Noite de sábado escrita por Haru


Capítulo 1
Capítulo 1




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Noite de sábado

Arashi retornava para a sua nova casa, depois de terminar sua visita ao antigo vilarejo onde morou durante seus seis anos de vida. Cinco meses foram embora desde o massacre que vitimou as milhares de pessoas que moravam lá. Ele e seus irmãos foram, provavelmente, os únicos sobreviventes. Tudo continuava destruído. Ninguém colocou nem tirou nada do lugar. 

 O sentimento em seu coração era dúbio. Por um lado, a imensa tristeza de rever o local em que seus pais morreram, pelas memórias que aquele caótico cenário evocava. Com um pouquinho de concentração, conseguia reviver o momento da morte deles. Assistiu tudo da fenda da fechadura da porta do armário onde se escondeu com seus irmãos. Podia recriar em sua mente todo o ocorrido sem dificuldades. Não perdeu nenhum detalhe. Por outro lado, o amargo da derrota, a revolta com sua própria fraqueza. Sabia que não podia fazer nada contra o assassino.

Com as mãos dentro dos bolsos de um casaco negro de capuz cinza, percorria o caminho todo de retorno encarando o céu. O sol se punha. Nesse tempo que se despedia, a estrela deixava seu rastro dourado entre as nuvens, um dourado alegre, otimista, brigando ferozmente com a melancólica escuridão que tomava cada vez mais espaço nas alturas junto com os astros mais distantes. Os olhos azuis claros de Arashi refletiam esse embate. O fascínio provocado pela beleza dele o extasiou, por alguns breves minutos esqueceu-se de tudo o que viveu. 

Na parte mais escura da cidade, seu rosto, castanho por natureza, recuperou o semblante frio de outrora. Pelas ruas sobre as quais seus pés agora passavam, crianças de sua idade brincavam, mães saíam dos portões para chamá-las. Em muitos dos meninos podia ver a si mesmo. Sua irmã. Treinava desde os quatro anos para ser um retalhador, ignorando a proibição de sua mãe. Agora sabia os motivos dela. Quando olhou um garoto de seu tamanho chutando uma bola num muro, desejou ter uma infância normal. Quis nunca ter nascido com as habilidades sobrenaturais que tinha. Tarde demais. 

 Estendeu o braço direito para frente e abriu a mão. Através dela, fez nascer uma pequena pedra de gelo. Atirou-a na mosca que tentou passar na sua frente. Por mais baixa que fosse, temperatura nenhuma podia afetá-lo. Sua mãe sabia disso. Mesmo assim, obrigava-o a usar aqueles casacos. Usava, hoje, para lembrar-se dela. Para criar a ilusão de que era uma criança como as outras. Estava gostando de se sentir assim. Muita coisa mudou em Arashi depois do que ele testemunhou há alguns meses. Antes daquilo, tudo indicava que ele cresceria para se tornar um garoto extrovertido, comunicativo, tinha muitos amigos. Depois, se tornou alguém que passava horas calado, reflexivo.

— Ei, novato! — Kin Iminari, do alto da árvore pela qual ele passou, chamou-o. Com somente oito anos de idade e seus longos e loiros cabelos encaracolados, ela tinha mais atitude e confiança do que a maioria dos adultos. E não gostava de ser ignorada como acabou de ser. 

Kin arremessou uma espada contra Arashi. Para se esquivar e não morrer, o menino teve que parar de andar e virar-se rápido para ela. Viu-a descer da árvore. 

— Por que fez isso? — Questionou-a, apontando a arma arremessada. 

— Porque de onde eu venho não se ignora um retalhador! — Respondeu Kin. Vestia uma camiseta branca com a insígnia do signo de Áries preta nas mangas, uma calça e um par de botas marrons escuras de couro. Trazia consigo, num saco plástico, a versão masculina das roupas que estava usando. — Pega aí. — Jogou a sacola para ele. 

 Arashi segurou com uma só mão. Era o mais novo membro da equipe dos retalhadores de elite, parceiro de Kin. Fez os testes para conseguir esse cargo, passou em todos com louvor e, por causa desse desempenho, foi erigido sub líder do grupo. Somente Kin tinha mais autoridade lá do que ele. Assim que checou o que havia dentro da sacola verde escura, deu de novo as costas para a garota que veio trazê-la e prosseguiu indo para a direção que ia antes de ser parado. 

— Valeu. — Disse, apenas. 

Isso a irritou profundamente. Kin era uma garota muito inteligente, forte, mas só tinha oito anos. Detestava achar que estavam fazendo pouco dela. 

 — Quer que eu acerte outra espada em você?! — Descruzou os braços e o desafiou.

O garoto, num tom insolente, retrucou sem olhá-la:

— Você não acertou nem a primeira.

A pequena retalhadora não se conteve. Tão rápido que pareceu ter usado teletransporte, Kin surgiu na frente dele e o atacou com um soco. Arashi soltou a bolsa com as roupas e segurou seu punho com as duas mãos. Com mais dificuldades do que imaginou que teria. Quanta força, pensou, olhando-a sério, pasmo. Sem dúvidas estaria numa enrascada se tivesse levado aquele golpe. Kin usou a mão livre para desferir mais um soco igual ao primeiro, Arashi, dessa vez, optou por esquivar. Para isso, teve que libertar a mão dela. A loirinha o alvejou com uma chuva de socos, um mais célere do que o anterior. Ainda que com dificuldades, Arashi desviava-se de todos.  

Encerrou a sequência ao tentar atingi-lo com um chute alto na cabeça, ele, porém, usou um dos braços como escudo. Com o punho livre, tentou esmurrá-la na cara. Ela desceu a perna rápido e tentou fazer-lhe o mesmo. Um terminou com o punho do outro na mão.

— Esse foi o teste final. — Kin sorriu e disse. — Meus parabéns por ter ingressado no grupo dos retalhadores de elite, Arashi. De hoje em diante, seremos parceiros. Nós vamos liderar o grupo. Eu serei superior a você, é claro, mas os outros terão que te obedecer quando eu não estiver... A propósito, nunca se atrase quando formos sair juntos para fora do reino e nem nas reuniões. Eu odeio esperar. 

Largou o punho dele e saiu andando. Parou quando uma espada de gelo se aproximou de seu ombro. 

— Você não gosta de atacar quem está de costas e luta limpo. É uma postura louvável, mas não espere a mesma cortesia dos nossos inimigos. — A aconselhou, e então desfez a arma com a qual a rendeu. Esse foi seu modo de agradecer pelas boas vindas e de confirmar que nunca a abandonaria. Ela entendeu claramente, olhou adiante e sorriu com discrição. 

Dali em diante suas vidas seriam uma aventura sem fim, ambos sabiam. O que sentiam, embora não soubessem explicar, era que não importava a ameaça: ninguém conseguiria derrotá-los juntos. O "novato", como Kin o chamou, estava dizendo "olá" para a vida que queria antes de ver os pais morrerem. Pensou, contente, que até que não ficou tão diferente assim da criança que era. 


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