng respondeu de forma afetuosa. Xie Lian sorriu de novo, se sentindo ao mesmo tempo com vergonha e contente. Quer dizer que ele poderia ver San Lang com frequência?

“Gege, eu esqueci de te dar algo ontem.”

A voz de Hua Cheng o tirou de seu devaneio. Xie Lian o olhou confuso.

“O que?”

“Me dê sua mão.”

Hua Cheng estendeu a própria mão em direção a Xie Lian. Os dois estavam muito próximos, de modo que, se ele esticasse um pouco o braço, tocaria no peito de Xie Lian. No entanto, sua mão manteve uma distância respeitosa, esperando pacientemente.

Xie Lian franziu as sobrancelhas, perplexo. Ele estendeu a própria mão, e Hua Cheng a segurou com enorme delicadeza, erguendo-a para perto de seu queixo, quase como se... fosse beijá-la. Ele encarou a mão de Xie Lian por alguns segundos, seus olhos voltados para baixo destacando os longos cílios pretos, sua expressão malandra transbordando de seu sorriso.

Xie Lian sentiu como se estivesse prestes a entrar em combustão espontânea.

Por fim, Hua Cheng tirou uma caneta de seu bolso. Com gestos rápidos, ele escreveu algo nas costas da mão de Xie Lian, e depois virou sua palma para cima com leveza, colocando um pirulito no centro dela e fechando delicadamente os dedos de Xie Lian em torno do doce. Ele deu um aperto suave e afetuoso em seu punho fechado, olhando diretamente nos olhos de Xie Lian, antes de soltar sua mão.

Xie Lian olhou para o que Hua Cheng havia escrito, e viu um número de telefone anotado em uma caligrafia horrenda.

“Gege pode me ligar quando quiser.” Disse ele, voltando seu olhar novamente para o rosto de Xie Lian. Seus dois olhos eram muito brilhantes e expressivos. “Eu vou sempre atender. Se ainda quiser marcar nosso passeio, é só chamar.”

“Ah, San Lang, o-obrigado.” Xie Lian conseguiu responder, ainda tentando se recuperar do constrangimento. Ele precisou desviar os olhos. “Eu... vou ligar.”

O sorriso de Hua Cheng se alargou, e só então ele pareceu reparar em Shi Qingxuan, que ainda estava parado boquiaberto ao lado dois, com os olhos arregalados e a postura congelada.

Seu sorriso afetuoso se distorceu em um sorriso mal-intencionado, e ele dirigiu a palavra à Xie Lian enquanto encarava Shi Qingxuan.

“Gege, se alguém o estiver incomodando, não hesite em me dizer. Eu posso resolver o problema.”

Xie Lian pensou ter ouvido um grunhido apavorado escapar do fundo da garganta de Shi Qingxuan.

“Não San Lang, ninguém está me incomodando. Está tudo bem.” Disse ele enquanto erguia as mãos e fazia um gesto apaziguador. “Qingxuan está me mostrando a escola, ele foi muito gentil.”

“É mesmo?”, perguntou San Lang, enquanto erguia as sobrancelhas e avaliava Shi Qingxuan com uma expressão desdenhosa. “Ok. Não vou atrapalhar então. Nos vemos por aí?”

Xie Lian assentiu, e Hua Cheng sorriu para ele uma última vez antes de se virar e partir para dentro do prédio.

Apenas quando ele desapareceu, a postura de Shi Qingxuan pareceu relaxar um pouco.

“O que diabos eu acabei de ver?” ele disse, ainda com uma expressão de choque.

Shi Qingxuan o interrogava com os olhos, aguardando uma explicação para a cena que acabara de se desdobrar. Xie Lian precisou respirar fundo e esfregar sua têmpora algumas vezes antes de conseguir responder.

“Eu o conheci ontem. Nós... somos meio que vizinhos?” Isso não era exatamente verdade, mas Xie Lian não queria dar detalhes sobre a interação dos dois no dia anterior, de modo que essa foi a primeira desculpa que lhe veio à cabeça. “Ele foi simpático e se ofereceu para me mostrar a cidade.”

“Hua Cheng, simpático?” Shi Qingxuan parecia incrédulo, como se tivesse acabado de ouvir alguém afirmar seriamente que a terra era plana.

“Isso é tão estranho assim?”, Xie Lian questionou.

“Tá brincando?”, seu rosto estava coberto de incredulidade, “Xie Lian, você acabou de ser promovido para a pessoa mais insanamente extraordinária que eu já conheci.”

“Não diga isso.” A voz de Xie Lian estava genuinamente aflita, e ele sequer foi capaz de disfarçar. Preocupado, ele murmurou num tom baixo, apenas para Shi Qingxuan ouvir: “Eu não quero chamar atenção.”

Shi Qingxuan não parecia fazer questão de aliviar sua ansiedade.

“Tarde demais. O delinquente mais infame da cidade acabou de escrever o telefone dele na sua mão e te chamar para sair na frente de metade da escola. Isso vai se espalhar mais rápido do que um incêndio em um tanque de gasolina.”

Xie Lian não sabia se ria ou chorava. Havia muita ambiguidade na expressão “chamar para sair”, e ele não queria saber o que Shi Qingxuan quis dizer. Precisou se contentar em mover a cabeça em um gesto negativo enquanto suspirava. Então, ele olhou a sua volta, e percebeu que muitos dos alunos o encaravam com suspeita enquanto cochichavam uns para os outros.

Oh não.

Mas Shi Qingxuan não queria mudar de assunto.

“Tem certeza que vocês se conheceram ontem?”, ele perguntou, enquanto puxava Xie Lian para um dos bancos.

“Sim.” Xie Lian respondeu, deixando outro suspiro escapar de seus lábios. Pelo menos isso era verdade. “Por que?”

Shi Qingxuan se sentou no banco de concreto, abriu a embalagem do sanduíche e abocanhou um pedaço enorme, antes de responder com a boca cheia:

“Vocês pareciam tão... próximos?”

Pareciam?

“Nós nos demos bem, eu acho?”, foi o que Xie Lian conseguiu articular.

Shi Qingxuan abocanhou mais dois pedaços de pão com entusiasmo.

“Hua Cheng te chamou de ‘gege’. Hua Cheng. Parece que eu fui atirado à força em um universo paralelo.”

Parece que o plano de Xie Lian de passar despercebido acabara de falhar miseravelmente.

“Você vai mesmo ligar para ele?”

“Sim.” Xie Lian respondeu sem pensar duas vezes. Sem dúvidas ele não queria atrair mais atenção para si, mas sua vontade de conversar com San Lang era maior. Ele se surpreendeu consigo mesmo quando percebeu que estava pensando nisso.

“Insano.”, murmurou Shi Qingxuan enquanto enfiava o último pedaço de pão na boca e abria a outra embalagem. “Por favor me deixe ser seu amigo.”

Xie Lian olhou para seu próprio sanduíche, ainda fechado, e percebeu que não tinha fome. Ele empurrou a embalagem para o lado, pegou o pirulito que Hua Cheng lhe havia dado, e o colocou na boca enquanto ouvia em silêncio outras exclamações admiradas saindo dos lábios de Shi Qingxuan.

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Quando os dois retornaram para a sala de aula, a primeira coisa que Xie Lian fez ao sentar-se em sua carteira foi tirar o celular do bolso e anotar o número de Hua Cheng em seus contatos. A tarefa foi difícil, porque a caligrafia de Hua Cheng era realmente hedionda. Xie Lian demorou para conseguir identificar vários dos números escritos na sua mão.

Como Shi Qingxuan havia previsto, muitos alunos o encararam com expressões estranhas, com certeza já informados do episódio ocorrido no intervalo. Mas eles não tiveram tempo para fazer comentários, porque o professor de matemática entrou na sala e começou a anotar informações na lousa enquanto falava em voz alta para os alunos se calarem.

Xie Lian desbloqueou a tela de seu celular por baixo da mesa e abriu o chat com o número de Hua Cheng.

Xie Lian, 13h01

San Lang, olá

San Lang, 13h02

Olá,  Gege

A foto de contato que aparecia no chat não mostrava Hua Cheng. Xie Lian ampliou a imagem e tentou identificar o que havia ali. A foto parecia ser de uma paisagem e tinha um ângulo estranho, de cima para baixo e um pouco tombada para o lado. No fundo era possível ver uma mistura de cores marrom, laranja e vermelho, e Xie Lian percebeu que aquelas pareciam ser as árvores de bordo do parque em frente ao seu bairro. Então, a corrente que cortava parte da foto, terminando em um minúsculo pedaço marrom no canto da tela... Seria o balanço onde os dois se sentaram no dia anterior?

Xie Lian sorriu e guardou o telefone para evitar que o professor o visse. Agora Hua Cheng também tinha seu contato. Satisfeito, ele abriu seu caderno e começou a anotar as equações que estavam na lousa.

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A sensação de euforia resultante do encontro com Hua Cheng desapareceu de Xie Lian conforme as aulas do período da tarde avançavam. A consciência de que as pessoas da turma o estavam observando fez com que sua ansiedade tomasse conta novamente, e ele tentou se encolher e respirar o mais baixo possível para tentar ocultar sua presença.

Quando as aulas finalmente acabaram, Xie Lian tratou de se retirar rapidamente da sala de aula, sem dar tempo de ninguém pensar em o abordar. Ao chegar na frente da escola, percebeu que um carro o estava esperando. Com um suspiro, ele abriu a porta do banco de passageiro e tentou colocar uma expressão menos exausta no rosto.

“Shizun, você não precisava me buscar.”, disse ele após fechar a porta do carro. “Eu podia voltar sozinho.”

“Eu queria ver como você estava.”, Mei Nianqing respondeu. Seu rosto era amistoso, mas havia algum receio em seu tom de voz que não passou despercebido para Xie Lian. Assim como Xie Lian estava ansioso com a mudança de ambiente, Mei Nianqing também devia estar tenso. “Como foi o seu primeiro dia?”

Ele lançou um olhar de soslaio a Xie Lian, como quem tenta avaliar que tipo de expressão ele estava fazendo, sem dúvidas tentando extrair aquelas informações que não seriam ditas.

“Tudo bem.” Xie Lian respondeu, procurando parecer sossegado. Ele não queria preocupar seu tutor. “Um dos garotos foi gentil e me mostrou o colégio.”

“Bom. Que bom.”

Xie Lian não sabia se tinha o convencido, mas também não tinha mais energia para tentar parecer animado. Até porque, empolgação demais decerto soaria falsa.

Mei Nianqing dirigiu até a casa deles e deixou Xie Lian na porta, dizendo que precisava voltar ao trabalho e retornaria depois das dezenove horas. Xie Lian se despediu, e adentrou na casa que se encontrava no mais completo silêncio.

Durante o dia, cercado por pessoas, ele sentia uma necessidade desesperada de se isolar em um lugar silencioso. No entanto, assim que chegou na casa vazia e quieta, a sensação de sufocamento retornou.

Não havia possibilidade de descanso?

Hey you

Did you ever realize what you’d become?

And did you see

That it wasn’t only me you were running from?

Did you know all the time but it

Never bothered you anyway?

Leading the blind while I stared out the steel in your eyes

Xie Lian sempre foi uma criança talentosa. Desde habilidades artísticas, inteligência acadêmica e até destreza física, ele sempre se destacou em tudo o que fazia. Todos os seus professores o adoravam e não cansavam de elogiá-lo, todos os seus colegas o admiravam e o cobriam de louvores. E Xie Lian não era apenas talentoso, ele também era esforçado. Sempre que ele tentava algo novo, se dedicava de coração a aprimorar suas habilidades, ressaltando ainda mais suas competências.

Como ele parecia exceder os outros em tudo o que tentava fazer, seu tempo era quase permanentemente preenchido por atividades extracurriculares. Aulas de canto, violão, piano e teatro, treinos de artes marciais, grupos de estudos, tutorias, aulas sobre geopolítica, quase todos os momentos do seu dia eram ocupados por algum compromisso. Xie Lian parecia nunca se cansar daquilo tudo, e não via problemas em não ter quase nenhum horário vago para o lazer. De certa forma, tudo o que ele fazia era divertido, porque ele sentia algum prazer naquelas atividades.

Retornar para uma casa vazia e deserta após a escola ressaltava tudo o que ele havia perdido.

The rain fell slow

Down on all the roofs of uncertainty

I thought of you

And the years and all the sadness

Fell away from me

Ele tirou os sapatos, se deslocou até seu quarto, pendurou sua mochila em um gancho na parede e olho para o espaço pequeno e organizado. Havia um armário, alguns livros em cima da escrivaninha, uma cama ao lado da janela, e um violão, dentro de uma capa, encostado na parede ao lado do criado mudo. Não tinha nada ali que lhe atraísse o interesse.

Quando foi que tudo havia começado a ruir dessa forma? Ele não conseguia se lembrar, só tinha a percepção de que um dia, ao acordar, todo seu espírito tinha se esvaído e não restava nenhuma disposição para ocupar seu tempo com as atividades outrora prazerosas.

O silêncio era como um companheiro nefasto que o informava de seu decaimento.

And did you know?

I never thouth that you’d lose that light in your eyes

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Xie Lian se deitou na cama sem tirar as roupas que havia usado durante o dia e fechou os olhos. Em algum momento, ele adormeceu.

Quando ele acordou, o quarto estava escuro. Uma brisa gelada entrava pela janela aberta. Seu sono havia sido interrompido pela vibração de seu celular, que estava enfiado embaixo do travesseiro. Xie Lian tateou em busca do telefone, sem ter ideia de quanto tempo havia dormido e que horas eram.

Ele encontrou o celular e o trouxe para perto do rosto. A tela acendeu e a luminosidade perfurou seus olhos como acetona penetrando em uma ferida aberta. Xie Lian atirou o celular para o lado enquanto uma arfada de dor escapava de sua boca.

 Após um tempo esfregando os olhos, acompanhado de resmungos mal-humorados, ele enfim conseguiu ler a notificação na tela.

San Lang, 18h23

Gege, quer dar uma volta?

Xie Lian se levantou tão rápido da cama que sua cabeça imediatamente começou a girar. Ele precisou se recompor antes de responder a mensagem de Hua Cheng com o coração disparado.

Xie Lian, 18h27

Sim

Onde te encontro?

San Lang, 18h27

Gege está em casa?

Espere aí, vou te buscar